Correio da Cidadania

‘Temos a necessidade de criar redes de proteção aos jovens’

0
0
0
s2sdefault

 

 

 

Região onde se localiza o cemitério com a segunda maior quantidade de jovens enterrados, o Jardim São Luis sente da pior forma as dificuldades de um 2015 desalentador para as classes populares e já vivenciou ao menos duas grandes chacinas, ao que tudo indica, policiais neste ano. Sobre tal conjuntura, o Correio entrevistou Anabela Gonçalves, do Coletivo Katu, que trabalha com a formação socioeducativa de jovens da região e se articula com outros movimentos periféricos.

 

“É muito triste, depois de ver a comemoração dos 25 anos do ECA e todo o povo na rua contra a maioridade penal. O primeiro impacto é na periferia de São Paulo, porque é aqui onde se pauta tal política pública, é aqui que nossos jovens e crianças são desaparecidos, é aqui onde o ECA não tem atuação consolidada, é aqui onde muita gente ainda não conhece os direitos das crianças e adolescentes. E o governo se fecha num foco criminal”, criticou.

 

Além de ressaltar que pautas como a redução da maioridade e aumento do encarceramento tem um corte de classe, Anabela também comentou como foi a tensa audiência pública com o prefeito Fernando Haddad, que foi muito criticado pelos participantes ligados aos movimentos sociais. Apesar disso, afirma que em meio a retrocessos políticos veem-se novas formas de organização de coletivos e movimentos, de maneira independente ao Estado, renovando o folego de um esquecido trabalho de base.

 

“Como um prefeito que se dispõe a debater e criar perspectivas contra o genocídio da juventude parabeniza a atuação da PM na Cracolândia, que age violentamente contra jovens e outras pessoas que ficam lá? Ele acabou fazendo um discurso muito triste, disse que traficante tem que morrer mesmo, apanhar, uma postura comprometedora. Queremos o fim da violência policial nas quebradas”, pontuou.

 

A entrevista completa, realizada em parceria com a webrádio Central 3, pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: O ano de 2015 está marcado pela violência e mortes de jovens no Jardim São Luis. O que você pode nos contar dessa realidade, a qual vive mais de perto? Quais as razões dessa violência?

 

Anabela Gonçalves: Pra começar, é importante lembrar que a região sul, já nos anos 70, era marcada por diversas lutas, por moradia, pela diminuição da violência policial e pelo fim da morte da juventude. Continuamos na mesma caminhada, até hoje. Pouca coisa mudou, colhemos poucas conquistas desde a década de 70, em comparação com as lutas desenvolvidas pelos movimentos sociais da região.

 

2015 está sendo um ano muito conturbado, não só pelo aumento do genocídio da juventude negra e indígena da região, com o que lidamos cotidianamente, mas também pela pouca atenção, mesmo das políticas ligadas à diminuição do índice de violência da juventude. Temos visto bastante propaganda sobre políticas ligadas à juventude, mas na prática muito pouca atuação, campanhas e debates do poder público. O movimento social está organizado, debate e luta em tais questões, mas o poder público não tem se mexido.

 

Acreditamos que seja viável uma política de redução do genocídio. Uma coisa é pegar o “ordinário”, isto é, o que o governo tem de fazer no cotidiano, dentro do estabelecido como política pública: colocar poste na rua, arrumar calçada, fazer ciclovia ou melhorar o transporte. Considerar isso como política de diminuição da violência contra a juventude é uma falácia. Precisamos de políticas específicas, que lidem com a formação e desmilitarização da polícia, não só com políticas sociais. Essas, de alguma forma, podem combater a entrada da juventude na criminalidade, mas não vão diminuir o que já está estabelecido, no caso, a violência policial cotidiana.

 

Correio da Cidadania: Como foi a audiência pública recém-realizada no bairro, que contou com a presença de Fernando Haddad, na qual o prefeito disse que a diferença para outros bairros com melhor qualidade de vida é a organização da população local?

 

Anabela Gonçalves: Essa audiência começou por meio de uma ideia nascida a partir da política pública “juventude viva”. Essa política contava com a ideia de formar o Comitê Juventude Viva, pra discutir a atuação e desenvolvimento em cada região. Esse comitê rachou com a política pública e formou outro, denominado Juventude e Resistência. O novo comitê teve uma conversa com o prefeito, que disse poder participar da audiência e discutir políticas para a juventude da região.

 

Fizemos a audiência dentro do cemitério São Luis, o segundo da América Latina em número de jovens enterrados, pra marcar bem o debate do genocídio. Haddad, Suplicy e outras autoridades da região, além de vários coletivos da quebrada que fazem parte do movimento, compareceram. A ideia foi colocar o poder público na plateia e o movimento social na mesa, pra falar do que vem acontecendo na região.

