Correio da Cidadania

Lítio e poder

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Como bem descreveu Eduardo Galeano, “pelas veias abertas da América Latina correram o ouro de Minas e a prata de Potosí, que enriqueceram outras partes do mundo. Juntos, podemos nos inserir de forma soberana nas cadeias de valor de recursos estratégicos e evitar que esse histórico de espoliação continue se repetindo no nosso continente”. Foi assim que o presidente Lula iniciou seu pronunciamento sobre a entrada da Bolívia no Mercosul nos dias 7 e 8 de julho, durante a cúpula realizada em Assunção, Paraguai. Destacando, de forma discursiva, a perpetuação histórica de países que, apesar das riquezas naturais, não conseguem “dar certo”, como diria o intelectual insubmisso Darcy Ribeiro.

Além da entrada no Mercosul, a Bolívia recentemente esteve no centro do debate devido à tentativa de golpe liderada pelo general Juan José Zúñiga. Felizmente, o intento fracassou, mas expôs a crise interna do partido governista boliviano, Movimento ao Socialismo (MAS), evidenciando o desgaste na relação entre o presidente Luis Arce e Evo Morales, ambos disputando a liderança dentro do partido, visando às eleições presidenciais de 2025.

Essa disputa política ganhou contornos ainda mais dramáticos quando Evo Morales acusou Luis Arce de promover um autogolpe. Luis Arce, tentando evitar ampliar o debate sobre os problemas econômicos e políticos vivenciados internamente no país, declarou em entrevista que a tentativa de golpe em 26 de junho teria ocorrido por “interesses estrangeiros” nos recursos naturais da Bolívia, que, como no caso do lítio, são significativos.

Nesse sentido, a entrada da Bolívia no Mercosul pode representar um passo significativo para projetar a exploração soberana deste recurso e facilitar a cooperação entre os países na pesquisa e desenvolvimento de tecnologias relacionadas ao lítio, onde a Bolívia tem projetos e uma das maiores reservas globais, e o Brasil tem reservas importantes e um histórico industrial neste setor. A nosso favor está também o fato que a demanda por minerais estratégicos permanece alta, com o lítio registrando um aumento de 30% em 2023, segundo o Global Critical Minerals Outlook, 2024.

Os esforços de industrialização do lítio na Bolívia começaram antes do recente “boom do lítio”. Em 2008, o Decreto 29.496 declarou a industrialização do Salar de Uyuni como prioridade nacional, sinalizando um compromisso de longo prazo com a exploração e industrialização do lítio. Em 2010, foi criada a Empresa Boliviana de Recursos Evaporíticos (EBRE) e o então presidente Evo Morales apresentou a Estratégia Nacional de Industrialização dos Recursos Evaporíticos da Bolívia.

Na época, o vice-presidente da Bolívia García Linera afirmava o empenho pela autonomia boliviana: “Os outros governos nunca produziram lítio. E queriam reproduzir o esquema de uma economia extrativa colonial. O povo boliviano não quer isto. Por isso, começamos do zero. Decidimos que nós, bolivianos, ocuparemos o salar, inventaremos o nosso próprio método de extração do lítio e, em seguida, faremos parcerias com empresas estrangeiras que nos deem acesso ao mercado global”.

Apesar dos avanços, a Bolívia enfrenta entraves típicos de países periféricos, como capacidade técnica limitada, preocupações socioambientais, custos do desenvolvimento tecnológico e falta de infraestrutura adequada. A criação da empresa pública Yacimientos de Litio Bolivianos (YLB), em 2017, foi um passo importante para centralizar e gerenciar os esforços de exploração do lítio, garantindo que os benefícios econômicos dessa exploração permanecessem no país.

Em 2018, o Decreto 3627 definiu a YLB (Yacimientos de Litio Bolivianos) como uma Empresa Pública Nacional Estratégica de caráter corporativo, ou seja, com uma estrutura organizacional semelhante a uma empresa privada. No mesmo ano, o Decreto 3738 criou a Empresa Mista YLB ACISA – E.M., uma joint venture entre a YLB e a empresa alemã CI Systems Alemanha GmbH, parceria que gerou protestos na Bolívia, e o decreto acabou por ser revogado, em 2019.

Em 2021, o governo boliviano abriu leilões internacionais para a exploração de lítio por empresas privadas, atraindo empresas dos Estados Unidos, Rússia, China e Argentina. Duas das oito empresas concorrentes foram eliminadas durante o processo. Ao final, a Bolívia selecionou empresas da China e Rússia, visando compartilhar riscos e alavancar recursos e investimentos externos, especialmente na fabricação de baterias de íon-lítio, onde a China tem domínio.

Ao fazer parte de um bloco econômico regional como o Mercosul, os países podem fortalecer sua posição no cenário internacional das matérias-primas e ter mais peso nas negociações comerciais globais. Assim como o presidente Lula, finalizo este texto relembrando Galeano, mas em outra passagem, onde ele menciona que “a divisão internacional do trabalho consiste em alguns países se especializarem em ganhar e outros em perder”. No que tange às matérias-primas, parece que estamos aprimorando nossas funções em derrotas, principalmente quando focamos apenas na exportação. Será que a entrada da Bolívia no Mercosul poderá reverter essa trajetória?


Elaine Santos é pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.
Fonte: Jornal da USP.

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