Sobre as ocupações de terra
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Ocupar terras e prédios públicos é atos selvagem. O certo é entregar a petição no guichê da repartição pública e aguardar a decisão em casa. Essa conduta civilizada baseia-se em dois pressupostos que não existem na sociedade brasileira: um guichê que funcione e interessados que sempre tenham casa. Então, o que fazer?

Os sem terra estão pedindo, solicitando, requerendo o que a Constituição lhes confere há anos. Seu reclamo é justo. A universidade, a ONU, os bispos, o Papa, todos já condenaram a estrutura fundiária na qual 45% das terras pertencem a apenas 1% dos proprietários. Mas entra ano, sai ano e nada muda. Cem mil famílias vivem atualmente em barracões de lona, na frente de fazendas improdutivas que o Estado brasileiro não desapropria. Quatrocentas mil famílias abandonaram seus pequenos sítios, no ano passado, porque a política agrícola do governo os asfixiou completamente.

No guichê do Incra, não adianta bater, porque o ministro encarregado da reforma agrária responde invariavelmente que não pode fazer mais porque a área econômica não lhe fornece os recursos. No Congresso, nem pensar. A bancada ruralista tem os votos estratégicos para garantir os projetos do governo a troco da intocabilidade da estrutura fundiária. No Judiciário, as desapropriações se eternizam, as reintegrações de posse são fulminantes e os assassinatos de sem-terra ficam impunes.

Como despertar a sociedade para esse descalabro? Se os sem-terra não fizerem algo que chame a atenção da CNN, a BBC e de outras referências externas das elites, ninguém se mexe. Basta dizer que o telejornal da Globo não noticiou a morte do sem-terra que protestava em Curitiba.

Quando a situação chega ao extremo, o MST decide ocupar terras e prédios públicos. Aí é imediatamente acusado de selvagem e a discussão se transfere do substantivo para o adjetivo.

Precisamos desmascarar essa hipocrisia.

As ocupações não são atos selvagens. Nenhum funcionário público saiu ferido em nenhuma delas, de acordo com testemunho dos próprios órgãos de classe. O balanço entre sem-terra e fazendeiros mortos ou feridos nas ocupações de fazendas evidencia claramente quem são os selvagens nos conflitos de terras.

As ocupações são gritos de uma população que adquiriu consciência de seus direitos e cobra da sociedade uma atitude de coerência com os princípios democráticos que diz abraçar.

A indignação do presidente da República e dos seus ministros não decorre de nenhuma preocupação com a democracia, mas sim da mentalidade colonial que ainda persiste nas elites tradicionais e nos altos escalões do governo. Por que razão o ministro da Fazenda se recusa a receber o MST? Será porque um senhor do engenho não trata com negro sublevado?

Até hoje a elite brasileira não consegue admitir que o povo exija seus direitos. Tudo tem de ser concedido, e de cima para baixo. A reforma agrária não é uma dádiva de FHC. É uma determinação constitucional.

A raiva que o MST desperta em uns e a admiração e respeito que desperta em outros vêm precisamente do fato de que ele não aceita a condição subserviente e atua, pacificamente, dentro dos meios de que dispõe. Uma verdadeira democracia se constrói de baixo para cima.


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