Correio da Cidadania

As forças armadas e o governo Bolsonaro (1)

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“A sedução da ditadura é um dos malefícios contra o qual nos devemos precaver, opondo-lhe a clareza do pensar crítico, sob a forma de interpretação logica do curso histórico. Tal sedução apresenta graus variáveis em suas manifestações. Vai desde os casos mais primários, expressos em julgamentos obtusos como estes: “Só matando esses canalhas é que este país endireita”, “É preciso um pulso de ferro para botar isto nos eixos” e infinitos outros do mesmo jaez, até as insinuações mais elaboradas, que se dão conscientemente em forma de doutrinas totalitárias, passando pelas modalidades intermediárias da prédica jornalística ou parlamentar de estados de exceção, como recurso extremo para a revisão moral da máquina administrativa e expurgo dos elementos maculados”. Álvaro Vieira Pinto, Consciência e realidade nacional, 1960

O apelo ao caráter institucional das forças armadas ecoou com ímpeto renovado na semana passada; sua essência liberal-burguesa é tão indiscutível quanto impotente. Na América Latina, somente a amnésia histórica, a completa ignorância ou a cínica cumplicidade com a ordem dominante poderiam afirmar ou defender a institucionalidade das forças armadas. Afinal, em nosso continente, as ditaduras, o terrorismo de Estado, o intervencionismo dentro e fora do país foram e seguem sendo precisamente executados pelas forças armadas e não, necessariamente, sob a proteção das constituições.

Portanto, forças armadas neutras, institucionais ou despolitizadas não passam de ilusão perigosa e fatal para as classes populares. No contexto latino-americano, o brado liberal pela institucionalização das forças armadas revela também enorme ignorância sobre a dominação imperialista, o meticuloso acompanhamento realizado pelo Instituto de Cooperação e Segurança do Hemisfério Ocidental (Western Hemisphere Institute for Security Cooperation) e, em alguns casos, o controle direto que as forças armadas da região sofrem desde Washington.

A raiz da troca de ministros da área militar operada por Bolsonaro é considerada por muitos como “crise militar”. Ciro Gomes, por exemplo, julgou o episódio como um sinal de que “os militares estão se desencantando com as loucuras que Bolsonaro tem praticado no Brasil” e, ademais, seria uma indicação de “que eles querem retornar o melhor respeito que sempre deveriam ter merecido se não fora a aventura, o equívoco, de terem hoje quase 4 mil militares da ativa dentro do governo”. Para concluir, afirmou que a troca de vários comandantes com uma canetada só, enviava para “dentro da tropa... uma mensagem inequívoca de que eles não aceitam - e eles representam a liderança formal daqueles que estão na ativa - o apelo golpista dos setores bolsonaristas que querem envolver as forças armadas na politicagem”.

O postulado que nega o envolvimento “das forças armadas na politicagem” é tão simpático quanto ingênuo. Afinal, 11 mil militares – da ativa e reserva – em postos de governo (nos três poderes), assinalam até mesmo para o mais desavisado acadêmico algo que parece faltar ao candidato presidencial do PDT: realismo elementar. A magnitude do fenômeno (11 mil militares segundo informação do TCU, outras fontes indicam 6.000), aliado ao protagonismo político das forças armadas nos últimos anos, não nos subsidiam para afirmar que estamos diante de uma “aventura” da cúpula militar, mas de algo mais estendido e profundo que o envolvimento na “politicagem” nacional.

Lula manteve sepulcral silêncio. Nesse caso, de fato, não é necessário declaração alguma para avaliar o que ele pensa sobre a situação atual, afinal o ex-presidente foi durante 8 anos o comandante em chefe das forças armadas. Ninguém poderá livrá-lo da responsabilidade de não ter durante sua longa presidência (e outros 6 de Dilma), sequer um esboço de uma nova doutrina militar para o Brasil.