 

Além disso, fizemos a audiência em parceria com as Mães de Maio, pois acreditamos que um dos papeis do movimento social é dar voz às mães que têm perdido seus filhos nas quebradas, todos os dias. Tivemos mães da região falando e Eduardo, do Bloco do Beco, também falou e contou como é ser jovem na periferia de São Paulo.

 

Logo depois, o governo se manifestou. E o Haddad começou um discurso que não tinha a ver com o debate colocado, o do genocídio. Ficou falando das políticas públicas, algumas até interessantes, referentes ao desenvolvimento, ainda mais pra quem acredita que determinadas políticas são importantes, mas tropeçou quando foi falar do projeto da prefeitura na Cracolândia, porque na quinta-feira anterior à audiência o choque tinha entrado lá e batido em todo mundo. E havia vários jovens do movimento de resistência da Cracolândia que o questionaram sobre sua manifestação, no referido dia, que parabenizava a PM e a tropa de choque pela atuação.

 

Como um prefeito que se dispõe a debater e criar perspectivas contra o genocídio da juventude parabeniza a atuação da PM na Cracolândia, que age violentamente contra jovens e outras pessoas que ficam lá? Ele acabou fazendo um discurso muito triste, disse que traficante tem que morrer mesmo, apanhar, uma postura comprometedora. Principalmente diante do movimento social, não podemos de forma alguma parabenizar a violência de autoridades.

 

Queremos o fim da violência policial nas quebradas. Não só no Jardim São Luis, mas em toda a cidade, em todos os lados da cidade. Temos vários pontos periféricos, inclusive em regiões centrais. O recorte de classe é muito claro, são trabalhadores pobres, negros, gente que busca direito à moradia, ao trabalho, à cidade. Em qualquer lugar da cidade o Comitê Juventude e Resistência e a sociedade civil são contra a violência policial. Queremos uma polícia que não seja disposta a matar e bater em nome de crimes que nem sabe se foram cometidos. Ou ainda a criminalizar qualquer atuação da juventude na cidade.

 

Esse foi o grande problema da audiência. Não encaminhou nenhuma política contra o genocídio, falou que podia encaminhar as mortes ao gabinete, mas isso não é política pública ou ação que respalde a diminuição da violência. Nesse sentido, suas palavras foram muito tristes para um prefeito que se dirige à sociedade civil.

 

Correio da Cidadania: Como você relaciona a realidade vivida na periferia paulistana com as pautas conservadoras que vemos avançar pelo país em relação à segurança pública?

 

Anabela Gonçalves: Da pior forma. Porque são políticas que atingem o povo pobre da periferia. Hoje (16 de julho) o Haddad deu uma declaração muito triste sobre o ECA, ao apoiar a ideia do Alckmin de mudar a possibilidade do tempo de internação de 3 para 8 anos. Ele estava num encontro com a Unicef e disse que o governo federal e ele apoiavam esse projeto do PSDB.

 

É muito triste, depois de ver a comemoração dos 25 anos do ECA e todo o povo na rua contra a maioridade penal. O primeiro impacto é na periferia de São Paulo, porque é aqui onde se pauta tal política pública, é aqui que nossos jovens e crianças são desaparecidos, é aqui onde o ECA não tem atuação consolidada, é aqui onde muita gente ainda não conhece os direitos das crianças e adolescentes. E o governo se fecha num foco criminal, ignorando os diversos outros direitos desses jovens, destruídos diariamente.

 

Isso sem falar no Estatuto da Juventude, que já foi aprovado, mas não é alvo de nenhuma discussão sobre como se colocar em prática. Só se pauta a criminalização do povo pobre. Não acredito que tais políticas vão atingir a classe média, as classes mais altas. Não porque seus filhos não se envolvam com a criminalidade, mas porque vivemos num país onde as condições sociais e políticas conduzem tudo à corrupção. É muito fácil quem tem dinheiro comprar sua liberdade. E quem não tem dinheiro fica na cadeia.

 

Eu sou totalmente contra o aprisionamento, sou abolicionista penal. Entendo as cadeias como direcionadas ao povo pobre, aos filhos dos trabalhadores. O impacto dessas discussões aumenta cada vez mais o medo e desvaloriza a criança e a juventude dentro dos trabalhos desenvolvidos nas regiões mais pobres.

 

Parece que o crime, a polícia, a lei, a jurisprudência, são mais importantes que a educação. Isso leva uma professora, quando um adolescente faz alguma coisa dentro da escola, a chamar o policial pra ir lá, bater, levar pra delegacia, fazer BO, em vez de se debater porque isso acontece na escola. Ao invés de chamar a família ao diálogo, ver o que falta, criar uma rede de proteção aos jovens, só vemos o contrário, é só criminalização. Ignora-se o histórico da comunidade, dos acontecimentos da vida dos jovens, suas condições...

