Correio da Cidadania

Novo ensino médio: “a ideia é simplificar a formação dos mais pobres e vulneráveis”

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Maria Helena Guimarães Castro e Rossieli Soares, ex-ministro da Educação de Temer e atual secretário
da área em SP. Crédito: Governo SP

Em meio ao que já pode ser considerado um “apagão” na vida escolar de uma geração, o Brasil passa a implantar aquilo que já se chama de Novo Ensino Médio, fruto da Base Nacional Curricular Comum aprovada no governo de Temer. Como praticamente tudo na “Nova Era”, não houve o mínimo debate público, menos ainda diante da conturbada reabertura das escolas públicas. É sobre essa grande reorganização pedagógica que o Correio publica entrevista com Fernando Cássio, cientista e pesquisador em Educação da Universidade Federal do ABC. 

A partir de sua implantação, o ensino generalista será substituído pelos chamados “itinerários formativos”. “O governo promete o céu aos estudantes, aproveitando-se dos sonhos, desejos e projeções de futuro de adolescentes de 15 anos. Esta é a maior perversidade da reforma do ensino médio. No estado de São Paulo, 325 dos 645 municípios possuem uma única escola pública de ensino médio, o que significa que não haverá condições de ofertar tudo aquilo que desejam os estudantes. Na prática, a maioria será obrigada a seguir um percurso que não escolheu. A liberdade de escolha é um engodo”, criticou.

Ao longo da entrevista, Fernando Cássio ataca a linha argumentativa que se vale do já batido linguajar neoliberal de “modernização”, “livre escolha” e outros adjetivos que escondem muito mal a precarização do ensino. Na prática, diminui-se a qualidade e a complexidade da oferta de ensino em favor do que seria mais “prático”, isto é, aquilo que os estudantes considerarem mais adequado a seus desejos. Uma rede pública de ensino que, como diz o entrevistado, reflete a ideia de que “o povo não cabe na Constituição”.

“É incrivelmente desonesto dizer que a única forma de conectar a escola com o mundo do trabalho é desmontar a formação existente para colocar um pastiche de ensino profissionalizante no lugar. A operação de trocar tudo o que a escola já produziu por um conjunto de quinquilharias da moda prescritas por um currículo centralizado não melhora a qualidade da educação. (...) Quem decretou a falência do ensino médio público brasileiro não foram os estudantes nem seus professores, mas os ‘especialistas’ das fundações e institutos empresariais chancelados pelos governos”, explicou.

Tudo isso num período pandêmico em que a manutenção das aulas por meios remotos teve resultados absolutamente desastrosos e, ao que parece, nada será feito para compensar uma perda pedagógica quase imensurável.

“O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo apurou que, ao longo de 2020, 80% dos estudantes da rede estadual não passaram mais que duas horas conectados ao aplicativo oficial da Seduc-SP. Tecnicamente, portanto, podemos falar em evasão escolar massiva induzida pelo Estado. Sim, o governo do estado mais rico do país, com a rede supostamente mais bem estruturada, a burocracia mais profissional e a gestão de dados mais sofisticada permitiu que 80% dos alunos da rede permanecessem sem acesso à escola durante um ano”.

A entrevista completa com Fernando Cássio pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como enxerga a proposta de “Novo ensino médio” apresentada pelo governo estadual e sua ideia de “itinerários formativos”?

Fernando Cássio: É a reforma do ensino médio do governo Temer, e é importante lembrar disso porque ela – juntamente com a Base Nacional Curricular Comum, a BNCC – tem a assinatura do PSDB paulista, que estava no MEC da época. Entre 2016 e 2017, o Mendonça Filho era o ministro, mas a secretária executiva era a Maria Helena Guimarães de Castro, histórico quadro do PSDB paulista, pessoa de longa estrada, que conhece a gestão pública e tem projeto educacional claro. Os clichês de agora são os mesmos de antes: “inovação”, “flexibilização curricular”, “protagonismo juvenil”, “liberdade de escolha”, formulações evocativas de valores individualistas e de uma lógica concorrencial. Todas estavam na MP 746/2016, que depois se tornou Lei 13.415/2017. Superficiais, essas ideias são propositalmente vagas, pois servem para nos distrair daquilo que é mais relevante.

O Novo Ensino Médio foi pensado para uma categoria social conhecida como “jovem nem-nem”: o adolescente que sai da escola e não vai nem para o mercado de trabalho e nem para a universidade. E, quando trabalha, não é onde gostaria de trabalhar, mas em empregos intermitentes e de baixa qualificação. Não deixa de soar irônico que a sigla para Novo Ensino Médio seja “NEM”.