As declarações de Lula sobre os militares se resumem a temas relativos ao orçamento das forças armadas e ao respeito que ele manteve ao não interferir na sua dinâmica interna. É preciso dizer mais? Ambos – Lula e Dilma – são responsáveis diretos pela impunidade que protegeu os crimes de militares durante 21 anos de ditadura. Nem sequer tocou no nervo da questão a Comissão da Verdade constituída por Dilma, que, sabidamente, sofreu na carne a prisão e a tortura. Mas também não podem negar a responsabilidade pela atual hegemonia no interior da caserna.

Na verdade, Lula e Ciro apenas expressam a visão corrente entre os políticos brasileiros. Expressam também as ilusões inerentes à esquerda liberal sobre a natureza do Estado e a função das forças armadas. O primeiro acumula responsabilidade direta sobre a situação atual dos militares, afinal, todos os generais que brilham no governo Bolsonaro foram promovidos e tiveram posições de mando em governos petistas. Não há notícia – aberta ou reservada – de um único documento ou iniciativa presidencial destinado a enfrentar o decisivo tema da formação de nossos militares e o objetivo estratégico de uma doutrina militar em tempos de democracia burguesa. Nenhuma linha! Nenhuma ação! Portanto, a continuidade da formação militar e a doutrina que a informa durante a ditadura e no período da democracia liberal burguesa é completa!

Não se trata de um descuido. Tal ausência é consequência direta da renúncia do petismo em lutar pelo poder, restringindo-se, miseravelmente, a manter seus governos. De fato, os governos petistas não produziram qualquer mudança nas estruturas do Estado brasileiro em favor das classes subalternas; ao contrário, produziram mudanças estruturais que fortaleceram a classe dominante. Portanto, a ausência de uma única iniciativa destinada a mudar a formação dos militares brasileiros e o esboço de uma nova doutrina militar não é um descuido, mas, precisamente consequência necessária da concepção liberal de política que defendem.

As ilusões liberais hoje

A crise da república burguesa é visível; no entanto, os políticos vulgares semeiam a ilusão de que a eleição de um novo presidente com algum compromisso popular e respeitoso da liturgia do cargo em 2022 poderia colocar as coisas no eixo. É grave engano, mesmo quando bem intencionado! A crise da república burguesa é produto do avanço do capitalismo dependente rentístico que não visualiza saída fácil no curto prazo. As dores do parto inerentes ao surgimento de um novo regime político, em consequência, serão sentidas durante um tempo considerável entre nós. Não devemos, portanto, excluir qualquer movimento das forças armadas do quadro geral da crise e da transformação do regime político agora em curso.

A esquerda liberal ignora a crise do sistema político; considera a eleição de Bolsonaro um ponto fora da curva e jamais o próprio movimento da curva! Ora, o enorme protesto popular de junho de 2013, a virada recessiva imposta por Dilma em janeiro de 2015, sua destituição em agosto de 2016 e a eleição do protofascista em 2018 são considerados acidentes de percurso, mera tentativa de forças aleatórias ou contingentes de subverter a paz da república por fora de seu dinamismo interno. É claro que ocorre precisamente o oposto: nenhum desses eventos pode ser devidamente analisado e compreendido fora da crise da república burguesa e, no limite, da incompatibilidade entre o sistema político e a dinâmica da acumulação de capital decorrente do capitalismo dependente rentístico. Todos os eventos mais marcantes e muitos outros de “menor” importância representam precisamente a crise em movimento. Qual crise? A crise da república burguesa apodrecida até sua medula.

Há forças concretas na sociedade brasileira que não mais acreditam na capacidade de autorregeneração do sistema político – parlamento, tribunais, executivo, imprensa, governos estaduais etc. – razão pela qual conspiram e bradam abertamente pela volta da ditadura ou de um estado policial de perfil e conteúdo ainda indefinido. No turbilhão da crise e diante da cumplicidade da esquerda liberal com a podridão do regime político, amplos setores sociais – especialmente marcante entre os trabalhadores – apoiam o projeto do protofascista que ocupa a presidência, pois ele ainda simula bastante bem que permanece em “luta contra o sistema”.

