Correio da Cidadania

Machismo ainda é inimigo a ser enfrentado no Dia Internacional da Mulher

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A cada 16 segundos uma mulher é agredida no Brasil. Em pleno século XXI e diante de importantes conquistas de direitos, as mulheres ainda sofrem violência, principalmente por um agressor que sobrevive há décadas: o machismo. De acordo com a pesquisa Percepções sobre a Violência Doméstica contra a Mulher no Brasil, realizada pelo Instituto Avon em 2011, a crença de que os homens são superiores às mulheres é apontada como principal fator para as agressões. O mesmo estudo aponta que a maioria dos agressores são os maridos ou namorados das vítimas e que, por medo, elas não denunciam os companheiros. Neste dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, alguns especialistas ouvidos pelo Sul21 propõem uma reflexão sobre o papel das próprias mulheres na inversão dos valores que ainda as subjugam e violentam.

 

O maior desafio no enfrentamento da violência contra mulheres é dar um basta às obrigações morais da sociedade ainda incorporadas na educação de homens e mulheres, na visão da psicóloga que atende às vítimas de violência no Instituto Geral de Perícias do Rio Grande do Sul (IGP-RS), Cláudia Carvalho. Ela explica que há grande incidência de casos onde mulheres repetem hábitos e atitudes herdadas da família ou mesmo da desestruturação de uma família e acabam vindo a se tornar parte de um ciclo vicioso de violência. “Elas relatam que começam uma relação onde o que parecia ser amor passa a se tornar palco de agressões verbais, que podem evoluir para agressões físicas e mesmo ameaça de morte”, relata a psicóloga.

 

De acordo com Cláudia, em alguns casos, as mulheres se sentem tão oprimidas emocionalmente e psicologicamente que acabam buscando ‘soluções’ por elas mesmas, sem compreender que estão sendo vítimas de violência. “Algumas acabam buscando até na gravidez uma fuga para as agressões. O que não impede e até agrava a violência, pois os filhos passam a ser testemunhas do sofrimento das mães”, conta. Outro exemplo vivo nas casas de Porto Alegre e que ocorre em vários cantos do Brasil são os casos de cárcere privado ou assassinato por “amor”, ilustra a psicóloga do IGP-RS. “As mulheres largam tudo e vão para relações onde são financeiramente dependentes dos maridos, que passam a dominar a relação a tal ponto de violentá-las, deixando-as sem dinheiro e comida. Isto não deixa de ser uma forma de cárcere, ainda que não aparente aos olhos da sociedade”, fala.

 

Os casos atendidos no Instituto Geral de Perícias do RS são baseados em ocorrências policiais, mas nem sempre as mulheres vão até as delegacias registrar a violência. Há o aspecto da deficiência da rede de proteção às vítimas e também a própria impunidade dos agressores, nos casos em que a mulher consegue vencer o medo de processar o companheiro. “Conseguimos avançar com a criação da Lei Maria da Penha, que é completa na previsão de pena para todas as formas de violência e permite que a denúncia também seja feita por promotores, não só a vítima. Mas a quantidade de processos sem resolução no judiciário é grande. Em muitos casos, o que ocorre é a falta de Centros de Referência para Mulheres, para encaminhamento dos casos que não tem sequência criminal”, explica a presidente da Comissão de Segurança e Direitos Humanos da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, vereadora Maria Celeste.

 

“O Centro de Referência da Mulher Vânia Araújo é estadual e não há um específico para a capital. Ainda que exista uma coordenadoria municipal de mulheres, a rede de atenção e as políticas públicas preventivas à violência são insuficientes”, critica.

 

Por outro lado, a vereadora concorda com o fator sócio-cultural na reprodução de ambientes domésticos violentos. “Dar continuidade nos casos após as denúncias possíveis com a Maria da Penha é necessário, mas a relação entre homens e mulheres envolve questões subjetivas que precisam ser consideradas neste processo. Se a mulher ama este homem que a agride ou depende dele de alguma forma, ela vai retirar a denúncia e seguirá o círculo vicioso. A mulher precisa de amparo na rede para se encorajar a romper estas questões mais subjetivas. Precisamos criar condições para a sua autonomia”, cobra a vereadora.

 

Um exemplo simples que deveria ser incorporado como uma política pública importante para autonomia das mulheres e que está ao alcance do poder público é a ampliação de vagas e adequação no horário de funcionamento das creches, cita a representante do Movimento Marcha Mundial de Mulheres, Cláudia Prates. “Isto facilitaria as relações de trabalho da mulher e permitiria a retomada dos estudos e de outros direitos que elas abandonam para cuidar dos filhos. E esta é uma conquista que não deve ser vista como algo das mulheres. Creches são um direito de família, pois homens também são responsáveis pelos filhos”, explica.

