Coqueiro anão-precoce,
uma árvore de esquerda
Rodolfo Salm
É muito bom de vez em quando viajar pelo Brasil, e, ao voltar para
casa, divulgar alguma boa idéia ou experiência de sucesso, ainda que
ecologicamente irrisória se comparada às forças motrizes da
devastação. Pega melhor do que criticar o governo, as ONGs ou a
estupidez da grande imprensa. Mas sou responsável por um terço dos
artigos desta coluna semanal e, de volta à região Sudeste, tão cedo
não poderei escrever como testemunha ocular do que se passa na
Amazônia. Então, enquanto busco verba para levar mais mudas de coco
para outras aldeias na terra dos Kayapó (junto ao governo federal e
dependendo de ONGs), passo diretamente à minha última opção: criticar
a Folha de São Paulo.
Especificamente, pretendo descascar a pérola “Dialética da Natureza –
preconceitos cercam a árvore de direita”, do jornalista Ricardo
Bonalume Neto, publicada no caderno Brasil de domingo, 30 de abril. O
caderno em questão foi dedicado à exaltação do cultivo do eucalipto e
à critica ao protesto do MST nas instalações da Aracruz Celulose. O
jornalista abre o texto com a seguinte gracinha: “Os coalas ficariam
indignados se soubessem o que a esquerda brasileira está falando do
eucalipto, cujas folhas são sua principal fonte de alimentação (...)
acreditem, coalas: a bela e altaneira árvore nativa da Austrália foi
tachada de árvore de direita, e suas florestas no Brasil foram
apodadas de desertos verdes”. Para o jornalista, o delírio acima seria
a visão do universo arbóreo que justificaria o ato das mulheres da Via
Campesina.
Não há espaço aqui para citar cada uma das bobagens usadas pelo
jornalista para atacar a idéia de que o eucalipto é especialmente
prejudicial à biodiversidade ou ao equilíbrio hídrico do meio: em
resumo, são flashes do tipo de produção científica cercada de
interesses, à qual se referiu o sociólogo e professor na UFMG Antonio
Julio de Menezes em recente artigo sobre o protesto do MST publicado
no Correio da Cidadania (edição 495). Sua fonte é Walter de Paula
Lima, um pesquisador da Esalq-USP (Escola Superior de Agricultura Luiz
de Queiroz da Universidade de São Paulo), templo de adoradores do
eucalipto.
Revoltou-me especialmente uma escorregada do pesquisador, repassada ao
grande público pelo ignorante jornalista da Folha: “Deserto verde é
duplamente errado. Deserto é onde não chove, se é verde, não pode ser
deserto”. Diferentemente de Walter, Ricardo não tem a obrigação de
entender de ecologia, fotossíntese ou evapotranspiração, mas a nossa
língua é seu instrumento de trabalho. Mesmo que tivesse dúvidas, se
consultasse o dicionário Aurélio, descobriria que “deserto” é, antes
de tudo, um “local desabitado, despovoado, ermo, solitário”. É
justamente isso que são as monótonas culturas florestais para a
produção de celulose. Acertou o MST, ao manifestar-se contra “as
enormes plantações de eucalipto, acácia e pinus para celulose, que
cobrem milhares de hectares no Brasil e na América Latina, onde o
deserto verde avança e a biodiversidade é destruída”.
Quanto ao artifício de tentar ridicularizar o movimento,
atribuindo-lhe o delírio de projetar ideologias políticas sobre um
vegetal, eu aceito a provocação. Tudo bem, o eucalipto é uma “árvore
de direita”. Mas com uma ressalva: ele tem esta posição política aqui
no Brasil, onde serve principalmente ao agronegócio, e não na terra
dos coalas australianos, onde cresce naturalmente, dividindo o espaço
com inúmeras outras espécies de vegetais, alimentando e abrigando a
fauna singular daquele continente isolado.
Da última vez que votei para presidente, entre Lula e Serra (que eu
pensava serem a esquerda e a direita), optei por Lula, imaginando que
seu governo causaria menor perda de km2 de floresta amazônica. Além da
esperança no PT (infantil, é fácil dizer agora), que compartilhava com
muitos de seus eleitores, com relação ao Serra, tinha medo da promessa
repetida por ele de concluir no seu mandado a pavimentação da rodovia
Cuiabá-Santarém (que passa pelos fundos das terras Kayapó e está
gradativamente separando-as do grande bloco de florestas da Amazônia
Central e Ocidental). Não errei de todo nas previsões, pois a
pavimentação da Cuiabá-Santarém não deve ser concluída até o fim do
governo (não sei se por incompetência no planejamento ou por
consciência ecológica). Talvez com o Serra estivesse.
Nunca saberemos a área de floresta que seria perdida no governo que
não aconteceu. Mas tenho motivos para acreditar que ela seria menor
que aquela devastada com Lula. Isso porque, em 2002, enquanto eu
sonhava com uma “moratória” dos desmatamentos no governo do PT, os
fazendeiros, com pesadelos pelo mesmo motivo, desmataram tudo o que
puderam antes que Lula assumisse. Logo ficou claro que o governo atual
não se diferencia substancialmente do anterior no que se refere ao
meio ambiente, e as taxas de desmatamento baixaram para seus patamares
“normais”, que correspondem ao crescimento da população e (agora mais
do que nunca) do agronegócio. Também não imagino um Serra presidente
tão estupidamente omisso e calado quanto Lula sobre a questão dos
desmatamentos na Amazônia. A oposição às políticas ambientais
dificilmente seria tão conivente e patética quanto esta, que
simplesmente ama e aceita a ministra do meio ambiente Marina Silva —
uma boa-moça esforçada, mas inoperante, sobre uma máquina emperrada.
Dando seqüência ao delírio dos coalas falantes e das plantas
politizadas, imagino que, dependendo do contexto, qualquer espécie
poderia ser “de direita” ou “de esquerda”. Como não pensaria o
coqueiro, plantado pelos Estados Unidos em extensas monoculturas para
a produção de nitroglicerina para dinamites ou nalpam para conter a
todo custo o avanço comunismo, para a dor e desespero dos vietnamitas
queimados? Já o coqueiro-anão-precoce, ideal para o consumo doméstico
de sua água, especialmente se plantado com recursos públicos para o
benefício de populações carentes, é, sem dúvida, uma árvore de
esquerda.
Rodolfo Salm, doutor em Ciências Ambientais pela Universidade
de East Anglia e pela Universidade Federal de São Carlos, é
pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi.
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