Correio da Cidadania

História de uma fraude eleitoral estrutural

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As eleições majoritárias em Ilha Comprida revelaram um cenário complexo, marcado por uma baixa renovação no legislativo e práticas que, segundo relatos, minam a democracia local. Com um forte predomínio da máquina pública na economia local e alegações de irregularidades no processo eleitoral, a análise dos resultados aponta para uma continuidade política com pouco espaço para mudança.

Dependência econômica e continuidade política

A economia de Ilha Comprida depende, em grande parte, da administração pública, com 52% da população local ocupada em empregos oferecidos pela prefeitura. Esse dado é fundamental para entender a baixa renovação do legislativo, que por conta de acordos com o executivo, tem seus indicados em cargos comissionados. Daí o fato de o município não ter concursos públicos para cargos efetivos, pois assim mantém garantidos os votos de servidores públicos e seus familiares. A dependência de empregos públicos cria um cenário onde a população, receosa de perder oportunidades de trabalho, tende a votar pela continuidade das gestões em vigor, o que explica a reeleição de muitos vereadores e a manutenção do mesmo grupo político à frente da cidade (não esquecemos que a prefeita assumiu o cargo após a cassação do prefeito do qual foi vice).

Dinheiro e influência nas eleições

De acordo com apontamentos e relatos colhidos durante a campanha, houve um forte investimento financeiro por parte dos candidatos, majoritariamente os da direita, para garantir votos. Cabos eleitorais atuaram ativamente nos balneários, redobrando esforços e, segundo informações, dobrando a quantidade de votos obtidos para a reeleição de determinados candidatos.

Encontramos na padaria um dos cabos eleitorais, Faris Shu'la (pseudônimo), que falou como funciona o esquema da compra de votos na Ilha Comprida. "A gente faz muitos favores durante os quatro anos", para que eleitores ficam devendo esses favores, "nem sempre a gente compra votos com dinheiro em espécie", reforça Faris, "é um alvará de construção que sai rápido, quebra no licenciamento ou multa ambiental, remédio, consulta que a gente consegue adiantar, máquinas pra dar uma arrumada na rua, até advogados a gente arruma", revela, como se isso não fosse crime.

"A gente fala pra pessoa votar no nosso candidato e que tem como saber se votou ou não, as pessoas acreditam que tem como ver em quem cada eleitor votou, mas se você prestar atenção, dá pra saber sim, caso o candidato zere numa seção", explica o esquema, "mas pedimos detalhes da foto na urna, o povo daqui é humilde, mal sabe que o voto é secreto." Finalizou, Faris Sha'la, que trabalha como cabo eleitoral há 16 anos.

O candidato também pode pagar em dinheiro vivo ou com cargos negociados com o executivo. Importante a população de Ilha Comprida passar a fiscalizar as nomeações para os cargos comissionados, de indicação de vereadores e de cabos eleitorais.

O relato detalha a rede de "favores" que é construída ao longo dos anos, favorecendo moradores com facilidades como obtenção de alvarás de construção, licenciamento ambiental, isenção de multas ambientais, lotes em áreas de zoneamento que impossibilita a construção, mas contam com vista grossa de fiscais da prefeitura, e a invasão em áreas de preservação ambiental que não poderiam ter residências, antecipação de consultas médicas, medicamentos faltantes na farmácia pública e até assistência jurídica. Durante as eleições, esses favores são "cobrados", e o voto passa a ser visto como uma retribuição por esses benefícios.

Shu'la estimou que o valor por voto pode chegar a R$300,00, seja pago em dinheiro ou por meio de promessas de cargos comissionados, que os vereadores negociam com o executivo. Esse esquema é facilitado pela baixa escolaridade da população, já que cerca de 80% dos adultos não sabem ler ou têm dificuldade em interpretar o que leem, aumentando a vulnerabilidade a manipulações políticas.