A podridão do sistema político possui expressão cada dia mais clara. Em primeiro lugar o repúdio à política eleitoral que se expressa na quantidade de votos brancos, nulos e no abstencionismo. Em segundo, o efeito da crise cíclica mundial que reduz a capacidade do Estado na periferia capitalista em atender as crescentes demandas populares em defesa da vida e do trabalho. Em terceiro, a emergência da ultradireita com capacidade de interferir no processo eleitoral e ambição de construir um movimento de massas. Finalmente, o desgaste da esquerda liberal em escala continental com notória incapacidade de oferecer uma alternativa real de poder, limitando-se, tão somente, ao esforço cada dia mais precário de garantir seus governos.

As armas da esquerda liberal diante da crise da república burguesa restringem-se, na prática, à filantropia e à defesa abstrata da democracia. A primeira – a filantropia – é filha de sua luta por “justiça social” nos marcos do sistema capitalista. A segunda – a defesa abstrata da democracia – inscreve-se em sua filiação à democracia como um valor universal. Portanto, os “erros” ou “vacilações” da esquerda liberal ou suas ilusões cada dia mais impotentes diante de fatos elementares da luta política no país, são produto de escolhas estratégicas realizadas nas últimas décadas. Uma esquerda liberal não é uma esquerda socialista ainda que aqui e acolá bradem pelo socialismo como “modelo ideal”. A bandeira do socialismo e da revolução está órfã!

A defesa abstrata da democracia consagra o atual sistema político e antagoniza a esquerda liberal com setores importantes das classes subalternas que sofrem com a crescente pobreza, miséria e violência do sistema em crise. A defesa e implementação de programas sociais foram também adotadas pela direita – Michel Temer e Bolsonaro seguem pagando o bolsa família – razão pela qual a filantropia praticada até ontem como prática da justiça social possível na periferia do sistema, também outorga “rosto humano” à direita.

A esquerda e os militares

Na verdade, há na atualidade, um abismo entre a esquerda e os militares. É um abismo construído ao longo de várias décadas. A situação expressa em larga medida a ingenuidade da esquerda liberal e sua incapacidade crônica de tocar nos temas relativos ao poder, os temas inerentes à revolução brasileira. Ora, desde que a “crise” militar emergiu com a troca de comando nas três armas, promovida pelo protofascista, é fácil constatar que, no interior da esquerda, tanto a “análise” quanto a “informação” considerada, decorrem de maneira geral da imprensa burguesa – CNN e Globonews – e não de protagonistas internos em conflito no interior das forças armadas. Portanto, é necessário dizer que a esquerda na atualidade ignora por completo o que de fato ocorre no interior das forças armadas.

A existência de uma “ala golpista” e outra “ala institucional”, longe de constituírem forças reais em conflito no seio das forças armadas, representa antes mera ideologia que revela a incapacidade da esquerda diante de um fenômeno da mais alta importância na crise brasileira sob hegemonia da classe dominante e do governo ultraliberal.

Nem sempre foi assim, é necessário lembrar. No pré-64, a esquerda tinha considerável influência nas três armas, razão pela qual milhares de militares foram presos, torturados, exilados, mortos ou colocados na reserva durante a ditadura. O regime cívico-militar de 1964 logrou cortar essa conexão pela raiz. No entanto, a partir de 1985, com o fim da ditadura – lá se vão quase 30 anos! – a verdade é que a esquerda devota das disputas eleitorais sem projeto de poder, jamais deu a devida atenção aos militares. É fácil perceber que o “tema militar” permaneceu cativo dos acadêmicos com as limitações típicas da profissão. Mas os acadêmicos não fazem revolução e a maioria sequer pretende atuar como intelectual público. Há, em consequência, farta documentão disponível e muitas hipóteses para observação, mas não articulação real dentro das forças armadas.

A fé na força da democracia permaneceu sólida no debate público até agosto de 2016, quando a consciência ingênua representada pelo petismo despertou de sua letargia com a queda de Dilma. Era tarde, sabemos agora. No entanto, a destituição sem luta de Dilma não abalou as convicções liberais da esquerda; ao contrário, diante da mudança radical da conjuntura, a esquerda liberal aferrou-se ainda mais à “defesa da democracia” centrando sua crítica no caráter golpista da “oposição de direita” sem sequer dar uma olhadinha para os movimentos no interior da caserna. Os militares somente “emergiram” na cena política por um tweet do General Villas Bôas às vésperas de uma decisão do STF sobre os processos contra Lula em abril de 2018. Não é patético?

