Correio da Cidadania

A incrível história do homem que matou mais de 1 milhão e foi preso por tramar golpe fadado ao fracasso

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Foto: Reprodução/Youtube Porta dos Fundos

Então quer dizer que a democracia brasileira foi salva pelo general Freire Gomes, esse “herói nacional” que se colocou contrário à aventura golpista do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). A imprensa e todo o setor político não-bolsonarista agora brindam o pretenso “poder moderador” das Forças Armadas. Não fosse o lendário “general democrata”, Lula não teria tomado posse em primeiro de janeiro de 2023.

Vamos aos fatos. Na última sexta-feira, 15, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, tornou públicos os depoimentos dos ex-comandantes das Forças Armadas e dos ministros da Justiça e Defesa de Bolsonaro dados à Polícia Federal no âmbito das investigações da intentona golpista. Nelas, vemos uma trama orquestrada por Bolsonaro, que leria sua minuta de Estado de exceção, ou o quer que seja aquele texto porcamente escrito por Anderson Torres, a fim de abrir caminho para uma “intervenção militar”, como prevê a interpretação elaborada por Olavo de Carvalho do famigerado artigo 142 da Constituição.

A intentona golpista só não teria acontecido – segundo essa narrativa canalha que nos estão empurrando goela abaixo – porque o “brioso” general Freire Gomes, apoiado pelo brigadeiro Baptista Júnior, “preferiu a democracia”. Que linda operação para resgatar o moral das Forças Armadas brasileiras, as mesmas que não cederam leitos do seu sistema de saúde particular pago com dinheiro público durante a pandemia no momento em que os brasileiros mais precisavam desses leitos. O exemplo foi escolhido a dedo entre tantos desserviços militares ao longo da nossa história, como ilustração, mas voltaremos a falar da pandemia adiante.

Freire Gomes não topou a aventura golpista por uma razão simples. “Alguém aqui conhece a senhora Jeanine Áñez?”, perguntou certa vez, numa dessas reuniões golpistas, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Ele se referia à ex-presidenta do parlamento boliviano que assumiu o poder após um golpe policial-militar que depôs Evo Morales. Menos de um ano depois, derrotada em eleições que tentou boicotar, foi vista pela última vez se escondendo no interior de uma cama box. Pois bem, o general, que não é bobo nem nada, percebeu que uma aventura golpista terminaria de maneira semelhante mais cedo ou mais tarde. A começar pelo fato de não haver condições para um golpe.

O apoio externo era nulo. A China não apoiaria e muito menos os Estados Unidos, que acabavam de sair do seu próprio 8 de janeiro – na verdade, um 6 de janeiro de 2021. Internacionalmente, os únicos apoios seriam de países pequenos como a Hungria, ou grandes como a Índia, mas longe do protagonismo chinês ou americano.

Internamente, a desqualificação dos apoiadores de um suposto golpe é ainda mais gritante. Dentro do então governo Bolsonaro, os maiores entusiastas seriam o supremacista branco Filipe Martins; o diminuto general Augusto Heleno, conhecido como “o carniceiro do Haiti”; Anderson Torres, mais preocupado em contrabandear pássaros do que em estudar gramática para redigir a minuta; Carla Zambelli, que é simplesmente Carla Zambelli; Eduardo Pazuello, que em caso de golpe poderia confundir Manaus com Macapá e enviar tropas ao local errado; comentaristas da Jovem Pan e de meios de comunicação de extrema direita ainda menores e toda uma miríade de figuras absolutamente sem expressão, sem qualificação e, em muitos casos, sem a menor condição mental e intelectual de planejar sequer um golpe do pix.

Golpe do pix, aliás, que tem muito sido bem aplicado por Bolsonaro e pelos bolsonaristas. Mas só essa modalidade de golpe mesmo. Não falta gado pra ser enganado e grana pra ser lavada.

Outro aspecto importante é a inexistência de um apoio das elites para o golpe. Enquanto os principais industriais e empresários brasileiros assinaram a Carta pela Democracia da campanha de Lula, os apoiadores do golpe de Bolsonaro eram pequenos empresários do agronegócio e de serviços de lugares pequenos e não centrais do Brasil, como o véio da Havan, da pouco importante nacionalmente cidade de Brusque, em Santa Catarina, e seu grupo de empresários bolsonaristas.

Além disso, Lula não foi o vencedor das eleições, mas as verdadeiras elites e o grande capital. Se por um lado apoiaram o discurso democrático do atual presidente, por outro elegeram seus representantes de direita para a maioria dos governos estaduais e cadeiras da Câmara dos Deputados e Senado.

