Correio da Cidadania

Centralização da informação, sua quebra via internet e a questão da pirataria

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Quando olhamos para a imprensa no Brasil, não é necessário ter acesso a documentos ultrassecretos para ver que uma infinidade de veículos, canais e empresas, que juntos possuem um alcance tremendo, estão na mão de poucas famílias. São seis famílias controlando 70% de todo esse aparato informacional, segundo Julian Assange, criador do WikiLeaks, em entrevista para o Estadão. Da mesma forma que observamos essa centralidade na gestão das empresas jornalísticas, também é possível perceber um certo “lugar comum” entre todas as principais linhas editoriais.

 

Da Folha ao Estado, da TV Globo para as redes sociais. É impressionante como os produtos da seleta elite da imprensa brasileira não variam. As editorias dos cadernos de Política da Folha e do Estadão, por exemplo, não parecem seguir manuais muito diferentes um do outro. Assim como o Jornal da Band é simplesmente uma versão mais tacanha do Jornal Nacional. Os formatos dos telejornais só variam em mais ou menos exagero e sensacionalismo. Todos convergindo em uma só direção, em perfeita sincronia com os principais anunciantes. E, se os assentos dos grupos gestores são poucos, poucos também são os lugares para onde dirigem o imaginário dos seus receptores.

 

Hardt e Negri trabalham com o conceito do ser mediatizado na obra Declaração: isto não é um manifesto. Este ser midiatizado recebe um bombardeio de informação tão grande e confia tanto nesses meios de comunicação que, ao mesmo tempo em que poupa um olhar mais crítico a respeito dos fatos, força a percepção do receptor sutilmente, nas entrelinhas, a partir do conteúdo que recebe mais atenção e espaço em contraposição aos que se ignora. Isto induz o receptor das informações a escolher opiniões, condutas, comportamentos, produtos e assim por diante. Mesmo sendo dirigido, o midiatizado se sente informado, engajado e livre.

 

“A mídia não nos torna passivos. De fato, ela constantemente nos convoca a participar, a escolher o que gostamos, a contribuir com nossas opiniões, a narrar nossas vidas. A mídia é constantemente responsiva a nossas preferências pessoais, e, em troca, estamos constantemente atentos”, afirmam Hardt e Negri. E com legiões de midiatizados atentos e dispostos a receber esse bombardeio, vai se construindo um consenso e edificação de valores no imaginário coletivo que têm, de certa forma, uma relação determinante com o projeto de poder do momento.

 

O acesso à informação tem sido usado como instrumento para diversos projetos de poder ao longo da história da humanidade. Segundo Pierre Levy, em Cultura da Convergência, a cada nova tecnologia inventada, o ser humano entra em uma nova fase de hominização. Em outras palavras, cada nova tecnologia colocada em uso pode trazer mudanças significativas na cultura, no imaginário e no grau de entendimento humano do ambiente. Se o advento da pólvora, como nova tecnologia, mudou a relação do ser humano com a guerra – antes os combates eram corpo a corpo e depois passaram a ser a distância –, com a informação, não é diferente, haja vista que a política e disputa pela opinião pública são consideradas extensões da guerra por diversos pensadores.

 

Ao longo da história humana, o acesso e a produção de informação sempre foram intimamente ligados aos diversos projetos de poder. Enquanto na idade média europeia ocidental a Igreja Católica detinha praticamente o monopólio da reprodução manual de livros e se mostrava como a única instituição universal de um mundo completamente descentralizado politicamente, conforme foram aparecendo novas tecnologias, a relação humana com a informação ia se alterando. Novas necessidades, como a alfabetização, por exemplo, surgiam, com elas, novas classes sociais e novos projetos políticos.

 

McLuhan coloca, por exemplo, que a invenção da prensa tem uma relação íntima com as revoluções burguesas, a consolidação do capitalismo e, principalmente, a formação dos Estados Nacionais europeus. Antes descentralizada politicamente, as diferentes comunidades europeias passaram a ver na linguagem, na imprensa, na literatura e na alfabetização uma deixa convincente para unir povos dentro do projeto de Estado Nacional.

 

A roda da história foi girando – ou a timeline foi sendo atualizada – e passamos pelo advento do rádio, do cinema, da televisão e diversos projetos de poder do século 20 se utilizaram dessas tecnologias para sua consolidação. A relação do nazismo com o cinema, rádio e imprensa foi muito bem retratada no documentário Arquitetura da Destruição, de Peter Cohen, assim como o cinema soviético carrega valores socialistas bem demarcados e Hollywood faz o mesmo em relação ao projeto de poder norte-americano. O jornalismo e o entretenimento da TV Globo também fazem parte dessa mesma lógica no Brasil nos últimos – quase – 60 anos.