No entanto, desde o primeiro dia do governo do protofascista, a “presença” militar era intensa e deveria ter sido motivo para uma reflexão sobre o fenômeno. A esquerda liberal permanece nesse – como em outros tantos temas – interditada pela própria responsabilidade na crise atual, razão pela qual mantém silêncio eloquente nas questões decisivas relativas à luta pelo poder.
A despeito da ignorância e cumplicidade da esquerda liberal, a hegemonia atual das forças armadas é clara. Alinhadas com a política imperialista dos Estados Unidos, seguem alimentando o anticomunismo; mantêm-se alerta sobre o inimigo interno derivado da doutrina de segurança nacional e professam um nacionalismo de direita e cosmético que reforça o poder tanto dos Estados Unidos quanto das classes dominantes no país.

Em primeiro lugar, a formação e a doutrina militar dominantes no país são diretamente informadas em função dos interesses nacionais dos Estados Unidos. Em consequência, os acordos de cooperação bilaterais e a formação de quadros não se afastaram jamais dessa linha, após 1985. O fenômeno era bastante claro antes mesmo da existência de Bolsonaro. Chamei a atenção para o fato ainda em outubro de 2017 ao analisar o discurso de um até então desconhecido general chamado Hamilton Mourão.

Ora, Mourão expressou claramente o pensamento na cúpula militar e a doutrina que informa as forças armadas. Num “mundo em convulsão”, diz o general, não resta ao Brasil senão filiação ao “bloco americano”. A rigor, não existe um “bloco americano”, mas a tradicional dominação imperialista dos Estados Unidos no mundo, especialmente forte na América Latina. A doutrina Monroe de 1824 é concepção ideológica a que os militares brasileiros estão aferrados; é a doutrina vigente no âmago das forças armadas nos últimos 60 anos! É claro que a esquerda liberal não pode acusar essa característica decisiva da formação militar porque ela própria tampouco se filia a uma orientação anti-imperialista.

Registre-se, tomado como mera agitação ideológica, o brado da direita na última disputa presidencial afirmando que o Brasil jamais se “transformaria numa Venezuela” oculta, de fato, profundo sentido histórico. Monroe e Bolivar lutam na cena histórica como antagonistas há quase dois séculos! Para o primeiro, a “América para os americanos” enquanto, para o segundo, a necessária afirmação da “Pátria Grande”. Vasconcelos (que não é um marxista) em 1934 escreveu Bolivarismo e monroísmo, um livro aqui desconhecido, que elucida bem os dilemas da América Latina diante da política pan-americanista praticada pelo imperialismo estadunidense. Os militares brasileiros – formados na doutrina emanada dos Estados Unidos – não vacilam nas questões centrais e seguem os ventos do norte.

Não foi por acaso, portanto, que nas eleições de 2018 a direita denunciava a “transformação do Brasil numa Venezuela”. A propaganda ideológica mais do que exorcizar o dilema histórico entre monroismo e bolivarismo, ataca algo mais imediato e visível: o fantasma de Bolívar na versão bolivariana já corria a América Latina desde a aparição de Hugo Chávez na Venezuela no 4 de fevereiro de 1992 e, com mais força, quando o tenente coronel tomou posse da presidência do país vizinho em 2 de fevereiro de 1999. Mourão em pessoa observou a ameaça bolivariana em seus inícios na condição de adido militar do Brasil em Caracas entre 2002 e 2004, nomeado no primeiro governo Lula.

A constituição bolivariana do Brasil

No entanto, mais que um bolivarianismo destinado a impedir a diluição do Brasil numa hipotética e caricata “Pátria Grande!”, o bordão antibolivariano pretende esterilizar seu conteúdo anti-imperialista e anticapitalista, além de ter como alvo a esterilização de algo valioso em qualquer doutrina militar: a força decisiva do nacionalismo revolucionário revitalizado na pátria de Bolivar.