 

Sem dúvida, vivemos um péssimo momento, com cada vez mais leis e medidas que criminalizam, encarceram e nos tiram acesso a políticas públicas. Vejo uma sociedade esquizofrênica, diante dessas políticas híbridas que vivenciamos, pois não se trata de direita ou esquerda quando nos deixam sem saber direito das coisas. Ao mesmo tempo em que se fazem projetos culturais incríveis para a juventude, tem-se o encarceramento da própria.

 

Correio da Cidadania: Por conta dos 25 anos do ECA, tivemos uma manifestação nas ruas, como mencionado. Para além da aprovação da PEC 171, que visa reduzir a maioridade penal para 16 anos, o que pensa do projeto alternativo apresentado pelo PSDB e endossado pelo PT, que a mantém em 18, mas cria outros mecanismos de punição aos menores infratores? Quais seriam as consequências dessa reforma?

 

Anabela Gonçalves: Não é nada alternativo. Provavelmente, isso já estava nos planos deles todos. Sabemos que era inconstitucional aprovar a redução da maioridade e daria briga pra colocar essa emenda na Constituição. Grande parte da periferia acredita que já estava planejado: um grande espetáculo em torno da discussão, para depois essa proposta, que reduz a maioridade de qualquer jeito, pois ficar 8 anos dentro de uma Fundação Casa dá na mesma e faz parte do sistema prisional, avançar.

 

Para quem conhece, leu estudos, entrevistas, tudo que sabemos da Fundação Casa e outros centros de detenção de menores, já sabemos que o projeto “alternativo” dá na mesma, é como aprovar a redução da maioridade penal proposta pela PEC 171. O infrator vai ficar dentro da Fundação Casa, mas é encarceramento, estarão colocando os jovens na prisão do mesmo jeito.

 

Correio da Cidadania: Quais seriam boas políticas de segurança pública a serem aplicadas e, de fato, diminuir nossos índices de violência?

 

Anabela Gonçalves: Trabalhamos com diversas frentes. Uma das coisas em que acreditamos é que há a necessidade de aumentar a rede de proteção da juventude mais atingida pela violência atual. Seria aumentar políticas as quais não se tem acesso, como cultura e educação. Uma educação de qualidade, não essa que o Estado vem dando, embrutecedora, para o mercado de trabalho, que não acrescenta nada. Não tem cultura, trabalha com conceitos retrógrados, ainda com muito preconceito racial, de gênero etc.

 

Temos até alguns avanços na área municipal, mas na área estadual não tem debate algum, só vemos o sucateamento da escola. Isso precisa ser fortalecido, não só pelo Estado, pois já saímos dessa ideia. Trata-se de criar uma rede proteção baseada na sociedade civil, coletivos e movimentos sociais.

 

Precisamos de educação formal e informal, com formação política da juventude, debate de temas importantes para a periferia e seus jovens, pra sua formação e engajamento, porque acreditamos que só mesmo a luta social traz o jovem para o despertar de uma realidade que ele não vive, mas pode reivindicar.

 

E temos de continuar declarando que está havendo, sempre houve, um genocídio da juventude negra e indígena no país. Não acabou, continua acontecendo, é sistemático, exercido pela polícia, pelo Estado, pelo crime organizado, por conta da não legalização das drogas, o não debate público...

 

Os governos estão perdidos, não sabem o que fazer, mas não aceitam a opinião da sociedade sobre legalização, descriminalização do uso, não aceitam ideias de políticas mais ligadas à redução de danos que ao proibicionismo. Portanto, há várias ações a se fazer, sendo a formação política a principal. Porque acredito que, assim, a pessoa possa se reconhecer, saber que o estado de coisas não é natural, não se deve somente a sua pobreza, e sim a políticas de governos.

 

Apesar desse panorama sinistro que temos vivido, com o crescimento do conservadorismo, dos partidos de direita etc. vemos também que os coletivos têm voltado a se organizar. O que chamávamos de movimento social de base está renascendo de outras formas. Vemos jovens e adultos se organizando pra apoiar a juventude. Têm surgido muitos coletivos autônomos, sem ligação com governos e políticas públicas, que estão dispostos a fazer uma política diferente, mais autônoma, e tentar fortalecer nosso combate a esse Estado.

 

Áudio da entrevista

 

Leia também:

Fetos delinquentes e estelionatos científicos

Redução da maioridade penal: “A lógica do Estado Penal é encarcerar e explorar mão de obra”

‘O caso Rafael Braga revela de forma patente a seletividade do sistema penal’

Reduzir a maioridade é manter a exclusão social da juventude

‘Os poderes jurídicos brasileiros não dão relevância à vida do negro’

 

 

Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas.

0
0
0
s2sdefault