Máfia política em Ilha Comprida: 32 anos de controle, compra de votos, fraude eleitoral e corrupção

Por mais de três décadas, Ilha Comprida tem sido palco de um esquema de corrupção política que envolve a eleição de vereadores e prefeitos, a compra de votos e o controle sobre cargos estratégicos na administração municipal. A máfia que domina a cidade utiliza diversos métodos para se manter no poder, incluindo ameaças aos moradores, promessas de terrenos, contratos milionários e até a manipulação de títulos eleitorais. Tudo isso acontece sob o olhar complacente da Justiça Eleitoral e do Ministério Público, que até agora não tomaram medidas concretas para investigar as denúncias, além da prevaricação dos gestores das Unidades de Conservação, alguns sob a administração da Fundação Florestal, vinculada ao governador do estado, que é aliado e do mesmo partido da atual prefeita, que foi reeleita.

Fraude de títulos eleitorais e turismo eleitoral

Além da compra de votos, a cidade está sob forte suspeita de fraude envolvendo o registro de títulos eleitorais. Existem relatos de que dezenas de eleitores de fora da cidade foram transportados em ônibus e vans para votar, em um esquema conhecido como "turismo eleitoral". O objetivo é inflar o número de eleitores favoráveis aos candidatos apoiados pela máfia. A fraude é tamanha que há casas na cidade com mais de 10 títulos eleitorais registrados, algo que claramente foge do padrão.

Esse aumento artificial de eleitores pode ser crucial para garantir o controle da eleição, facilitando a reeleição dos vereadores e prefeitos envolvidos no esquema. Moradores denunciam que essa prática tem ocorrido há anos, mas que em cada eleição ela se torna mais evidente, com eleitores sendo trazidos de outras cidades para garantir a vitória dos candidatos da máfia.

Ministério Público inerte diante das denúncias

Apesar das inúmeras denúncias sobre fraudes, intimidações e corrupção, o Ministério Público até agora não tomou nenhuma atitude significativa. Mesmo com informações claras sobre a compra de votos, o turismo eleitoral e os registros fraudulentos de títulos, as investigações parecem estagnadas. Moradores já encaminharam queixas formais e provas do esquema, mas a inércia das autoridades reforça o sentimento de impunidade e de que a máfia política segue intocável em sua rede de poder.

Compra de votos: um esquema organizado

A compra de votos é outra engrenagem essencial nesse sistema. Relatos indicam que os cabos eleitorais são remunerados, valor varia de R$ 2 mil a 3 mil para cada 10 votos garantidos, o que transforma o processo eleitoral em um verdadeiro mercado. Nas últimas eleições, envelopes de dinheiro foram distribuídos nas portas das escolas que serviram como zonas eleitorais, com a participação de candidatos, eleitores e até policiais, que aparentemente fazem vista grossa para o crime que ocorre bem diante deles. Um cidadão que vem a cada dois anos à cidade foi visto na frente de três escolas no boqueirão norte, entregando envelopes para cabos eleitorais e eleitores. Tudo sem nenhum pudor.

Ofertas de terrenos e contratos milionários

Vereadores reeleitos, que têm fortes vínculos com essa máfia, não apenas compram votos, mas também oferecem terrenos, cargos públicos e contratos milionários em troca de apoio político. Esses benefícios são utilizados como moeda de troca e garantem a fidelidade de eleitores e cabos eleitorais, além de perpetuar o domínio do grupo sobre a cidade. Os terrenos prometidos muitas vezes são de áreas públicas ou áreas de grande valor econômico, enquanto os contratos milionários favorecem empresas ligadas ao grupo. Passada a eleição, os vereadores eleitos procuram o executivo para negociar a troca de favores por aprovação dos projetos da prefeitura.

Intimidação e clima de medo

A máfia também se vale do medo para manter sua posição de poder. Moradores que tentam se opor ao esquema ou apoiar candidatos independentes são frequentemente ameaçados. A atmosfera de intimidação impede que surjam movimentos de resistência ou denúncias mais fortes, já que o medo de represálias é constante. E localmente não tem como fazer denúncias, as autoridades são amigas ou sofrem influência desse grupo.

Uma jovem que sofrera importunação sexual, numa investigação pra lá de esquisita, passou a ser taxada como fraudadora, mesmo postando gravações feitas durante o momento de acontecimento dos fatos.