Ademais, como tenho recordado com insistência há anos, a concepção bolivariana está inscrita em nossa constituição! Ora, basta ler os princípios fundamentais da Constituição de 1988, em seu parágrafo único para entender que “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”. O alinhamento automático praticado por Bolsonaro ou mesmo a política de Lula/Dilma em boicotar de maneira consciente as iniciativas materiais destinadas a dar corpo ao princípio constitucional – Telesur, Banco do Sur, Empresas GraNacionais etc – revelam de maneira clara o quanto a esquerda liberal abriu caminho para o avanço da direita e a exata medida em que ambas, cada qual à sua maneira, “violam” a constituição.

É claro que o antinacionalismo na esquerda liberal apareceu por outros caminhos, não tão grotescos quando aquele que a direita agita, mas igualmente eficazes; no Brasil, a crítica e rechaço do nacionalismo como força revolucionária emergiram a partir da crítica sociológica uspiana ao “populismo”. Era artigo em oferta desde 1978 quando Francisco Weffort – que, sem cerimônia alguma, saltou diretamente da secretaria geral do PT para o Ministério da Cultura de FHC – lançou uma coletânea de ensaios miseráveis de coloração “marxista” destinados a exorcizar o nacionalismo como força política indispensável na América Latina. A hegemonia intelectual no interior do petismo foi um meio eficaz de esterilizar na esquerda liberal o nacionalismo como força, na toada do desencontro histórico entre marxismo e nacionalismo. Ao longo do tempo a esquerda liberal sob condução do PT foi cada dia mais hostil ao nacionalismo.

Quando Lula chega ao governo em 2002 o bolivarianismo já está em plena ebulição no continente e, portanto, já era assunto de atenção minuciosa nos Estados Unidos. Ademais, após o fracasso do golpe contra Hugo Chávez em abril daquele ano, o imperialismo entendeu que nascia numa área estratégica para afirmação de sua hegemonia mundial, um adversário novo e com imenso poder.

Ninguém menos do que o general James T. Hill, chefe do Comando Sul dos Estados Unidos, sintetizou em 24 de março de 2004, qual era a natureza da ameaça concreta contra os interesses da potência imperialista na América Latina: o populismo radical. “O populismo – disse o general – não é uma ameaça. Não obstante, a ameaça emerge quando o líder se radicaliza...”.

Ademais, certeiro no alvo, o general Hill afirmou nessa reunião do congresso nos EUA que “alguns líderes da região estão se aproveitando das profundas frustrações derivadas do fracasso das reformas democráticas em fazer chegar os bens e serviços prometidos. Utilizando estas frustrações, que se combinam com as frustrações causadas pela desigualdade econômica e social, estes líderes são ao mesmo tempo capazes de reforçar suas posições radicais inflamando o sentimento antiestadunidense”.

A ofensiva bolivariana não se limitaria a Venezuela e durante uma década inspirou de maneira decisiva a caserna e os partidos em vários países latino-americanos. Em 2003, por exemplo, o tenente-coronel Lucio Gutierrez foi eleito presidente do Equador a partir de grandes mobilizações das massas, especialmente indígenas, e a quebra da hierarquia militar; da mesma forma, em 2000 o tenente-coronel Ollanta Humala se levantaria em armas no sul do Peru contra Alberto Fujimori, iniciando trajetória que o levaria a presidência peruana em junho de 2011, após amargar exilio. A falta de talento político de Lucio Gutierrez e a adoção de uma linha conciliatória de Ollanta não podem ocultar o fato de que a influência de Hugo Chávez era tão decisiva quanto indesejável para o imperialismo.

Em setembro de 2009, o presidente equatoriano Rafael Correa não renovou o acordo militar com os Estados Unidos e a base de Manta voltou ao controle nacional revelando que a “ameaça populista” tocava também nas questões de ordem militar de interesse estratégico para a potência imperialista. A resposta estadunidense foi, como se sabe, óbvia: assinou novo acordo militar com a Colômbia em 3 de novembro – um mês após perder a base de Manta - aumentando o contingente militar no país vizinho dominado há décadas por um regime de terrorismo de Estado.