 

“Na era do conhecimento, deixar de reconhecer o outro em sua inteligência é recusar-lhe sua verdadeira identidade cultural, é alimentar seu ressentimento e sua hostilidade, sua humilhação, a frustração de onde surge a violência. Em contrapartida, quando valorizamos o outro de acordo com o leque variado de seus saberes, permitimos que se identifique de um modo novo e positivo, contribuímos para mobilizá-los, para desenvolver nele sentimentos de reconhecimento que facilitarão a implicação subjetiva de outras pessoas em projetos coletivos”, explicam Hardt e Negri.

 

Daí, chegamos a um cenário onde há centralização da gestão, das linhas editoriais, da produção de conteúdo e ainda dos aparatos de comunicação. O advento da internet em um dado momento rompeu com essa lógica, porém, vem sendo absorvido por essa mesma centralidade. E quanto maior tem sido o grau de absorção da internet, mais as diferentes formas de comunicação – escrita, audiovisual etc. – vão convergindo em um único aparelho: o celular, no qual todos estão atentos o tempo todo. Quem sabe a nova guerra mundial não esteja sendo travada no second life?

 

Recorte de um momento em que a internet foi libertadora

As manifestações de junho 2013 contra o aumento das tarifas de ônibus e metrô em São Paulo pegaram muita gente de surpresa por trazerem elementos até então pouco levados a sério na raiz da sua organização e discurso. Apesar do despreparo de muitos jornalistas e pesquisadores para tratar o tema, manifestações como aquelas já tomavam as ruas do Brasil há pelo menos dez anos, como é o caso da “revolta do buzu” de 2003, em Salvador. Em São Paulo, desde 2005 já aconteciam manifestações do Movimento Passe Livre, assim como as das “Jornadas de Junho” contra diversos aumentos em temporadas anteriores, mas com um menor contingente de mobilização e sem o acúmulo necessário para ultrapassar a barreira informacional e ganhar o apoio da população.

 

Diversas razões dificultaram a compreensão do fenômeno. Uma delas foi a forma de organização horizontal e em rede do grupo, diferente da esquerda tradicional que se mantém centralizada em partidos e lideranças. Um exemplo prático foi a ausência de carros de som nas manifestações organizadas pelo MPL. O discurso original – simples, direto e focado na questão do transporte e em como afeta outras áreas – também soou muito diferente da tradicional verborragia esquerdista, mesmo sendo um discurso de esquerda.

 

E entre outras razões, estão as formas como foi organizado e difundido o movimento. Assim como sua organização e seu discurso, o midiativismo junino também assumiu caráter horizontal e em rede, além de um discurso simples, direto e seguro. Essa militância digital e informacional teve muito êxito em retratar a violência policial e em divulgar um contraponto ao senso comum.

 

A vitória do movimento – o retorno do preço anterior, de 3 reais, das passagens – foi possível muito em função desse ativismo de contrainformação, que em um determinado momento conseguiu ganhar a opinião pública ao driblar as grandes editorias.

 

Esse drible teve três momentos emblemáticos. Um deles foi no dia 13 de junho, de manhã, quando o Editorial da Folha, em consonância com seus concorrentes, pedia a “retomada” da Avenida Paulista. Ironicamente, na data, uma jornalista a seu serviço foi baleada no rosto por uma arma não-letal da PM e correu o risco de perder a visão.

 

Outro momento importante foi durante o protesto, quando o apresentador da TV Bandeirantes, José Luiz Datena, acabou constrangido pelo resultado da própria pesquisa feita ao vivo. Mesmo após duas tentativas de reformulação da pergunta, os resultados continuaram contrariando o apresentador.

 

O terceiro momento, percebido de forma geral, foi na manhã do dia 14. Os jornalões, as rádios e as televisões baixaram o tom panfletário e deram um espaço digno para os manifestantes. A Folha inclusive protagonizou essa mudança ao denunciar a violência sofrida por sua trabalhadora. Mesmo ignorando todas as agressões e prisões arbitrárias anteriores a isso e sem fazer um mea-culpa em relação a seu Editorial da manhã anterior, ressalte-se.

 

Enquanto isso, os portais de internet faziam matérias e especiais de última hora tentando resgatar algum conhecimento acumulado sobre o tema, perdido em algum arquivo do passado.