“Mulheres precisam compreender as faces da violência para enfrentá-las”

 

Cláudia Prates explica que conscientizar as mulheres sobre a realidade machista ainda presente na sociedade é uma das tarefas dos movimentos sociais feministas, mas cobra um esforço coletivo de atores sociais para uma transformação profunda. “As mulheres precisam ganhar confiança para compreenderem o que está por trás da violência que estão sofrendo. A divisão das tarefas de casa, por exemplo, tem que ser justa. A mulher não pode ficar absorvendo tudo que se refere ao lar no cotidiano. Isto é uma forma de dar poder aos homens que acham que tudo que está em casa é deles, inclusive as mulheres. Se elas não fizerem o que eles querem, apanham”, comenta.

 

A representante da Marcha Mundial de Mulheres acredita que as mulheres precisam ser ainda mais orientadas sobre as formas que caracterizam a violência. “Muitas são estupradas todos os dias e não acham que estão sendo violentadas. Elas dizem que cedem sem ter vontade. Isto é uma forma de violência sexual”, diz. O mesmo diante do testemunho de casos de violência doméstica. “Tem muitos lugares onde a polícia não entra e os homens comandam e sabem que podem bater. Há casos de mulheres que chamam a polícia quando são agredidas e a polícia não vai porque é briga de casal. Isto é violência, não é briga de marido e mulher. E em briga de marido e mulher se mete a colher sim”, defende. Ela ilustra o machismo presente nas agressões, mesmo quando há motivação por álcool ou drogas. “O homem não bate porque bebeu ou se drogou. Ele bate porque é machista. Ou se não, ele beberia e sairia batendo nos amigos, no chefe, no vendedor da farmácia. Não: ele bate na mulher, quando chega em casa”, argumenta.

 

A vereadora Maria Celeste acredita que as próprias mulheres poderiam estar atentas para não alimentar ou reproduzir o machismo. O que passa por identificar os sinais dentro de casa. “Às vezes não nos damos conta que na nossa casa tem armas de brinquedo com nossos filhos, bebidas alcoólicas ao acesso fácil, entre outros elementos que criam um ambiente propício à violência”, fala. E complementa: “As mulheres aprendem a cuidar dos outros, de filhos, de idosos. Agora, elas têm que cuidar de si. O cuidado consigo mesma tem que ser levado para a sociedade como um fator de transformação nas relações. As mulheres são mães, protetoras, esclarecidas e ainda assim se subjugam a situações machistas diante dos parceiros”, defende.

“Parte da sociedade ainda resiste às conquistas das mulheres”, defende sociólogo

 

Na análise do sociólogo Aloísio Ruscheinsky, os aspectos sócio-culturais fazem parte dos fatores relacionados à violência em geral e à violência contra mulheres em particular. Ele pondera que casos particulares ou estatísticas devem ser analisados de forma cautelosa para compreender bem os fenômenos, sem desconsiderar ainda uma ‘visibilização’ dos fenômenos. “Não necessariamente estamos vendo mais casos de violência, estamos vendo a violência que sempre existiu e que com as conquistas de direitos e espaços por parte da mulher acaba sendo mais divulgada”, afirma.

 

Ele ressalta que o machismo é uma forma de poder e autoridade que permeia o conjunto da sociedade nas diferentes classes sociais, mas a relação do consumismo hoje também é um aspecto a se considerar para a reprodução da violência. “Onde há desigualdade, há mais violência. Onde eu não posso ter aquilo que a maioria tem, eu preciso descarregar a minha insatisfação de alguma forma. Na bebida, nas relações familiares etc.”, fala.

 

O sociólogo também analisa que, com as recentes conquistas da mulher, parte da sociedade vive um processo de resistência à democratização das relações na vida cotidiana. “O avanço das mulheres coloca em xeque a forma de se relacionar. Os resistentes podem recorrer para a violência. Do ponto de vista simbólico, as mulheres que estão mais atentas aos seus direitos sofrem menos”, acredita. Ele afirma ainda que, diante de algumas formas de banalização da figura feminina, a própria mulher deveria ser a primeira a não tolerar determinadas descaracterizações. “Há expressões artísticas e culturais que falam da mulher de forma banal. Onde elas são chamadas de diversas coisas das quais elas não concordam e elas estão lá, dançando diante de letras que estão muito distantes daquilo que buscam como igualdade de gênero”, coloca.

 

Ele afirma que, do mesmo modo que conquistas como o direito ao voto para mulheres e a Lei Maria da Penha ocorreram de forma gradual, o machismo deverá ser superado de forma gradativa nas próximas décadas. “Algumas mudanças necessitam de longo tempo de maturação. Isso é do processo”, considera.

 

A psicóloga Cláudia Carvalho também tem esperanças de que em um futuro próximo, o Dia Internacional da Mulher poderá ser comemorado de forma plena. “A conquista das leis e direitos são muito recentes, a gente evoluiu até bem rápido em relação a lidar com elas. Mas precisamos perceber nosso papel como mulher neste processo. Para ser feminista não precisamos nos masculinizar ou levantar bandeiras, e sim romper com nossas próprias crenças, muitas vezes machistas e que acabamos herdando. A gente não precisa mandar no homem para não ser mandada, temos que conviver e saber dividir os papéis”.

 

Por Rachel Duarte, Sul 21.

 

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