Na Ilha Comprida, as pessoas evitam denunciar, porque a corda sempre rompe do lado mais fraco. Não é à toa, as mulheres estão com medo de sair nas ruas sozinhas, mesmo sob um baixo índice de registro de crimes sexuais na cidade, o que pode estar ligado ao fato de não haver nenhuma delegacia das mulheres no município.

Candidaturas femininas apenas pra cumprir tabela

Em muitos municípios brasileiros, incluindo Ilha Comprida, há uma prática fraudulenta recorrente nos processos eleitorais que prejudica diretamente a participação feminina. Os partidos políticos, para cumprir a cota obrigatória de 30% de candidaturas femininas, registram mulheres nas eleições, mas não oferecem a elas as mesmas condições para realizar campanhas efetivas. Essa estratégia manipuladora fica evidente após o resultado das eleições, quando candidatas aparecem com pouquíssimos votos, às vezes apenas um, demonstrando que não tiveram apoio real do partido para concorrer de forma legítima.

Além das mulheres, candidaturas de pessoas autodeclaradas negras e negros também são alvo de discriminação pelos partidos em Ilha Comprida. Essas candidaturas, assim como as femininas, são muitas vezes usadas apenas para preencher requisitos legais, sem que os candidatos recebam suporte necessário para desenvolver suas campanhas. Essa prática é um claro desrespeito à legislação eleitoral e às políticas de inclusão, o que configura fraude e contribui para a marginalização dessas populações no processo democrático.

Somadas a essa manipulação das candidaturas, há também denúncias de compra de votos na cidade. Essas irregularidades, como o uso de candidaturas de fachada e a corrupção eleitoral, colocam em risco a integridade da democracia local. A população de Ilha Comprida, portanto, se vê diante de um processo eleitoral corrompido, que impede uma representação justa e equitativa, comprometendo o futuro político da cidade.

Justiça eleitoral e Ministério Público: omissão ou cumplicidade?

Diante de tantos indícios de irregularidades, a ausência de ação tanto da Justiça Eleitoral quanto do Ministério Público é alarmante. A falta de investigações sobre a fraude dos títulos eleitorais, o turismo eleitoral e a compra de votos levantam sérias dúvidas sobre a imparcialidade e a eficácia desses órgãos em combater a corrupção. Enquanto isso, a máfia segue controlando a cidade e suas eleições, sem qualquer receio de ser punida. Isso somado às licitações e contratos de prestação de serviços suspeitos.

O futuro de Ilha Comprida: uma cidade refém

Ilha Comprida continua refém de um esquema de corrupção que não apenas manipula as eleições, mas também corrompe o funcionamento da administração pública. O controle sobre cargos, a distribuição de terrenos e contratos milionários, a compra de votos e a fraude nos registros eleitorais são indícios claros de que o sistema democrático na cidade está seriamente comprometido. Sem uma ação firme da Justiça Eleitoral e do Ministério Público, o futuro da cidade permanece sombrio, com a máfia política se fortalecendo a cada eleição, enquanto a população sofre as consequências de uma gestão pública controlada pela corrupção.

As eleições em Ilha Comprida reafirmam a dominância de um grupo político que já está no poder há décadas, enquanto os desafios de combater práticas antidemocráticas e promover a renovação política permanecem latentes. A dependência econômica da prefeitura e a baixa escolaridade da população são fatores que contribuem para a manutenção desse cenário. A falta de ação por parte do TRE e do TSE em relação ao turismo eleitoral e à compra de votos só agrava a situação.

Se a cidade pretende avançar em direção a uma democracia mais justa e representativa, será necessário um esforço conjunto, a envolver maior fiscalização das práticas eleitorais e uma conscientização mais profunda da população sobre seus direitos e deveres como eleitores. A população precisa se manifestar publicamente e participar nos conselhos municipais e outras instâncias de organização popular, fóruns, conferências e movimentos sociais, que cumprem essa função fiscalizadora.

Marcus Pontes Caduti é pescador, membro da Associação de Pescadores da ponta norte de Ilha Comprida.

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