Em tese, seria preciso reformar o ensino médio justamente porque a escola é “chata”, “ultrapassada”, não atende a ninguém e nem forma para a universidade ou o mercado de trabalho. Assim criaram a chamada “flexibilização”, que é vendida aos estudantes da rede estadual como a possibilidade de fazer aquilo que se deseja.

Se não quero aprender filosofia ou ciências, posso fazer um curso de Excel para auxiliar de escritório ou de design de aplicativos e jogos. Um aprendizado mais estruturado de química, educação física, artes, geografia, sociologia, nessa visão, seriam coisas desnecessárias. Mas desnecessárias sob qual ponto de vista? Quem tem coragem de convencer adolescentes de 15 anos que faz sentido abandonar tudo aquilo que não se gosta na escola?

O foco, para os implementadores da reforma, é um ensino médio simplificado em português, matemática e inglês. O resto se tornam os “itinerários formativos”, e dentro deles há uma opção de ensino supostamente profissionalizante. Elimina-se uma parte significativa da formação generalista do ensino médio em favor de tal opção.

Correio da Cidadania: O que está por trás disso?

Fernando Cássio: A ideia é simplificar a formação dos mais pobres e vulneráveis, mantendo uma formação de ensino médio de perfil mais acadêmico para uma pequena parte nas redes públicas. Nas escolas privadas, mudam só os nomes das coisas, mas não haverá alterações substantivas. As expectativas de sempre das classes médias e das elites continuarão sendo atendidas. As pessoas que têm um nível socioeconômico melhor, capital cultural, acesso a curso extracurricular etc. já têm vantagem suficiente para não serem afetadas pelas mudanças do Novo Ensino Médio.

Ao mesmo tempo, as redes públicas de ensino, em especial as estaduais, que ofertam o ensino médio, também têm clareza de que uma parte de seus alunos precisa ser formada para dar continuidade aos estudos. É por isso que várias redes de ensino têm programas para a manutenção de escolas diferenciadas, que atendem pequenas parcelas da população. Em São Paulo existe o Programa Ensino Integral (PEI), com escolas de jornada ampliada para os alunos menos vulneráveis da rede. Já aqueles que mais precisariam de uma escola pública de qualidade – estudantes pobres e negros, tipicamente – são convencidos de que a escola PEI não é para eles e vão se transferindo para outras escolas. Além de não poderem ficar o dia todo na escola – não há políticas de permanência – a estrutura altamente competitiva dessas escolas exclui os estudantes com alguma defasagem acumulada dos anos anteriores. A escola PEI não faz a mínima questão de lidar com esse problema. A filosofia é: “quem tem dificuldade, que mude de escola”.

Na lógica do NEM, a maioria dos estudantes ficará presa no limbo da formação simplificada. Para convencer as pessoas de que não se está reduzindo a formação e as possibilidades, vende-se a ideia de que está se dando opções aos estudantes, com liberdade de escolha, flexibilização, inovação e conexão com o mundo do trabalho.

Correio da Cidadania: E isso tudo simplesmente será ignorado no ensino privado ou há obrigação de acatar?

Fernando Cássio: As escolas privadas também deverão mudar a estrutura do ensino médio. De alguma forma, precisam apresentar esses “trajetos diferenciados” na sua grade curricular e farão isso. Mas quem acredita que uma escola de elite que cobra oito mil reais de mensalidade vai substituir aulas de química, física e biologia por cursos profissionalizantes de curta duração?

Os itinerários profissionalizantes – especialmente os de baixa complexidade – não foram desenhados para as classes mais abastadas. O foco é a população pobre; simplificar e reduzir a formação dos pobres.

Correio da Cidadania: Como avalia a forma como se conduz a implementação do projeto em relação à sociedade e às comunidades escolares? É aceitável que tamanha transformação ocorra no meio da pandemia, com todo o prejuízo acumulado nos processos de ensino e aprendizagem?