 

Evidentemente, as agressões a jornalistas da grande imprensa – uma vez que jornalistas independentes ou de canais com menos prestígio não tinham qualquer valor para a opinião pública – foram determinantes para baixarem o tom da grande imprensa e diminuir seu teor anti-manifestação, mas pode não ter sido esta a principal razão.

 

A difusão das manifestações do MPL na internet e, principalmente, nas redes sociais foi essencial para o movimento ganhar a opinião pública. Consolidado em 2005 como um movimento de abrangência nacional, o MPL – bem como outros movimentos semelhantes – é herdeiro daquele movimento do final dos anos 90 que ficou conhecido, erroneamente, como movimento antiglobalização. A tática de parar as ruas usada em Seattle, Praga, Genova e São Paulo entre 1999 e 2001 foi posta em prática com maestria em 11 de junho de 2013, quando se fecharam os acessos às avenidas 23 de Maio e Radial Leste.

 

Outra prática deixada nesse testamento “anti-globalizador” foi o uso da internet e outras ferramentas digitais não apenas como meio de difusão de propaganda e informação, mas principalmente como veículo de mobilização. Esse uso da rede como canal mobilizador ainda era precário na virada do milênio por razões óbvias, mas obteve grande sucesso em 2011, durante as primaveras árabes. Os ativistas brasileiros já estavam na rede em 2001 e compreenderam o fenômeno antes que qualquer repórter, editor ou pesquisador. O uso desta ferramenta apareceu como um elemento surpresa para o MPL.

 

Se no ano 2000 havia um coletivo chamado Centro de Mídia Independente, que se propunha a fazer a cobertura de movimentos e manifestações de maneira livre e se colocar como instrumento de mobilização e comunicação, em 2013 havia uma infinidade de grupos e coletivos fazendo esse tipo de ativismo simultaneamente. Se o CMI, lá atrás, acabou sendo alvo de inúmeros processos judiciais no Brasil, e perseguições mais duras na Itália e Estados Unidos, em 2013 não havia um alvo. A mídia ninja se destacou – por uma série de questões que pretendo discutir em uma próxima oportunidade – em meio a uma geração enorme de midiativistas e cyberativistas que já sabiam compartilhar dados, “viralizar” informações, transmitir em live streaming e assim por diante.

 

Eram blogs, páginas e perfis de fotógrafos, cinegrafistas amadores e manifestantes registravam os protestos e compartilhavam não apenas suas narrações, mas as que tivessem ao seu alcance. E na noite daquele dia 13 de junho, frente a uma repressão policial extremamente violenta, as narrações da rede chegaram “às anteninhas” mais receptoras do que as de meios tradicionais, e o uso da rede por parte dos manifestantes foi um elemento crucial nesse processo.

 

Guerra à pirataria: um discurso vazio

Por um lado, a internet pode ter um caráter libertador. O uso da rede proporcionou novas formas de organização, comunicação e mobilização fora da lógica dominante dos grandes meios de comunicação. Impulsionou novos movimentos de massa, como ocorreu nas grandes manifestações do Egito e da Tunísia em 2011 e no Brasil em 2013. Nesses episódios, os compartilhamentos superaram em algum momento o alcance e a absorção dos meios de comunicação tradicionais. TVs, jornais, rádios e portais precisaram rever alguns pontos das suas políticas editoriais para acompanhar a opinião do público, invertendo a lógica do “formador de opinião” e catalisando trunfos para os movimentos que ocupavam as ruas. Isso se deveu a um acúmulo de conhecimento digital desses movimentos e seus antecessores, aliado a uma familiaridade maior com as ferramentas digitais por parte dos ativistas mais jovens, cada vez mais numerosos.

 

Por outro lado, apesar desse ar emancipador e democratizante, a internet é uma “faca de dois gumes”. Segundo Julian Assange, a internet está tomando um caminho completamente oposto a tal vocação libertadora, tornando-se o aparato de vigilância em massa criado pelo Estado. Assange não leva vida fácil. É perseguido. Acorda e dorme todos os dias na embaixada equatoriana em Londres. Ele defende que a internet se tornou um elemento central na civilização ocidental, uma vez que as comunicações interpessoais estão na internet, nas redes sociais, além dos sistemas de telefonia, bancários e assim por diante. Evidentemente, esse banco de dados global centralizado na internet facilita a criação de um sistema de vigilância em massa, como denunciam diversos documentos secretos publicados nos últimos anos pelo WikiLeaks.