Freire Gomes olhou para esse contexto e pensou: “Hmmmm, se realmente embarcarem nessa, colocarei minha cama box à venda no Mercado Livre”.

Bolsonaro chorão

Logo após o segundo turno pipocaram matérias em toda a imprensa de que Bolsonaro estaria trancado em seus aposentos no Palácio do Alvorada, chorando copiosamente. Pressionado pela faladora de “línguas” Michelle, pelos dois filhos analfabetos políticos – Eduardo e Carlos – e pela supracitada miríade de apoiadores desqualificados, ele queria, mas não conseguiria. De fato, essa choradeira é bem possível de ter ocorrido.

Com toda a certeza, Bolsonaro tinha o desejo de dar um golpe. Como este autor tem o “desejo” de vencer uma luta de Popó. No entanto, este autor nunca lutou boxe e não tem condições físicas de encarar qualquer aluno da modalidade num ringue. O mesmo se aplica ao ex-presidente no caso do golpe.

Bolsonaro ficou 30 anos na Câmara dos Deputados. Trinta anos aceito, eleito e crescendo dentro de uma democracia que nunca lhe impôs limites, seja à verborragia protofascista, seja aos banditismos familiares, seja à locupletação de recursos públicos, seja ao incentivo à brutalidade policial. Vale lembrar que, nos idos de 2004/2006, uma das bandeiras da familícia era esterilizar as mulheres das favelas, pois seriam “fábricas de bandidos”.

Bolsonaro claramente se arrependeu de ter tentado um voo mais alto do que suas asas de colostomia tinham capacidade de manter. Já na mira por conta da desastrosa gestão da pandemia, do clima de incitação ao golpismo e de escândalos de corrupção como o do orçamento secreto, o então presidente cometeu um ato falho no último debate presidencial, da Band. Encarando Lula e as câmeras que levavam sua imagem para todo o Brasil, pediu votos para que fosse eleito “deputado federal”.

Assim como os militares, Bolsonaro se dá muito bem, obrigado, na democracia. Ele sabe disso, e o fato de estar inelegível o mata por dentro. O que ele mais queria era poder voltar ao Congresso Nacional, seguir fazendo seus esquemas de rachadinha e tendo foro privilegiado para encobrir seu banditismo de quinta. Vagabundo nato e expulso do Exército por tentar colocar uma bomba no quartel, nunca foi afeito ao trabalho. E querendo ou não, ser um ditador dá um trabalho danado.

Os militares, por sua vez, gozam em plena democracia, de uma lei de anistia que perdoou os já falecidos generais de 1964 e deu carta branca para todo tipo de absurdo futuro. Também gozam de sistemas de saúde, moradia, Justiça, educação e seguridade social próprios, alheios às normas que regem os benefícios dos civis. E pagos com o dinheiro dos civis. Pra quê ditadura? Para o mundo olhar aos pintores de meio fio vestidos de azeitona e começar a questionar suas mordomias? Para a juventude brasileira se insurgir contra o pornográfico serviço militar obrigatório? Melhor deixar pra lá.

Dito isto, pondero minha própria contradição: se Bolsonaro for preso por isso eu vou é me divertir. Já tenho cerveja e churrasco comprados para a comemoração. Não me importa o destino de Bolsonaro. Escrevo essas linhas como um esforço de reflexão acerca da narrativa que estão oficializando e das preocupações quanto ao futuro que essa narrativa pode trazer. Bolsonaro pouco importa.

Se fosse eu o famoso “roteirista do Brasil”, como diz a piada das redes antissociais, Bolsonaro não seria preso por um golpe que jamais teve capacidade para colocar em prática. Tampouco aceitaria livrar a cara de um general que, se presenciou tudo o que diz ter presenciado, prevaricou. Mas faria questão de escrever um longo capítulo em que o ex-presidente era preso por ter colaborado diretamente na morte de cerca de 1 milhão de brasileiros durante a pandemia. Os números oficiais batem 700 mil mortos, mas com a subnotificação e mortes derivadas não é nenhuma irrealidade projetar o saldo final do nosso próprio genocídio em 1 milhão de mortos.

É lamentável que isso não volte ao debate. É lamentável que a narrativa do “golpe de Bolsonaro” esteja sendo usada para livrar a cara dos militares. É lamentável que estejamos aceitando qualquer historinha de bom grado, sem qualquer reflexão e crítica.

Deixo o leitor com uma esquete do Porta dos Fundos que ilustra a reação dos generais golpistas, ora tratados como heróis nacionais, ao “chamado de Bolsonaro”. Para rir de nossa patética desgraça.

Raphael Sanz é jornalista e escritor. Escreve para a Revista Fórum e para o Correio da Cidadania.

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