Fernando Cássio: O MEC estabeleceu um cronograma de dois anos para implementação do NEM nos estados, mas alguns deles avançaram na implementação durante a pandemia. O caso de São Paulo é sintomático. Trata-se de uma rede de ensino enorme que, historicamente, não tem grande preocupação de envolver as comunidades escolares no debate das grandes reformas educacionais. Pelo contrário, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo alimenta uma ideia de “participação” da comunidade escolar de baixíssima densidade: restrita, pouco informada, burocrática e demagógica. Assim, não surpreende que o governo Doria aproveite a pandemia e a desmobilização das comunidades escolares para implantar reformas impopulares, como a ampliação do PEI e a estruturação da rede para a oferta dos itinerários do NEM.

Tendo adotado o mesmo discurso participacionista de sempre, é claro que o governo paulista não vai privilegiar uma discussão coletiva, ampla e democrática. Vai se amparar nas enquetes individuais e na “escuta direta” dos alunos, como se a escolha daquilo que pretendem abandonar na escola fosse um bufê de restaurante self-service. O governo promete o céu aos estudantes, aproveitando-se dos sonhos, desejos e projeções de futuro de adolescentes de 15 anos. Esta é a maior perversidade da reforma do ensino médio. No estado de São Paulo, 325 dos 645 municípios possuem uma única escola pública de ensino médio, o que significa que não haverá condições de ofertar tudo aquilo que desejam os estudantes. Na prática, a maioria será obrigada a seguir um percurso que não escolheu. A liberdade de escolha é um engodo.

Tem os itinerários de aprofundamento, os profissionais, os integrados; dezenas de tipos de cursos profissionalizantes... como um enorme cardápio de restaurante, que de tão grande torna-se dificílimo escolher um prato. Na dúvida, opta-se pelo mais simples. O problema é que não estamos falando de cardápios e de restaurantes, mas de adolescentes de 15 anos tomando uma decisão sobre um futuro que não têm condições de saber como será.

Em cidades com apenas uma escola de ensino médio, não vai ter muita opção, pois o NEM não prevê investimentos massivos nas escolas: reformas, ampliações, aquisição de equipamentos, concurso público para novos profissionais, melhoria dos salários e das condições de trabalho das equipes escolares etc. A ordem é simplificar para baratear. E isso se dirige, claro, à parcela maior – e também mais pobre – da população. O NEM é a versão educacional da ideia de que “o povo não cabe na Constituição”.

Correio da Cidadania: Há previsão de reforma dos ambientes escolares a fim de criar as condições para este novo perfil curricular e pedagógico?

Fernando Cássio: O objetivo não é esse. Os investimentos se restringirão, quando muito, às escolas nas quais os governos alocam recursos adicionais para servirem como vitrine, a exemplo das escolas PEI em São Paulo. Imagine como será oferecer itinerários técnicos e profissionalizantes à escolha dos estudantes em escolas sem laboratórios e equipamentos.

Na prática, o que vai acontecer é a terceirização da oferta por instituições de ensino privadas, seja as pequenas escolas de bairro – que assumirão os cursinhos profissionalizantes “expressos” – seja as grandes redes privadas, que enviarão seus professores para atuar nas escolas públicas. Isso, aliás, já ocorre na rede estadual de São Paulo com o formato atual do programa Novotec.

Convém salientar, porém, que o modelo de ensino “profissionalizante” do Novotec está mais para um ensino “pré-técnico” do que para uma educação profissional e tecnológica em senso estrito. Os estudantes que realmente quiserem um diploma do ensino técnico precisarão passar, no mínimo, mais um ano na escola. A questão é saber se as ETECs do Centro Paula Souza terão condições de lidar com o aumento da demanda. Ou os estudantes precisarão pagar por ensino técnico após concluírem o ensino médio?

Correio da Cidadania: O que poderia ser feito no sentido de “modernizar” os ambientes escolares e oferecer um ensino mais conectado ao que está por vir na vida das crianças e adolescentes?

Fernando Cássio: É uma tolice achar que toda traquitana tecnológica que alguém inventa tenha que ser imediatamente inserida nas escolas. Se existe algo que deveria ser mantido nas escolas é a sua mais importante característica: um tempo próprio, que é diferente do tempo do mundo. Isso além de laboratório, biblioteca, quadra coberta, internet rápida, sala ambiente, materiais e equipamentos, computador que funcione, recurso para projeto extracurricular, política de permanência para estudante trabalhador, professor valorizado, gestão democrática etc.

É incrivelmente desonesto dizer que a única forma de conectar a escola com o mundo do trabalho é desmontar a formação existente para colocar um pastiche de ensino profissionalizante no lugar. A operação de trocar tudo o que a escola já produziu por um conjunto de quinquilharias da moda prescritas por um currículo centralizado não melhora a qualidade da educação. A ideia é, na verdade outra: reacomodar a oferta educacional para melhorar a eficiência do processo. Em outras palavras, redução de custos e atingimento de indicadores quantitativos (em patamares iguais ou superiores aos de agora).

