Correio da Cidadania

Janine Ribeiro vê o atraso da Ciência sob Bolsonaro

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O desmonte da administração pública e dos instrumentos de promoção do desenvolvimento chega a tal nível que até algumas decisões escandalosas passam ao largo. É o caso da Medida Provisória 1136/22, que contingencia por cinco anos o orçamento do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia (FNDCT), editada em 29 de agosto. “A MP é a metáfora do Brasil atual”, resume Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em entrevista ao Outra Saúde.

“O governo tem outras prioridades, que não são educação, saúde, cultura, meio ambiente, tecnologia”, pontua ele. “Assim, produz muito atraso porque nem a economia crescerá e nem iremos formar mão de obra qualificada. Não só deixa-se de construir o futuro como perde-se o passado já construído.”

A medida limita a execução do orçamento de 2022 do FNDCT, estipulado em R$ 9 bilhões, a R$ 5,5 bi e tem um caráter progressivo: permitiria execução de 58% em 2023, 68% em 2024, 78% em 2025, 88% em 2026 e 100% em 2027.
Ou seja, só no primeiro ano posterior ao próximo mandato presidencial o Fundo poderia retomar a totalidade do seu orçamento, que já é baixo para os desafios de se construir uma economia moderna e inclusiva.

A SBPC lidera o protesto contra a MP, ao lado de outras entidades do campo científico, e tenta fazer o Congresso derrubar o veto presidencial. Mas o estrago para este ano parece irreversível.

Em manifesto, a comunidade científica explica de que maneira os recursos serão distribuídos: “dos R$ 5,5 bi a executar, metade se destina às operações de empréstimos da FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos), com impactos no setor industrial do país, e a outra para o financiamento de programas, estratégias e fomento à ciência, tecnologia e inovação (CT&I)”. Estima, também, que para 2022, os valores empenhados de cerca de R$ 2,7 bilhões não serão executados. “Pune-se as instituições por serem eficientes no uso e transparência dos recursos públicos.”

A MP, além de tudo, contraria algo que já havia sido debatido e votado no Congresso. No ano passado, foi aprovada a Lei Complementar 177/21, com o exato intuito de blindar o orçamento da área de Ciência, Tecnologia e Inovação. Na conversa com o Outra Saúde, Janine Ribeiro, que também é ex-ministro da Educação, elucidou o modus operandi usado por Bolsonaro para sabotar políticas públicas.

“O Congresso aprova uma lei, o governo veta, o Congresso derruba o veto, algo raro por requerer muitos votos nas duas casas. Derrubado o veto e promulgada a lei, o presidente baixa uma MP que, na prática, impossibilita a execução da lei.”

Como defendido pelas entidades do setor, trata-se de mais um projeto representativo da concepção de sociedade do bolsonarismo. Para financiar suas bases de apoio parlamentar e garantir aumentos de salários de uma burocracia recém-instalada no Palácio do Planalto, rifa-se o futuro. Mas como Janine explica, não só o futuro, pois o passado também é atirado no lixo: o que foi investido em qualificação de pessoas é entregue de bandeja a outros países, uma vez que diversos pesquisadores e profissionais não poderão seguir com suas carreiras no Brasil.

“O patamar atual já está desfalcado de valores”, defende Janine Ribeiro. “De acordo com as próprias leis e a Constituição, deveriam ser maiores. Há inúmeras instituições, universitárias e de governo, que estão sendo descuidadas e perdendo financiamento. Precisamos da certeza de que o país retomará e aumentará o padrão de qualidade”.

Para isso, deve-se sair da defensiva. Não só garantir o orçamento que Bolsonaro tenta desviar para suas obscuras transações políticas como investir cada vez mais neste setor-chave na superação do padrão primário-exportador e dependente da economia brasileira, num contexto de instabilidades geopolíticas, sanitárias e ambientais.

“CT&I é uma das principais alavancas para o futuro da economia. A saída não é economizar em salários de servidores, em financiamento à saúde, à educação ou ao meio ambiente. Precisamos de ciência embutida na produção. Qualificação da mão de obra. Isso requer melhor nível educacional e devemos aumentar substancialmente o número de pessoas no ensino superior, inclusive em mestrado e doutorado. Um círculo virtuoso que tem no FNDCT um de seus instrumentos principais.”

