Reforma da Previdência: qual é o seu
eixo e suas conseqüências

Altamiro Borges

 

O que há de acúmulo?

Já existe acúmulo nos movimentos sociais sobre a origem, os objetivos e efeitos perversos da ALCA. Há consenso de que esta imposição dos EUA representa um atentado à soberania das nações, um novo tipo de colonialismo; uma brutal regressão social; e um virulento ataque à democracia. Apesar do funcionamento “sigiloso” da ALCA, com seus nove grupos de negociação e três consultivos, as negociações vazaram e confirmaram o perigo desta proposta. A ALCA será tão nefasta para o Brasil como o NAFTA foi para os mexicanos; no que for diferente, será para pior. Com base nesta compreensão, o Brasil saiu na frente na campanha contra a ALCA, com as marchas no Fórum Social Mundial em Porto Alegre e o plebiscito que coletou 10 milhões de votos, com a ajuda militante de 150 mil ativistas. Esta rica experiência se irradiou pelo continente, como atestam as crescentes mobilizações em todos os países do continente.

O que há de novo?

Do plebiscito de setembro para cá, muita coisa mudou. A política estadunidense ficou ainda mais agressiva – a sangrenta agressão ao Iraque é a prova cabal. Já a resistência popular na América do Sul também cresceu, com vários levantes socais, como na Bolívia e Paraguai, a derrota do golpismo na Venezuela e, principalmente, através do caminho institucional-eleitoral, com a vitória de Lucio Gutierrez no Equador, de Néstor Kirchner na Argentina e, em especial, de Lula no Brasil. As possibilidades para o avanço desta luta hoje são maiores; mas há inúmeras armadilhas no horizonte. Como diz a nova cartilha da campanha contra a ALCA, “no Brasil, e na América Latina toda, a eleição de Lula mudou um pouco as perspectivas de atuação... O governo precisa de respaldo para assegurar e reforçar a sua posição contra as pretensões hegemônicas dos EUA”. É neste novo contexto, contraditório e complexo, que se enquadra a continuidade da campanha contra este projeto de anexação dos EUA.

Agressividade do Império

O imperialismo estadunidense está cada vez mais prepotente. O documento “A estratégia de segurança nacional”, publicado em 20 de setembro de 2002, evidencia o endurecimento do governo dos EUA. Ele justifica a política de intervenção e agressão militar como indispensável para resolver a crise econômica desta potência, como “estratégia única para conquistar o êxito nacional”. Considera como parte da sua estratégia de segurança nacional a imposição da desregulamentação, abertura comercial, privatizações e movimentação irrestrita de capital nos países periféricos, dependentes. Em tom arrogante, o texto afirma: “Trabalharemos ativamente para levar a esperança da democracia, do desenvolvimento, dos mercados livres e do comércio livre a todos os rincões do mundo... O conceito de livre mercado surge como um princípio moral antes de se converter num pilar da economia”.

Diante dos avanços da resistência popular no continente, das fraturas em setores das classes dominantes latino-americanas e dos resultados adversos em recentes eleições presidenciais, os EUA já sinalizam para mudanças na sua estratégia. Optam pela lógica do “dividir para reinar”. Procuram “bilateralizar” as suas ofertas de acesso ao mercado, reservando aos países do Mercosul as condições menos favoráveis; e tentam utilizar países como Chile e México para enquadrar o Brasil. Isto ficou patente no encontro da ALCA em fevereiro passado. Como explica a cartilha da campanha, a proposta apresentada na ocasião pelos EUA “visa impedir qualquer tentativa dos países de formar grupos de resistência, como a recente iniciativa diplomática brasileira de negociar em conjunto com o Mercosul. Além disso, a proposta busca o enfraquecimento do próprio Mercosul, cujo pleno funcionamento não interessa aos EUA”. 

