Adalberto Martins responde a novo ataque de Josias de Souza ao MST

Da redação

 

O jornalista Josias de Souza voltou a atacar o MST na Folha de S. Paulo, no dia 4 de março. Desta vez, porém, insinuou que o movimento tem a cumplicidade do governo no mau uso dos recursos públicos - ao dizer que o complexo agro-industrial Coocamp está para receber mais R$ 515 mil dos governos estadual paulista e federal, mesmo constatadas várias irregularidades. Para comentar o que significa a nova investida do jornalista e falar sobre os reais problemas e o funcionamento da Coocamp, o Correio entrevistou Adalberto Martins, um dos coordenadores da Concrab (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária no Brasil).

Correio: O que significa o novo ataque do jornalista Josias de Souza na sua opinião?

Adalberto Martins: A atitude deste sr. Jo$ias não é uma atitude isolada e sim muito bem articulada pelo Palácio do Planalto. Depois de amargar quatro anos na defensiva diante dos avanços do MST, o Planalto conseguiu modelar um projeto político para combater a reforma agrária no Brasil. Um projeto que agrada a oligarquia rural e que mantém os princípios neoliberais. Este programa tem nome. Chama-se "Novo Mundo Rural". Tudo se resolve via mercado. O objetivo é conseguir a adesão da massa dos trabalhadores rurais sem terra para soluções individuais, a fim de evitar os acampamentos e ocupações. O projeto formulado aliás pelo Banco Mundial visa narcotizar, desmobilizar a base potencial do MST.

Em torno deste projeto Novo Mundo Rural, o Palácio do Planalto conseguiu construir uma unidade interna nas elites muito forte. As matérias deste sr. Jo$ias precisam ser analisadas nesse contexto.

A primeira onda de denúncias contra o MST ocorreu em maio de 2.000, logo após a ocupação que fizemos das secretarias da Receita Federal em todas as capitais brasileiras. Neste episódio, tivemos a morte do companheiro Antônio Tavares, pela polícia militar do governo Lerner/PR. O governo federal ficou visivelmente fragilizado perante a opinião pública. Nisto, lançou mão da desmoralização do MST, atacando a cooperativa Coagri, localizada no município de Cantagalo/PR. O segundo momento das denúncias, agora com a marca do pedágio, surge justamente quando realizamos em setembro as ocupações dos Incras e a organização do acampamento em frente à fazenda Buritis, de propriedade do presidente. Estas ações foram justamente para cobrar a realização dos acordos assumidos pelo governo federal, testemunhados pela CNBB. Assim, orquestrou-se uma profunda manipulação administrativa dentro do Incra e dentro da Secretaria de Controle do Ministério da Fazenda. Foi neste período que se buscou colocar o MST no mesmo terreno da corrupção que campeia neste governo. Ocorre que esta forte campanha contra o MST tinha também como base não só dar um troco à marca que o MST conseguiu colocar no governo (governo sem palavra), mas também fazer com que esta "paulada no movimento" repercutisse nas eleições municipais, principalmente nas capitais onde o PFL disputaria o segundo turno (Curitiba e Recife).

Por que a mídia está requentando material publicado em setembro e outubro passados? Isto se deve ao sucesso do Fórum Social Mundial e à importantíssima presença das organizações camponeses de todo o mundo neste evento, organizada pela Via Campesina. Sobretudo pelo ato político que desenvolvemos (junto com a Via Campesina) na fazenda laboratório da Monsanto no município de Não Me Toque/RS.

A matéria do sr. Jo$ias agora é uma resposta ao nosso sucesso na luta contra o transgênico colhido durante o Fórum Social e também é uma antecipação às lutas que estão se desenvolvendo pelas mulheres agricultoras rurais, neste mês de março.

Correio: O jornalista falou a respeito da profissionalização do complexo agro-industrial da Coocamp, com uma diretoria escolhida no mercado, o que teria sido exigido em uma reunião entre o MST e o ex-governador Mário Covas há 6 meses, com a presença de José Rainha. O que significou realmente essa reunião?

AM: As pequenas propriedades agrícolas em nosso país, se mantida a tendência atual do modelo de desenvolvimento, estão dadas ao fracasso. Apesar do contexto desfavorável, os assentados, em sua trajetória histórica, buscaram desenvolver experiências de cooperação agrícola de diversos tipos, sendo as cooperativas de prestação de serviços (comercialização, assistência técnica etc.) uma delas. São experiências modestas, mas que solucionaram problemas básicos de nosso povo que a elite brasileira até hoje não conseguiu solucionar.