O nacionalismo, portanto, não pode ser ignorado num sistema de estados nacionais. O mundo capitalista funciona sob o impulso da lei do valor em escala mundial, porém, num sistema de estados-nação, o capital opera, necessariamente, violando as fronteiras estatais em favor dos capitais com maior composição orgânica. No entanto, na mesma medida em que enfrenta o estado e produz a abertura de mercados, os capitais também lançam mão do protecionismo para o mesmo fim: alcançar o monopólio e vencer a concorrência capitalista.

No Brasil, especialmente após a emergência do capitalismo dependente rentístico, o nacionalismo assumiu a forma cosmética, meramente alegórica nas forças armadas. É o que podemos constatar com clareza no governo de Bolsonaro. Não se trata de um nacionalismo ao estilo de Velasco Alvarado no Peru ou Omar Torrijos no Panamá (ambos militares). O nacionalismo dos militares brasileiros que poderia ter evoluído no sentido revolucionário foi exterminado com o golpe militar de 1964. O “nacionalismo” dos militares pós-1964 jamais deixou de aprofundar a dependência e o subdesenvolvimento e manteve estreita conexão com os interesses dos Estados Unidos na América Latina.

A ditadura do grande capital

O Marechal Castelo Branco anunciou logo no início de seu mandato a necessidade de substituir as fronteiras físicas ou geográficas pelas “fronteiras ideológicas”, caminho pelo qual deu por encerrada a “política externa independente” de Jânio Quadros e João Goulart, na mesma medida em que abria as portas para a diplomacia da “interdependência continental” cuja formulação era de responsabilidade do general Golbery, um militar diplomado por Fort Benning, a terrível Escola das Américas, onde tantos ditadores latino-americanos foram formados.

Marini indicou com precisão que a ditadura pretendia “criar uma simbiose entre os interesses da grande indústria e os sonhos hegemônicos da elite militar, que encontraria uma expressão ainda mais evidente nos vínculos estabelecidos no nível da produção bélica” (Subdesenvolvimento e Revolução). Várias iniciativas avançaram nessa direção em aliança por meio da Comissão Militar Mista Brasil-Estados Unidos e do Grupo Permanente de Mobilização Industrial, que reunia as mais importantes empresas do país “com a assessoria direta de membros das forças armadas”. A própria Confederação Nacional da Indústria era presidida por ninguém menos que o general Edmundo Macedo Soares e Silva!

É, portanto, fácil estabelecer o contraste entre o II PND de Ernesto Geisel (1974-1979), caracterizado por forte intervenção estatal em associação com o capital estrangeiro, com o programa econômico ultraliberal de Bolsonaro apoiado com entusiasmo por Mourão. Na década de setenta, o “nacionalismo” dos militares flertava com ações que, em aparência, descartavam o liberalismo como doutrina, razão pela qual não poucos analistas caracterizam a ditadura como nacionalista e inclusive desenvolvimentista, a despeito da crescente internacionalização do ciclo do capital no país, da dívida externa e da superexploração da força de trabalho. De igual modo, a formulação da política externa daquele período sob o bordão do “pragmatismo responsável” indicava aliança estratégica com os Estados Unidos, com pequena margem de manobra que pode ser vista no acordo nuclear Brasil-Alemanha.

No entanto, o resultado da estratégia desenvolvimentista dos militares – e da burguesia brasileira – fortaleceu todas as frações do capital nacional e estrangeiro. A primeira manifestação liberal da burguesia na sua ofensiva contra o Estado ocorreu precisamente em 1977 quando os empresários publicaram o manifesto contra o “gigantismo estatal” e se declararam em favor da democracia. Ora, de olho em Washington, a burguesia entendeu tanto a crise do milagre econômico já evidente em 1975, quanto a nova política externa do imperialismo impulsionada por Carter (“a defesa dos direitos humanos”) naquele ano. Os militares resistiram, mas operaram sob estrito controle a “transição lenta, gradual e segura” que garantia completa impunidade para os crimes cometidos durante a ditadura.

