‘Num processo democrático, os jornalistas não deveriam usar itens de segurança’
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- Gabriel Brito e Paulo Silva Junior, da Redação
- 02/10/2014
O Tribunal de Justiça de SP expediu uma sentença que, aparentemente, legaliza a violência estatal contra jornalistas. Trata-se da decisão que considerou culpado o fotógrafo Alex Silveira pelo disparo de bala de borracha que lhe cegou de um olho, em manifestação dos professores na Avenida Paulista, no ano 2000. Para discutir o assunto, o Correio entrevistou outro fotógrafo, Sergio Silva, que ficou conhecido do público durante as manifestações de junho de 2013 por ter sofrido a mesma violência.
“Isso nos deixa realmente sem perspectivas de acreditar em um processo de mudança. Deixa-nos mais indignados em relação a todo o sistema e todos os poderes, tanto o Judiciário, como o Legislativo e o Executivo. A mensagem (Judiciário), infelizmente, é clara e óbvia. Só vem a mostrar, de fato, a quem o Estado representa”, resumiu.
Na entrevista, Sergio relaciona a violência legitimada pelo Estado diretamente aos últimos episódios que afetaram os jornalistas, a exemplo do cinegrafista Santiago Andrade, da Band, morto por um disparo de foguete até hoje não desvendado. Ele ressalta que a atual fase de precarização da profissão faz com que até os grandes meios de comunicação negligenciem os equipamentos de segurança, o que, por um lado, não deveria ser sequer necessário.
“Num processo de evolução democrática, o pensamento, no meu modo de ver, deveria ser o contrário. Nós, profissionais, não poderíamos depender de nenhum item de segurança. A própria segurança pública, ou seja, a polícia militar, deveria fazer com que tenhamos segurança. Não é um capacete, um colete ou óculos que devem garantir isso”, ponderou.
A entrevista completa Sergio Silva, realizada em parceria com a webrádio Central 3, pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como você enxerga a sentença proferida pelo tribunal de justiça de SP, que declarou o fotógrafo Alex Silveira culpado pelo disparo de bala de borracha que o cegou, em manifestação realizada no ano 2000?
Sergio Silva: Eu recebi a notícia com muita lamentação. Fiquei muito indignado ao saber do resultado desfavorável ao Alex Silveira. Isso nos deixa realmente sem perspectivas de acreditar em um processo de mudança. Principalmente depois de junho, quando muitas questões foram contestadas durante as manifestações. E quando acompanhamos, também de perto, um aumento muito grande da violência e, principalmente, da repressão policial em cima das manifestações.
É apenas um reflexo da violência que cotidianamente atinge as periferias de todo país, mas quando o cidadão parte para a esfera judicial (infelizmente, a única saída que lhe cabe para tentar recuperar um direito roubado), recebemos uma notícia como essa do caso do Alex, inaceitável. Deixa-nos mais indignados em relação a todo o sistema e todos os poderes, tanto o Judiciário, como o Legislativo e o Executivo.
Correio da Cidadania: Como você relaciona isso ao caso de Santiago Andrade, cinegrafista da TV Bandeirantes morto em disparo até hoje não esclarecido em manifestação de rua no Rio, no começo do ano, além de outros repórteres presos ou feridos nos últimos tempos? Qual mensagem fica?
Sergio Silva: A mensagem, infelizmente, é clara e óbvia. Só vem a mostrar, de fato, a quem o Estado representa. E quando digo Estado, eu digo o sistema que o envolve, governo, o juiz, o relator, enfim, todos aqueles funcionários públicos que analisaram a sentença do Alex. Em meu modo de ver, eles estão blindando ainda mais o sistema brasileiro. E o sistema judiciário brasileiro, quando se trata de assunto de Estado, defende a si próprio.
Portanto, é uma situação que, por mais que me deixe indignado (não só a mim, como o próprio Alex, a vítima maior dessa decisão), não me surpreende. E deixa indignada toda a população também, pois tenho recebido milhares de mensagens de pessoas mostrando toda a revolta com tal decisão.
Infelizmente, o Judiciário, que deveria também olhar pelo lado humano, do cidadão, deixa claro a quem está servindo.
Correio da Cidadania: Como você avalia as atuais condições para o exercício da profissão de jornalista no Brasil?
Sergio Silva: Particularmente, neste último ano estou afastado das ruas. Não estou executando mais o meu trabalho como antigamente, com dedicação total e quase tempo integral, ao fotojornalismo. Mas no pouco contato que ainda tenho, com os próprios fotógrafos e jornalistas, sinto que, depois de junho, a crescente violência, que atingiu boa parte da imprensa, deixou uma insegurança total.
Assim, os profissionais, tanto de veículos de grande porte como os profissionais de mídia alternativa, se sentem muito inseguros. Digo profissionais porque há um movimento jovem a respeito da mídia alternativa que não deixa nada a desejar a grandes profissionais que trabalham em grandes veículos de comunicação.