Ao mesmo tempo em que tentam impor um ritmo mais agressivo para a implantação da ALCA, os EUA reforçam os seus mecanismos protecionistas. É o caso dos volumosos subsídios dados à agricultura, que inviabilizam qualquer capacidade competitiva dos produtos brasileiros e que já obrigou os defensores do “livre comércio” no país a fazerem mea-culpa. Em recente editorial, o insuspeito O Estado de São Paulo reconheceu entristecido: “Há muitos bons motivos pelos  quais o governo brasileiro deveria trabalhar pela formação da ALCA, mas dificilmente se passa uma semana sem que os norte-americanos ofereçam argumentos ainda mais fortes aos que se opõem a esse acordo”. Além da agricultura, os EUA impõem outras medidas não-tarifárias, como leis fitosanitárias e antidumping, para proteger setores fragilizados da sua economia. Entre janeiro e abril de 2003, por exemplo, as exportações de aço brasileiro para os EUA diminuíram 51,6% em relação ao ano anterior, segundo o jornal Gazeta Mercantil.

Estratégia do governo

Frente a estes e outros fatos gravíssimos, que confirmam que a ALCA é uma pura anexação do continente, o novo governo brasileiro adota uma postura nitidamente diferenciada do anterior. Se na política macroeconômica prevalece o continuísmo, com a manutenção do receituário neoliberal e a proposição de uma reforma previdenciária fiscalista e privatizante, na política externa o governo Lula tem apresentado uma posição mais avançada, mais altiva, em defesa da soberania nacional. Isto é um fato, apesar de todo o jogo de contradições, reconhecido por vários setores da sociedade. No artigo “A política externa em boas mãos”, o economista Paulo Nogueira Batista Jr. afirma que “onde estão ocorrendo mudanças positivas é na área da política externa. Nesse campo, o governo Lula começou a se distanciar da orientação de FHC”.

Já a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), na sua “análise de conjuntura”, argumenta que “fora da política econômica, há alentadores sinais de mudança em relação ao governo anterior. Destaca-se a política externa, que tem priorizado a defesa da soberania e dos interesses do Brasil. Mudanças internas no Itamaraty e o ritmo mais lento nas negociações da ALCA podem levar à rejeição de uma proposta nos mesmos moldes do NAFTA... Além disso, o arquivamento do acordo de concessão aos EUA da base militar em Alcântara/MA confirma a opção por uma política externa soberana, que pode tornar-se um dos eixos estruturantes das mudanças, na medida em que conquistar o apoio para o desenvolvimento do Brasil”.

Quanto à decisão de protelar as negociações da ALCA, tudo ainda é muito nebuloso e enrustido. Surgem na imprensa alguns sinais neste rumo – e, como diz o ditado, onde há fumaça, há fogo! A decisão do governo Lula de remeter temas essenciais para os EUA – serviços, investimentos, propriedade intelectual, compras governamentais – para a esfera da OMC inviabiliza as negociações da ALCA. Seria a resposta à prepotência norte-americana, que anunciou que não negociará na ALCA as questões do subsídio agrícola e das leis não tarifárias, de interesse do Brasil, também remetidas à OMC. Se estas decisões vingarem, os prazos para a ALCA empacarão de vez! Na OMC, a disputa interimperialista é maior e o tempo de negociação é bem mais dilatado.

Se esta tendência se confirmar, o estardalhaço da mídia sobre o recente encontro dos presidentes Bush e Lula, que teria reafirmado o prazo de 2005 para vigência da ALCA, não se justifica. Como argumenta João Pedro Stedile, dirigente do MST, este alarde “trouxe muita confusão e certo desânimo na militância”. Para ele, o que houve de fato nesta reunião “foi pura encenação. Nada de importante foi assinado ou avançou”. A mesma opinião é compartilhada pelo sociólogo Emir Sader, idealizador do Fórum Social Mundial, para quem o encontro foi “uma conversa de protelação”, em que “tudo cheira a blefe de parte a parte”. Mais incisivo ainda é o embaixador brasileiro nos EUA, Rubens Barbosa, que presenciou a reunião. “Não sei de onde tiraram isso de que houve uma mudança, um recuo”. Segundo garante, “a ALCA apareceu na reunião de passagem” e “nós reafirmamos nossa posição sobre o rumo das negociações”.