A Coocamp é um destes agentes econômicos que os assentados, através da cooperação, constituíram na região do Pontal do Paranapanema. Ela congrega 2.900 famílias de assentados em uma região tradicionalmente latifundiária e atrasada do ponto de vista econômico, com um povo miserável, que vivia do assalariamento temporário, com um ganho diário que não chegava a R$ 5,00, quando havia trabalho nas fazendas. Mesmo com um desenvolvimento econômico limitado, dadas as amarras do modelo agrícola atual, a presença de centenas de famílias produzindo a sua subsistência, comercializando seus produtos e recebendo créditos (que só existiram devido à luta política do MST) promoveu o aquecimento econômico dos municípios.

Evidentemente que não é simples organizar o mundo econômico de 5.800 famílias assentadas, presentes em 19 municípios. É um grande desafio, que os métodos clássicos da gestão capitalista não solucionam. Assim, com clareza e com sabedoria, as nossas lideranças compreenderam que o caminho para resistir na terra era a agro-industrialização da produção dos assentados. E assim o fizeram, com a ousadia que marca o MST.

Edificamos um complexo agro-industrial que, para nós, é de grande porte. E com ele vivenciamos os conflitos e as contradições daqueles que ousam organizar os pobres e o mundo econômico destes. Organizar sob uma nova égide que não é o lucro, que não é a concorrência ou a competição. Mas sobretudo organizá-los sob a égide da cooperação, da solidariedade e da resistência política.

Neste percurso, talvez tenha sido a Coocamp uma das cooperativas que mais tiveram retaliações políticas por parte do Estado Burguês. Ora o judiciário, ora o Incra, ora o Governo Estadual, todos em momentos distintos, interferiram a mando das oligarquias pecuaristas, prejudicando o que será o contraponto naquela região ao caminho do atraso imposto pelo latifúndio. Não pensem que os projetos aprovados, a liberação dos recursos, foram um processo sem conflitos. Todos estes passos só avançaram pela força política do MST. Não é o mar de rosas que o sr. Jo$ias coloca em suas matérias. Foram longos anos de enfrentamento político, pois o que está em jogo nesta região é o modelo de desenvolvimento que se quer ali. Até para colocar em funcionamento a citada farinheira/fecularia, o MST teve que ocupá-la, organizar um acampamento com centenas de famílias dentro das instalações, para garantir o processamento da mandioca dos assentados, pois, por uma liminar judicial, a Coocamp não poderia utilizá-la.

Não há uma imposição do governo para esta profissionalização. É sim uma compreensão de que este complexo agro-industrial, para ser administrado, requer pessoas com qualidade que não encontramos no meio de nosso povo sem terra. Isto não quer dizer que o MST não forme seus quadros técnicos. Temos escola em várias regiões para isto. Como também desenvolvemos métodos inovadores de gestão de cooperativas e de pequenas agro-indústrias. Além de termos desenvolvido instrumentos para a pesquisa de mercado tão eficientes quanto outros métodos existentes nas Universidades. Ocorre que este complexo exige uma especialidade que ainda não atingimos em nosso processo interno de formação. Isto não quer dizer que a direção da Cooperativa e do complexo agro-industrial não seja dos assentados. Temos clareza que a direção política permanecerá nas mão dos trabalhadores e não dos técnicos/especialistas.

Este tema da profissionalização da Coocamp tem por trás dois aspectos: um, que é mais evidente, em que se busca caracterizar a Coocamp como uma empresa desorganizada gerencialmente, onde tudo é uma "farra"; o segundo aspecto, nesta má intencionada matéria do sr. Jo$sias, refere-se veladamente ao preconceito de classe que as elites têm dos trabalhadores. Elas não acreditam e não admitem que aqueles que produzem a riqueza sejam aqueles que administram, gestionam e partilham esta riqueza gerada pelo trabalho de cada trabalhador. No fundo, o que o sr. Jo$ias está expressando é justamente esta intolerância das elites frente à organização autônoma dos trabalhadores.

Por fim, devo deixar claro que as negociações com o governo estadual foram positivas e neste momento o governo está compreendendo o projeto de desenvolvimento desejado pelos assentados da região.