Quem decretou a falência do ensino médio público brasileiro não foram os estudantes nem seus professores, mas os “especialistas” das fundações e institutos empresariais chancelados pelos governos. Esses arautos da inovação pedagógica – que nunca pisaram numa escola pública e nunca alfabetizaram ninguém – pontificam que, na escola do século 21, tudo deveria ter utilidade imediata.

E quem disse que tudo aquilo que se aprende na escola deve necessariamente ter uma serventia imediata? Qual a serventia imediata de se estudar álgebra, filosofia, arte, modelos atômicos, literatura? Dentro da lógica da utilidade para o mundo do trabalho, qual será o lugar de aprender as coisas por gosto ou prazer? Numa escola onde toda ênfase recai sobre o “projeto de vida”, vai sobrar algum tempo para pensar na vida?

Correio da Cidadania: Que balanço você faz da gestão da educação pública nos tempos da pandemia? Não está se criando um apagão, um buraco, na vida escolar de uma geração que mais tarde se manifestará tanto em comparação com os estratos sociais superiores como em relação ao mesmo estrato social da geração anterior?

Fernando Cássio: Sem dúvidas. Mas o discurso do apagão foi totalmente apropriado pelos produtores de clichê do debate público, aninhados nas secretarias de educação e nos escritórios de institutos e fundações empresariais. São eles os mais engajados no trabalho de mostrar o óbvio: que a pandemia prejudicou a aprendizagem e a saúde mental dos estudantes.

No estado de São Paulo, a Secretaria da Educação passou todo o ano de 2020 fazendo jogo de cena. Muito anúncio e pouca política pública. A execução orçamentária da Seduc-SP em 2020 foi muito aquém do esperado, o que explica o baixíssimo investimento em reformas das unidades escolares com vistas a uma retomada das atividades presenciais com condições sanitárias.

O governo alega que distribuiu R$ 1,5 bilhão diretamente às escolas via PDDE Paulista, mas se dividirmos esse recurso pelo número de escolas da rede, cada uma não terá recebido mais do que R$ 300 mil para a manutenção de suas atividades, compra de insumos e contratação de pequenas reformas e serviços de manutenção. Isso pode parecer muito dinheiro aos olhos de uma diretora de escola acostumada à carestia e habituada a diluir o detergente de louça, mas é pouco diante do custo de uma obra de porte maior, que deveria ser licitada pela administração central.

O governo paulista levou um ano para iniciar a distribuição de chips de internet para os alunos. Foram vários anúncios em 2020, mas a distribuição só foi iniciada em fevereiro de 2021. O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo apurou que, ao longo de 2020, 80% dos estudantes da rede estadual não passaram mais que duas horas conectados ao aplicativo oficial da Seduc-SP. Tecnicamente, portanto, podemos falar em evasão escolar massiva induzida pelo Estado. Sim, o governo do estado mais rico do país, com a rede supostamente mais bem estruturada, a burocracia mais profissional e a gestão de dados mais sofisticada permitiu que 80% dos alunos da rede permanecessem sem acesso à escola durante um ano.

Quando confrontado com os fatos, o governo de São Paulo ataca não os fatos – tentando argumentar que está com a razão –, mas os críticos que apresentam os fatos. Quando a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) demonstrou que o governo de São Paulo estava maquiando os coeficientes de incidência de Covid-19 entre professores para dar a impressão de que as escolas eram ambientes mais seguros do que eram de fato, a Seduc-SP fez pouco caso da pesquisa e colocou em dúvida a seriedade dos pesquisadores. No fim, mudou o próprio sistema de vigilância epidemiológica para impedir a comparação dos números oficiais com os obtidos por grupos de pesquisa independentes.

Assim, o grande empenho do governo de São Paulo em manter aquecida a pauta da retomada das atividades presenciais nas escolas é uma forma de esfriar as outras pautas. A própria implantação do Novo Ensino Médio serve como estratégia diversionista para saturar o debate público com outras pautas e tirar o governo Doria da defensiva. A imprensa se ocupa com os demais assuntos e esquece que a Seduc-SP não fez o mínimo para garantir o ensino remoto durante a pandemia e tampouco para garantir um retorno seguro às escolas.

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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