A metáfora do muro
Rodolfo Salm
Uma estrada com um muro de cada lado e, além dos muros, a grande
floresta tropical preservada. Estrada, muro e floresta, aparentemente
três substantivos concretos que, justapostos, constroem uma imagem de
desenvolvimento, ordem e preservação ambiental. Esta foi a idéia que
nos ofereceu a ministra Marina Silva em 5 de junho último, quando
anunciou oficialmente o licenciamento para a pavimentação da rodovia
Cuiabá-Santarém (BR-163) e, ao mesmo tempo, a criação do Parque
Nacional do Juruena, no limite sul da floresta amazônica. Mas atenção!
Se a estrada, aberta pelos governos militares na década de 1970 e até
hoje praticamente inutilizável (mas já causando extensos desmatamentos
na região), é concreta e será pavimentada em breve, o muro é abstrato,
pois se trata de uma metáfora, como as futebolísticas do presidente.
A criação do Parque Nacional do Juruena, com 1,9 milhão de hectares,
encaixado entre a Terra Indígena Cayabi (a leste) e o Parque Estadual
Sucundurí (a oeste), foi proposta pela primeira vez durante o governo
FHC e contava com a oposição de políticos matogrossenses, que devem
ter ficado muito satisfeitos com a troca casada da sua criação com o
licenciamento da rodovia. Segundo os planos anunciados pelo Ministério
do Meio Ambiente, o parque seria o “tijolo final” de uma seqüência de
unidades de conservação e terras indígenas que acompanha quase toda a
extensão da divisa do Mato Grosso com o Pará e o Amazonas, protegendo
a entrada da floresta na fronteira dos estados do avanço da frente de
desmatamentos. A criação de novas áreas protegidas deve ser sempre
comemorada, especialmente quando têm dimensões na casa dos milhões de
hectares e se estiverem conectadas a outras unidades de conservação ou
terras indígenas. Mas reparem que a metáfora é ardilosa.
Querem que, com ela, engulamos o licenciamento da BR-163, no Dia
Internacional do Meio Ambiente, comemorando o tal tijolo do muro
imaginário de florestas. Acontece que, do outro lado do muro, já passa
uma outra estrada, e passarão cada vez mais. É também possível fazer,
ao longo desta série de áreas protegidas do sul da floresta amazônica,
um portãozinho aqui e outro acolá, a exemplo do que aconteceu com a
estrada do Colono, que corta o Parque Nacional do Iguaçu, no Sudoeste
do Paraná. Esta estrada, aberta década de 50, foi interditada em 1986
por uma ação do Ministério Público Federal, devido à pressão de
ambientalistas, para ser reaberta no começo do governo Lula, apesar
dos apelos contrários.
A questão é que este governo se mostrou absolutamente incompetente na
contenção das taxas de desmatamentos na Amazônia. Se as taxas caíram
recentemente, como a ministra nos anunciou, estou convicto de que isso
se deu principalmente pela crise do agronegócio, e não por uma suposta
melhora na fiscalização nem pelo sucesso de ações policiais isoladas
do tipo Operação Curupira. E ainda somos obrigados a ouvir o
secretário de Biodiversidade e Florestas, João Paulo Capobianco,
comemorando: “fechamos a fronteira sul da Amazônia”, como se os
desmatamentos estivessem controlados na região.
Para quem gosta de metáforas ecológicas, um alerta: a metáfora do muro
de matas será em breve substituída pela do “corredor”. Sim, porque as
pressões sobre esta seqüência de áreas protegidas não virão apenas do
sul, mas também do norte e, nas próximas décadas, os seus dois lados
estarão ocupados e ela se parecerá mais com uma faixa de florestas em
uma matriz de áreas desmatadas do que com um muro protetor. Os
ambientalistas mais adiantados já trabalham com a idéia de corredores
ambientais, que permitiriam o fluxo gênico entre áreas remanescentes,
conectadas. Mas até o corredor ecológico também não deve durar muito.
Sob condições climáticas adversas de seca intensa, como aquela que
testemunhamos ano passado no estado do Amazonas, agravadas pelos
desmatamentos, aumentarão em muito as probabilidades de incêndios
florestais nas áreas remanescentes. E os desequilíbrios climáticos
devem ser intensificados, pois a imensa maioria das terras amazônicas
segue desprotegida.
Com uma extensa superfície de contato com áreas intensamente
exploradas, o muro, ou o corredor, mais cedo ou mais tarde se
esfacelará e seus pedaços menores, “fragmentos florestais” ou “ilhas
de floresta”, como as atuais diminutas reservas de Mata Atlântica. O
agravante é que essas futuras ilhas não contarão com a proteção da
umidade trazida do mar, o que facilita a preservação da floresta
próxima ao litoral. Acho que esta é a comparação mais realista: o que
resta das florestas do sul da Amazônia e da Amazônia Oriental se
desmanchará como pedras de gelo sobre o asfalto quente da rodovia
Cuiabá-Santarém.
Rodolfo Salm, doutor Ciências Ambientais pela Universidade de
East Anglia e pela Universidade Federal de São Carlos, é pesquisador
do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Clique
aqui para comentar este artigo.
Home |
|