Correio: Foi mencionado ainda na citada reportagem que a Coocamp, de acordo com auditoria da Receita Federal, usou indevidamente e não pagou no prazo acordado dois empréstimos feitos pelo governo em 97, no total de R$ 203 mil. Além disso, a cooperativa, que teria recebido empréstimo público de R$ 3,7 mi em 1998 para entrar em funcionamento em agosto de 2000, não estaria ainda operante, tendo sido descobertas várias improcedências no projeto original. Qual a sua avaliação quanto a essas afirmações?

AM: As auditorias se explicam no marco político anteriormente mencionado. Foram organizadas não para verificar se os recursos públicos estavam ou não sendo bem aplicados, mas com um único fim: criar fatos políticos para macular a imagem do MST, de suas lideranças e de seus empresas econômicas. Não somos contra as auditorias. Pelo contrário, estimulamos auditorias internas, não só como elemento de fiscalização, mas também como elemento pedagógico de aprendizagem do processo de gerenciamento. Elas são realizadas pela Concrab e pelas Cooperativas Centrais. Em nossas cooperativas de crédito, freqüentemente realizamos auditorias externas e apresentamos os resultados ao Banco Central. Nenhuma cooperativa nossa auditada recebeu os relatórios. Quando solicitados, a informação que nos era dada é que estavam incompletos, não finalizados.

Outra importante informação que é negada pela mídia refere-se ao fato de que a linha de crédito que o Incra dirigia (Procera) não financiava capital de giro, apenas os investimentos. Longos foram os pleitos que o MST fez para que o Incra abrisse dentro do Procera crédito para capital de giro. De modo que o Incra tem sim grandes responsabilidades pelas dificuldades por que passam as nossas cooperativas. Muitas delas acabam carreando os seus pequenos ganhos para o sistema financeiro (sejam os bancos, sejam agiotas locais), que nos emprestam recursos a juros exorbitantes.

Não basta dizer que a cooperativa tal pegou dinheiro e não conseguiu pagar. Ou que o projeto de financiamento estava incompleto ou errado. No caso da Coocamp, isto é mais grave, pois o enfrentamento político na região é constante e sem trégua. Entre a liberação dos primeiros recursos para a compra da farinheira/fecularia até o vencimento da primeira parcela, não tivemos condições de operá-la pelos sucessivos problemas judiciais que foram criados, sejam por argumentos ambientais, sejam por argumentos de supervalorização da compra das estruturas existentes etc.

A partir de 1997, a Coocamp contraiu os seguintes financiamentos: Complexo Agro-industrial, R$ 3.742.662,50; Caminhões isotérmicos, R$ 237.870,00; Usina de Beneficiamento de Frutas, R$ 407.000,00; Farinheira, R$ 160.324,95; Micro Usina de Leite, R$ 91.246,00. O total foi de R$ 4.639.103,45.

Em geral, estes financiamentos apresentam prazo de 8 anos. Se projetarmos este conjunto de financiamentos devidos, conforme os encargos financeiros destes contratos, teremos um dívida na ordem de R$ 7.812.736,25, o que corresponde a uma dívida anual aproximada de R$ 1.000.000,00. Somente a atividade do laticínio, considerando o seu funcionamento com capacidade operacional de 70 mil litros/Dia (capacidade instalada), nos revela a viabilidade do pagamento destas parcelas anuais.

Portanto, o complexo agro-industrial da Coocamp, mesmo com seu elevado patamar em suas dívidas de longo prazo, apresenta viabilidade econômica para se manter e amortizar as dívidas. Evidentemente que isto só ocorrerá na medida em que o complexo estiver plenamente instalado e com sua capacidade operacional total em funcionamento (prevemos isto para o final de 2002). Obviamente, esta situação não caracteriza desvio de recurso público.

Na Coocamp, ao contrário do desvio de recursos públicos, estamos edificando um complexo agro-industrial que, como qualquer empreendimento econômico, necessita de um tempo de implantação e de maturação. Certamente estes tempos (próprios da lógica econômica), em nossas regiões e em nossas cooperativas, serão maiores, vistos os limites e conflitos que o embate político nos traz. Estamos convictos que estamos no caminho correto e que iremos implantar as nossas cooperativas e o nosso modelo de desenvolvimento no campo. Saberemos resistir na terra, solucionando com medidas simples problemas de nosso povo que as elites, nestes 500 anos, se recusaram a resolver.

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