 

O cenário que vemos é de disputa. Por um lado, há quem defenda a liberdade de compartilhamento e a privacidade do usuário; por outro lado, vemos a vigilância em massa que parte de um princípio de segurança. Essa faceta da vigilância envolve temas como segurança nacional, defesa do copyright e direitos autorais. Busca combater – ao menos no discurso – crimes hediondos como a pedofilia, além de empregar enormes esforços no combate à pirataria, articulando uma série de argumentos que podem convergir, mas não precisam necessariamente formar partes de um todo. No final das contas, é o milenar embate filosófico entre liberdade e segurança presente no mais moderno ingrediente deste novo mundo.

 

Um dos primeiros escritores e teóricos da cybercultura a perceber e analisar esse conflito foi Lawrence Lessig. Em seu livro Cultura Livre: como a mídia usa a tecnologia e a lei para barrar a criação cultural e controlar a criatividade, apresenta a questão da pirataria versus os interesses da indústria cultural.

 

De um lado, os defensores de uma internet livre, onde se pode compartilhar livremente qualquer dado, livro, música ou filme em prol da promoção da cultura, da apropriação das obras existentes e a da criação de novas obras. Do outro lado, vive a criminalização do compartilhamento livre, tratado como pirataria, como um crime a ser combatido em nome dos direitos autorais.

 

Duas coisas precisam ser pontuadas. A primeira é que Lessig defende os direitos autorais como mecanismos de controle do artista sobre a própria obra, mas ao mesmo tempo deixa claro que a lógica de direitos autorais não protege os artistas diretamente, mas as grandes empresas por trás desse artista e dessa obra. A segunda questão a ser pontuada é que há uma aspiração natural da rede em ser uma ferramenta livre de compartilhamento, que trouxe a ideia de internet libertadora e tornou-se interesse comum do público usuário, indo diretamente contra os interesses da velha indústria.

 

É aí que entra o conceito de pirataria, que logo se transforma em cyberterror e se traduz em inúmeros mecanismos de vigilância e controle na rede. O combate à pirataria está para a vigilância em massa nas redes assim como a guerra às drogas está para a vigilância ostensiva e o encarceramento em massa nas periferias das grandes cidades.

 

É sob a bandeira do combate à pirataria que se abrem precedentes para fechar páginas e aplicativos de compartilhamento, como o que ocorreu com o velho Napster, em processo descrito com detalhes por Lessig. Também são abertos precedentes para a vigilância de conversas pessoais, transações bancárias, downloads e uploads. E se em um primeiro momento a desculpa para essa violação da liberdade na rede é a segurança, ou seja, tem um caráter defensivo, em um segundo momento o mundo corporativo encontra uma forma ofensiva de se aproveitar desse embate. Aí entram google, facebook e o conceito tratado logo no início do texto, de que os grandes meios de comunicação convocam seus receptores a uma participação ilusória. Google e Facebook, assim como Globo e Record, são grandes meios de comunicação também.

 

Para quem acha que o ThePirateBay é o grande pirata da vez, de pirataria tem algo mais que o nome apenas. Tudo bem que se trata da maior e mais eficaz ferramenta de busca de torrent, mas o ThePirateBay promove, em linhas gerais, o compartilhamento de músicas, filmes, livros, softwares e aplicativos. Não existe nessa ferramenta o armazenamento de dados pessoais do usuário. Em outras palavras, o site espalha os filmes que nós queremos ver e não os nossos dados pessoais, como fazem os veículos da “grande internet”.

 

Estes “grandes da internet”, por suas vezes, têm olhos e ouvidos para todos os usuários. Monitoram seus gostos, suas conversas, seus estados de espírito e tendências diversas. O tempo inteiro oferecendo anúncios de produtos ou eventos que, cruzando informações, acreditam ser de interesse do usuário. Da mesma maneira que esses gigantes da internet conseguem armazenar dados em proporções faraônicas e cruzá-los, a fim de obter resultados no mercado, por que não vender esses valiosos dados?

 

Segundo Assange, esses dados – nossos dados – estão em negociação. E podem estar tanto no mundo corporativo quanto nos governos. O que vemos é um discurso contra a pirataria que se torna uma falácia completa, uma vez que é proferido pelos clientes dos verdadeiros piratas, aqueles que negociam nossas informações pessoais sem nosso consentimento. Esses piratas têm nome e não é nem preciso mencioná-los.

 

Afinal de contas, o que será que está escrito em letras minúsculas nas últimas linhas dos termos de adesão do facebook e do google?

 

 

Raphael Sanz é jornalista.

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