As condições nacionais são determinantes para entender as razões pelas quais muitos desenvolvimentistas guardavam certo orgulho da obra econômica da ditadura embora fizessem restrições humanitárias à “sistemática violação dos direitos humanos”. A conveniência liberal desconectava o resultado econômico – intensa acumulação de capital – com as enormes restrições da liberdade política – indispensáveis para manter a superexploração da força de trabalho – que levou a esquerda para o exílio, cadeia ou morte nos porões da ditadura, além é claro, do controle sobre os sindicatos.

O contraste com a Argentina é sempre útil para perceber o quanto as condições nacionais são decisivas. É comum ouvir de economistas e sociólogos progressistas que o “modelo econômico dos militares” não produziu na Argentina os mesmos resultados verificados no Brasil. A “regressão econômica” de Martinez de Hoz contrastava, segundo a visão desenvolvimentista, com os arrojados planos industriais impulsionados por Delfim Netto durante a ditadura. Aqui, se evidencia o quanto a esquerda liberal se nutre de certo “orgulho burguês” emanado do desenvolvimento capitalista produzido pela ditadura (1964-1985) embora condene a repressão inerente a seu regime.

A digressão anterior é necessária para evitar um vício recorrente, ou seja, tratar os militares, a evolução de sua doutrina, a hegemonia política no interior do alto comando ou na tropa, fora da correlação de forças e do processo de acumulação de capital. Nesse contexto, os militares expressam mudanças no sistema político, mas não as produzem, não são sua causa original. É até constrangedor recordar aqui essas verdades elementares para chegar a algumas conclusões diante dos episódios recentes.

A hegemonia ultraliberal se consolidou nas forças armadas a par e passo com as transformações ocorridas após 1994 no desenvolvimento capitalista no Brasil. Portanto, constitui grave erro supor que os militares foram responsáveis por levar o sistema político para a direita. É claro que as decisões da cúpula militar estão baseadas no fato de que possuem o monopólio da violência por parte do Estado e, em sentido estrito, podem decidir a correlação de forças numa ou noutra direção segundo as exigências da luta entre as classes.

A burguesia decidiu a ruptura com o governo de João Goulart e, em consequência, logrou o apoio das forças armadas. Relembre-se o atinado estudo de René Armand Dreifuss (1964: a conquista do Estado) para quem o golpe foi, antes de tudo, um golpe de classe, um golpe burguês! Tal constatação não isenta a responsabilidade histórica das forças armadas e menos ainda implica a absolvição de todos seus crimes, mas dirige a reflexão para o caminho correto. A hegemonia social se impõe, finalmente, também nas forças armadas. É uma dura lição histórica que parece esquecida na atualidade quando nos deparamos com a necessidade de analisar o papel dos militares na política brasileira.

Acaso, a notável expansão da fronteira agrícola ainda em curso no Brasil – que confere a renda da terra e aos latifundiários enorme poder econômico e político – seria possível sem o papel ativo dos militares? Jamais! Basta recordar o protagonismo dos militares na expansão da fronteira agrícola representado pela incorporação da Amazônia ao circuito do capital, manifesto na apologia da Transamazônica, orgulho do regime militar. Não somente o capital agrário, mas também comercial, industrial e, sobretudo bancário, tinham interesse imediato naquela estratégica iniciativa. A posse da terra, com documentos, era fundamental para conseguir empréstimos bancários e garantir, em caso de não pagamento, a propriedade como mercadoria sujeita a compra e venda.

A subordinação do exército ao poder civil não pode supor o congelamento da vida política no âmbito da corporação. Exército e política sempre marcharam juntos em qualquer país da América Latina! Portanto, a esquerda liberal não pode pretender a neutralidade das forças armadas; menos ainda supor que elas devem se submeter à Constituição como garantia da vida democrático-burguesa!

Nildo Ouriques é economista, professor da UFSC e colaborador do Instituto de Estudos Latino-Americanos desta universidade.

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