Fique com a entrevista completa.

Como você recebeu a MP 1136/22, que contingencia praticamente metade do orçamento do ano do FNDCT, isso após aprovação a duras penas da LC 177/21? Qual a motivação dessa iniciativa, a seu ver?

Imediatamente após a edição da MP anticiência, reagimos. Publicamos um documento assinado por várias entidades da ciência afiliadas à SBPC em protesto. Tentamos falar com o presidente do senado para que devolvesse a MP ao executivo, por ser absolutamente inconstitucional.

Tanto nesta MP como na MP 1135, o governo faz o seguinte: o Congresso aprova uma lei, o governo veta, o Congresso derruba o veto, algo raro por requerer muitos votos nas duas casas. Derrubado o veto e promulgada a lei, o presidente baixa uma MP que na prática impossibilita a execução da lei. É uma maneira de derrubar um procedimento constitucional que permite ao Congresso derrubar veto presidencial.

O governo descumpre sua obrigação constitucional de financiar a ciência e prejudica seriamente os interesses do Brasil ao atrasar o conhecimento rigoroso no país. Ele tem outras prioridades, que não são educação, saúde, cultura, meio ambiente, tecnologia. Assim, produz muito atraso porque nem a economia crescerá e nem iremos formar mão de obra qualificada.

São mais de 70 projetos em andamento que seriam prejudicados. O que será do financiamento da ciência e tecnologia caso o cronograma de contingenciamento previsto até 2027 se cumpra?

Serão e já estão sendo impactos tremendos. Quando não se dá continuidade a um determinado empenho perde-se o esforço já feito. Não só deixa-se de construir o futuro como se perde o passado já construído. Por exemplo, um laboratório com espécies vivas. Seu custo de manutenção é baixo em relação à própria construção e reunião de material. Economiza-se uma despesa pequena e mata-se o que está lá dentro há décadas.

E o que perderá o país, a longo prazo? O que o contingenciamento de verbas revela mais amplamente a respeito do atual bloco política que governa o país?

Essa é a metáfora do Brasil nas diversas áreas. Tudo que foi construído ao longo de dezenas de anos e até séculos está sob sério risco. O Brasil perde seu futuro e cada ano de destruição deve demandar dois ou três para reconstrução. Teremos de dar novas garantias para ciência, saúde, educação, cultura, tecnologia. Infelizmente, notamos que as leis não estão sendo respeitadas.

Revela-se que o atual bloco político não tem interesse nenhum no futuro do país e na sua melhoria, apenas em reproduzir interesses particulares, com aumentos de salários e verbas para políticos do grupo associado.

Financiar o FNDCT é uma forma de recolocar o país no rumo de toda uma retomada econômica que precisa ser empreendida?

É uma das principais alavancas para o futuro da economia. Não se deve economizar em salários, em financiamento à saúde ou meio ambiente. Precisamos de ciência embutida na produção. Qualificação da mão de obra.

Isso requer melhor nível educacional e devemos aumentar substancialmente o número de pessoas no ensino superior, inclusive em mestrado e doutorado.

Temos de criar um círculo virtuoso que tem no FNDCT um de seus instrumentos principais.

O que vocês da SBPC esperam ver em pauta no setor no próximo mandato presidencial? É possível ampliar o financiamento do setor em vez de apenas mantê-lo no patamar atual?

É possível e necessário. O patamar atual já está desfalcado de valores que pelas leis e a Constituição deveriam ser maiores. Há inúmeras instituições, universitárias e de governo, que estão sendo descuidadas e perdendo financiamento.

Precisamos da certeza de que o país retomará o padrão de qualidade que já teve e pretende aumentar. Chegamos a um nível bom nos governos Lula e Dilma, com mais produção de conhecimento, mais publicação científica, mais pessoas com mestrado e doutorado. Mas precisamos ir além daqui pra frente.

Gabriel Brito é repórter do Outra Saúde, onde esta matéria foi originalmente publicada, e editor do Correio da Cidadania.

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