Por outro lado, também existe o que eu posso chamar de união. Isso vem acontecendo muito. Eu percebo, em conversas que tenho com as pessoas que acabei conhecendo depois de junho, que elas estão um pouco mais amigas desses profissionais. É algo positivo, que precisamos trabalhar um pouquinho mais. Fazer com que ocorra realmente a aproximação e um nível de crescimento, para fortalecer ainda mais a classe. É uma classe trabalhadora também. E assim como todas as outras, de um modo geral, vem passando por um processo de precarização.
Portanto, eu acho que, por mais que o medo e a insegurança ainda permaneçam no ar, existe também um pouquinho de união que sinto crescer. É o que eu desejo que aconteça daqui pra frente.
Correio da Cidadania: Como você avalia a cobertura da grande mídia nos protestos que marcaram 2013 e 2014 no país, além do tratamento que dispensa aos seus profissionais escalados para cobrir tais atos públicos?
Sergio Silva: Eu não consigo responder com tanta precisão e certeza, porque eu não faço parte desse universo, portanto, é só uma opinião. No meu modo de ver, em relação aos itens de segurança, eles são importantes e de responsabilidade do empregador. Porém, com a precarização da mão-de-obra, que eu volto a citar, acho que nem nos grandes meios de comunicação, que têm muito mais recursos, estão fornecendo os devidos equipamentos. E a situação começa naquele profissional que está lá embaixo, iniciando carreira e trabalhando em veículos menores. Ali, a chance de ter o equipamento de segurança é utopia.
Tenho uma opinião, muito pessoal, sobre a questão: o fotógrafo ou cinegrafista vai fazer o seu trabalho nas passeatas de rua (como naquelas de junho), que são necessidades de movimentos sociais, uma prática que apoio muito por conta de toda a necessidade de luta. Num processo de evolução democrática, até mesmo em uma evolução do pensamento em defesa da vida e em respeito ao ser humano, em uma manifestação onde as pessoas não estão promovendo nenhum tipo de violência, não deveria ser necessário usar um capacete, um óculos, pelo simples fato de existir do outro lado da manifestação uma polícia repressora.
O pensamento deveria ser o contrário. Nós, profissionais, não poderíamos depender de nenhum item de segurança. A própria segurança pública, ou seja, a polícia militar, deveria fazer com que tenhamos segurança. Não é um capacete, um colete ou óculos que devem garantir isso.
Mas eu me refiro a situações dentro de manifestações. Obviamente, existem outras situações de conflitos que são muito mais violentas, onde existem armamentos de fogo ou, por exemplo, uma guerra civil. Aí é outra história, os profissionais que estão nesse campo de trabalho, com certeza, não devem ir a lugares assim sem preparo, treinamento e, principalmente, itens de segurança.
Porém, a nossa realidade é outra. Não podemos ficar imaginando situações. Temos de pensar em cima da realidade e do que vivemos, hoje, nas manifestações em grandes cidades brasileiras.
Correio da Cidadania: Diante de tal contexto, como, em sua opinião, a categoria deveria atuar, tanto como as entidades de classe como aquelas que pautam a democratização da mídia?
Sergio Silva: Eu acho que existe, sim, um caminho. Gostem as pessoas ou não, existe um bom exemplo no cenário de comunicação alternativa, que está encontrando uma solução para quebrar o monopólio da grande mídia: é a chamada Mídia Ninja. O trabalho que eles fizeram durante a cobertura das manifestações, por dentro delas, virou pauta no Congresso Nacional, em discussões políticas do campo da comunicação, e acabou se tornando um exemplo, copiado pelas grandes mídias. Ou seja, quando começou a onda de manifestações violentas, com participação de Black Blocks e a polícia utilizando ainda mais armamentos, e também parte dos manifestantes repudiando a grande mídia e expulsando-a dos atos de rua, começaram a contratar freelancer com rosto desconhecido para fazer cobertura com celular.
Assim, há um viés que podemos seguir, sem depender da comunicação feita para a grande massa, que os grupos empresariais de comunicação controlam. Até porque, se nós formos levar em conta o trabalho dessa grande mídia, é muito claro e muito óbvio que os pequenos grupos que controlam os meios de comunicação são pautados politicamente. Defendem uma classe política e são até capazes de eleger o presidente da República.
Portanto, dentre as lutas dos movimentos sociais que envolvem diversas questões em pauta no país, existe também a comunicação. Podemos seguir o caminho da mídia independente. O que é o caminho da mídia independente? É construir, aproveitar a internet, que está ao alcance de todos, mesmo que ainda não da maneira que desejamos e sonhamos. Mas já existe um acesso democrático. Podemos construir os nossos veículos de comunicação e não depender mais das informações veiculadas pela grande mídia.
É um viés importante, que podemos seguir para alcançar um processo de mudança social.
Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas.