Correio da Cidadania

Ocupação nas escolas de São Paulo: uma experiência libertária

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Autogestão, autonomia e liberdade. Essas talvez sejam as explicações mais próximas da realidade do que vivenciaram os estudantes que ocuparam mais de 200 escolas da rede estadual do ensino de São Paulo. Mas o que teria sido o estopim que levou a escola de Diadema a promover a primeira ocupação, gerando o que os próprios estudantes proclamaram, em atos políticos, como sendo “uma onda de ocupações do norte ao sul”?

 

Ao participar de uma roda de conversa de emphatia na Escola Estadual Fernão Dias Paes, uma das pioneiras nessa onda de ocupação, escutei essa calorosa e sincera declaração de uma estudante de 17 anos, que me chamou a atenção. Como essas rodas de emphatia, organizadas pela psicóloga Angélica Rente, partem basicamente do princípio da escuta, ela se sentiu livre para dizer que “nós somos da periferia e nunca ninguém nos escuta. E ainda querem tirar o chão de nossa única esperança”.

 

A noção de perda de um território onde os encontros acontecem parece ser uma pista inicial para que essa avassaladora e impactante onda se tornasse realidade. Durante a ocupação, completou ela, “nós passamos a ter voz e teremos que ser escutados daqui para frente”. Se pensarmos na invisibilidade, marginalização e exclusão da grande maioria dos jovens da periferia, podemos afirmar que o autocratismo e intolerância do governo Geraldo Alckmin (PSDB) tenha sido um espécie de gota d'água de anos de descaso do estado frente à escola pública, não só de São Paulo.

 

É como se os estudantes estivessem inexplicavelmente acomodados a um vulcão prestes a explodir a qualquer momento. Ou ainda, como gritaram os próprios estudantes, também em atos públicos, o governo mexeu em um “formigueiro” supostamente adormecido. Foram jovens que vivenciaram ainda a mais longa greve de professores do estado de São Paulo, que aconteceu durante três meses em 2015.

 

Mas afinal, de que modelo de escola estamos falando? Falta de estrutura arquitetônica na maioria delas, prédios abandonados, lembrando em muitos casos verdadeiros presídios, além de salas superlotadas e o que o sempre atual pedagogo brasileiro Paulo Freire chamou habilmente de Educação Bancária, ou seja, priorização de um conteúdo sem significado em detrimento a um ensino mais significativo, conectado à realidade dos estudantes.

 

Acompanhei de perto a ocupação do Escola Estadual Professor Antônio Alves Cruz, sobretudo porque meus filhos estudam lá. Essa escola tem a sua particularidade. Ela é considerada um modelo a ser seguido pelo governo do estado por ser de tempo integral. Os estudantes dessa escola optaram por ocupá-la algumas semanas depois do início do movimento. Não demorou muito para que os mais céticos, contrários à ocupação, reclamassem: por que ocupar?

 

Afinal, não se trata de uma escola que iria ser atingida pela “reorganização”. Publiquei, nesse mesmo jornal, o artigo Escola Integral e a Inclusão: equívocos e perspectivas, no qual busco mostrar que ensino integral não pode ser resumido ao chamado ensino em tempo integral.

 

Vejamos o que disse uma estudante do Alves Cruz: “ocupamos justamente porque o Alves Cruz não é uma escola modelo. E também não gosto que pensem que somos uma escola modelo. Não gosto de comparar. Tem um desnível muito grande entre nossa escola e as outras. Ocupamos por solidariedade, pois também somos contra a reorganização das escolas. Daqui para frente, o estudante tem que ser consultado”.

 

Quanto às aulas eis o que revelou a estudante: “na prática, são aulas muito faladas que ficam extremamente chatas, desinteressantes e enjoativas. A escola não é apenas a sala de aula, com aulas sem signficados que, se nós não aprendemos, somos chamados de burros”.

 

Eis o que me disse ainda uma outra estudante: “não existe escola modelo. Na verdade, eu perco nove horas na sala de aula. A parte mais diversificada não é tão útil assim. Não aproveitamos de verdade. No papel, esse modelo do Alves Cruz é bonito. Na prática, o que temos são aulas supercansativas”.

 

Experiência libertária

 

Observando “in loco” essa ocupação, além de acompanhar de longe outras ocupações, foi possível verificar que esses estudantes viveram uma verdadeira experiência libertária. Sem ninguém dando ordens e não criando hierarquias interpessoais, eles se auto-organizaram e, em linhas gerais, preservaram o ambiente e o patrimônio da escola.

 

Fizeram comida, lavaram a louça, cuidaram da segurança, da comunicação e se relacionaram interpessoalmente, respeitando as diferenças e as características pessoais de cada um. E tudo isso sem relação de autoridade, inclusive paterna, impondo regras de conduta, do que é certo e errado. Aprenderam na prática e também por necessidade.

 

Enquanto isso, para os grandes meios de comunicação de massa, o que restou foram escolas depredadas e atos públicos violentos. Pouco ou quase nada falaram sobre as aulas livres que os estudantes tiveram durante o movimento.

 

Desde áreas do conhecimento consideradas mais tradicionais, como Matemática, Física, História, Sociologia, Filosofia e muito mais, até aulas de culinária, de teatro, rodas de empathia (onde puderam ser escutados), entre muitas outras. Eles sentiram na pele o que é um ensino mais signficativo e menos tecnicista, onde o que vale é apenas a quantidade do conteúdo apresentado.

 

Mesmo sabendo que eles podem estar em minoria, diante de uma maioria que desejou, até de forma violenta, a volta das aulas tradicionais e das provas, como será o retorno do dia a dia nas escolas em 2016? Os estudantes continuarão a aceitar pacificamente um ensino conteudista sem significado algum para a realidade deles? E como ficará a relação professor/aluno? E o corpo diretivo? Como se comportarão diante dessa nova realidade e consciência dos estudantes? E o poder público? Ao que tudo indica, deve continuar intransigente e autoritário. Como se portarão os estudantes? Só o tempo responderá a essas questões.

 

Finalizando esse artigo, arrisco uma resposta do por que os estudantes do Alves Cruz optaram pela ocupação: solidariedade, espírito de coletividade, em detrimento ao individualismo egocêntrico que impera em nossa sociedade, além de uma nítida necessidade de mudança, do anseio por uma escola realmente voltada para todos e não, como diria o especialista em alfabetização e idealizador da escola da Ponte, em Portugal, José Pacheco, dedicada apenas para aqueles que têm uma boa memória curta, a fim de serem aprovados, por exemplo, no ENEM ou se tornarem frias estatísticas que selecionam as consideradas melhores e as piores escolas, criando a cultura do fracasso escolar e a exclusão.

 

Até hoje não se levou em conta que o modelo acadêmico cartesiano de 50 minutos de aulas orais é criação do século 19 e teve um objetivo claro: gerar mão de obra em série para o sistema que estava emergindo na época: o capitalismo. Com tudo isso, é triste ver que a única resposta possível do Estado foi (e continua sendo) lançar gás de pimenta e bombas, utilizar a violência física e prender arbitrariamente.

 

 

Leia também:

Escola Integral e a Inclusão: equívocos e perspectivas

 

Guga Dorea é jornalista, sociólogo e educador social nas áreas da comunicação e inclusão social

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