Os novos maragatos
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por Mário Maestri
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O Rio Grande do Sul nasceu da criação pastoril. Em 1682, guaranis missioneiras atravessaram o rio Uruguai, fundaram os Sete Povos e iniciaram o pastoreio comunitário no noroeste gaúcho. Anos mais tarde, com a descoberta das Minas Gerais, paulistas desceram pelo litoral para buscar o gado missioneiro.

No litoral, em Viamão, e, a seguir, na Campanha, sesmarias foram doadas aos apaniguados do poder. Os territórios sulinos tinham donos. A Serra e o Planalto eram terra dos jês. Guaranis viviam nos vales dos rios e nas margens das lagoas. Os pampas eram ocupados por minuanos e charruas. Essas comunidades foram escorraçadas, massacradas, aculturadas.

Desde 1780, a produção de charque permitiu que as estâncias se esparramassem pela Campanha. Os campos de Cima da Serra vendiam mulas para Sorocaba. Em 1801, as fazendas coletivas missioneiras foram expropriadas por latifundiários sulinos.

Os criadores tornaram-se a classe hegemônica gaúcha. Tão bem geriram a peonada, que ela jamais exigiu a partição das terras. Por três vezes, os gaúchos pobres morreram lutando guerras de seus patrões. Senhores do Pampa, os criadores mantiveram o mais longo conflito separatista. Mesmo derrotados em 1845, controlaram o poder regional, na segunda metade do século 19.

Gaspar Silveira Martins corporificou o poder do latifúndio. Mesmo sob gabinetes conservadores, garantiu a satisfação das reivindicações pampeanas. Nos anos 1885, a fronteira foi ligada a Rio Grande por estrada de ferro, impulsionando a sua produção charqueadora.

Desde meados do século 19, o dinamismo da propriedade colonial-camponesa avançava o norte em relação ao sul gaúcho. Logo, numa deliciosa metáfora, a banha do desengonçado porco serrano ganhava ao charque do nobre animal do Pampa, a cancha reta das exportações!

Em fins do século 19, Porto Alegre consolidou-se como centro urbano do setentrião sulino. Apesar da importância econômica do porto de Rio Grande, Bagé era a capital da pátria latifundiária gaúcha.

A República permitiu radical reorganização política do RS. A ascensão castilhista apoiou-se em grupos sociais mais dinâmicos do que o latifúndio - agricultura; comércio; criadores serranos; policultura etc.

Derrotados nacionalmente, em 1845, os criadores viram, em 1889, o governo regional escapar-lhes das mãos. Indignados, em 1893, tentaram reconquistar militarmente o poder.

Bagé foi a capital da reação anti-republicana. Na cidade, em 1892, Gaspar Silveira Martins fundou o Partido Federalista. Foi para ali que se transferiu o governo, naquele ano, quando do ocaso do Governicho, efêmero retorno dos anti-castilhistas ao poder.

Após a volta de Júlio Castilho, os criadores invadiram o RS, em fevereiro de 1893, desde suas fazendas uruguaias. O general Joca Tavares, proprietário de imensas estâncias em Bagé, chefiou militarmente a invasão.

Alguns dos maiores combates deram-se naquela região. Em novembro, Joca Tavares derrotou tropas republicanas, perto da Estação Rio Negro. A seguir, três centenas de combatentes republicanos foram vilmente degolados.

A derrota maragata expressou o atraso do latifúndio. As tropas rebeldes formavam-se com os peões armados, não raro, de lanças. Como uniforme, portavam o lenço vermelho maragato. A Brigada Militar formou-se segundo os princípios da guerra moderna, com soldados profissionais e especialização de tarefas.

A guerra latifundiária fez umas doze mil vítimas, numa época em que o RS teria um milhão de habitantes. Até hoje, os grandes fazendeiros não realizaram a auto-crítica pela mortandade que causaram. Após a derrota, enfurnaram-se nos Pampa, em longo ostracismo político.

Durante a I Guerra, a economia pastoril expandiu-se para, a seguir, decair. Intransigentes, os criadores exigiram que os recursos estaduais fossem transferidos para o pastoreio decadente. Em 1921, em Bagé, iniciaram a formação da Federação das Associações Rurais, para melhor defender suas reivindicações.

Borges de Medeiros resistiu às pressões e, em 1923, os latifundiários insurrecionaram-se, novamente, querendo motivar intervenção federal. Exigiam a partição do poder, compreendendo-se sem forças para controlar o governo.

Pela terceira vez, o peão pobre morreu, de lenço vermelho ao pescoço, em luta que não era sua. E, novamente, os latifundiários foram derrotados. Em novembro, em Bagé, aceitaram a mediação federal. Borges de Medeiros permanecia no governo e não seria reeleito.

Nas últimas décadas, os criadores reorganizaram-se em torno da defesa do latifúndio. Vitoriosos nessa batalha, mergulharam o meridião sulino na depressão e comprometeram o dinamismo do RS. Território despovoado de capitais e de braços, a produtividade e o consumo da Campanha são miseráveis.

De 1994 a 1998, o latifúndio resistiu à ofensiva do MST. FHC e Britto vestiram as bombachas do fazendeiro, opondo-se à reforma do latifúndio. Na defesa do passado, Bagé transformou-se em trincheira simbólica da grande propriedade. Em agosto de 1998, milícias pastoris fecharam as porteiras das estâncias ao INCRA, impedindo a aferição da produtividade das propriedades.

Em 1998, com a vitória de Olívio Dutra, pela primeira vez desde a gestão de Leonel Brizola, em fins dos anos 1950, os pobres do campo tinham suas reivindicações apoiadas pelo poder regional.

Na madrugada de 12 de agosto, 380 famílias de miseráveis, armadas da fome de terra e de trabalho, ocuparam a Fazenda Capivara, em Hulha Negra, no município de Bagé. Com mais de 2.000 ha, ela é explorada por uma só família.

Ao longe, sobre um coxilhão, ao lado de camionetas importadas e bandeiras verde-amarelas, armados de modernos celulares, latifundiários assistiram perplexos à peonada pobre enterrar a lança maragata. Por primeira vez na história sulina, a gauchada salta para o outro lado da cerca, para lutar pela terra, e não mais em defesa do latifúndio.

Mário Maestri é professor do Programa em Pós-Graduação em História (Mestrado) da UPF. E-mail: maestri@pro.via-rs.com.br

 


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