No campo político, o governo também manobra para reforçar seu projeto de integração. Não vacilou em receber Néstor Kirchner na véspera da eleição na Argentina e em aprovar investimentos de US$ 1 bilhão no estratégico país vizinho, numa nítida ação para dinamitar Carlos Menem, o homem que se gabava de ter “relações carnais com os EUA”. Também teve papel ativo no enfrentamento da crise na Venezuela, contrapondo-se aos golpistas, ajudando a furar o lockout petroleiro e aprovando um empréstimo de US$ 1 bilhão para infra-estrutura no país irmão. No caso de Cuba, o governo escapou das armadilhas dos EUA, evitando condenar as medidas contra os “dissidentes” e ainda propôs o ingresso de Cuba no Grupo do Rio. O Brasil também rejeitou proposta dos EUA de incluir as FARC na lista de organizações terroristas.

O jogo de pressão no campo das relações internacionais como se vê é pesado. As chantagens do “deus-mercado” são violentas; as ameaças do Império são implacáveis. Num mundo cada vez mais “globalizado”, sob a hegemonia do vampiro neoliberal, as relações externas tornam-se um eixo estruturante de qualquer projeto de mudança, como aponta a CNBB. Para fazer vingar a integração latino-americana, o sonho da Grande Pátria de Simon Bolívar, será preciso pavimentar um poderoso campo de pressão popular para se contrapor à violenta pressão do capital. Do contrário, mais uma vez na história este projeto não vingará. Neste sentido, os movimentos sociais devem reforçar a resistência, preservando a sua autonomia; mas, além disso, necessitam também apresentar suas propostas concretas. No atual quadro de forças, faz-se necessário combinar resistência e alternativas.

Tática do movimento social

Como se observa, desde a realização do vitorioso plebiscito contra a ALCA, em setembro, muita água rolou em nosso continente. O império ficou ainda mais agressivo, mas nossa resistência também avançou. Hoje se discutem, inclusive, alternativas à ALCA. Diante deste novo quadro, carregado de possibilidades e cheio de armadilhas, quais os desafios dos movimentos sociais brasileiros? De cara, antes mesmo de elaborar um plano concreto de ação, é preciso definir nossa estratégia de atuação. Nela ganha relevo a necessidade vital de garantir a autonomia dos movimentos sociais, não confundindo sua ação com a do novo governo.

Nem governos mais radicalizados, como o de Hugo Chávez na Venezuela, tiveram forças até agora para romper formalmente com as negociações da ALCA. No caso do novo governo brasileiro, condicionado por inúmeros obstáculos e marcado pela intensa disputa entre continuidade e mudança, o jogo de pressão será ainda mais violento. Dois extremos seriam fatais para os movimentos sociais. O primeiro é o do apoio passivo, da confiança cega nos novos governantes, o que fragilizaria a nossa capacidade para pavimentar o indispensável campo de pressão popular por mudanças, contra a ALCA. O segundo, também pernicioso, é o do voluntarismo infantil, que não leva em conta as mudanças efetuadas e a real correlação de forças.

Feitas estas ressalvas, de caráter estratégico, o plano concreto de luta contra a ALCA já aparece desenhado. As propostas apresentadas por João Pedro Stedile, dirigente do MST, indicam o caminho da continuidade da campanha. Entre outras medidas, ele propõe ocupar os novos espaços que se abrem na sociedade para ampliar a luta contra a ALCA – com debates nas rádios e TVs, nas universidades, no parlamento; reforçar a coleta de assinaturas exigindo a convocação do plebiscito oficial sobre o tema; trabalhar pela aprovação do projeto de plebiscito do então senador Saturnino Braga; participar ativamente da mobilização mundial contra a ALCA/OMC que ocorrerá entre os dias 09 e 13 de setembro. Apesar das armadilhas, as condições para o êxito da luta contra este projeto dos EUA de anexação do continente são melhores do que ontem! (Texto resultante de apresentação do autor no Curso Nacional de Formadores da Campanha Contra a ALCA, realizado em 5 de julho, com a presença de aproximadamente 70 lideranças do MST, CUT, Pastorais Sociais da Igreja, ONG’s e outros movimentos sociais brasileiros).

 

Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e organizador do livro “Para entender e combater a ALCA” (Editora Anita Garibaldi, 2002).

 

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