Correio da Cidadania

‘Estou sentindo que vai haver uma revolução das mulheres no Brasil’

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Enquanto as principais facções políticas se engalfinham até literalmente, diversos movimentos e expressões da sociedade continuam a eclodir de baixo para cima, fora do controle de certos interesses. Nesse sentido, as pautas relativas aos direitos das mulheres e igualdade de gênero estão entre as que mais arejam a luta social brasileira. E foi sobre isso que entrevistamos Tati Gois, militante negra e feminista de São Paulo.

 

“Não tem como falar de feminismo sem falar da mulher negra, uma população esquecida pelo governo e também pelas próprias feministas, mas que representa 25% da população brasileira e têm suas demandas e especificidades. As mulheres brancas que estão lutando por igualdade precisam colocar o recorte racial dentro do debate”, disse ela, crítica de um certo ‘academicismo’ que ainda predominaria em parte do movimento feminista.

 

Apesar do tenso momento que vive o Brasil e um temor pela ascensão de um conservadorismo tacanho ao extremo, Tati mostra otimismo e enxerga que muitas mudanças já se impuseram na realidade. Em sua visão, “não haverá passo atrás” em diversos temas que já fazem parte do imaginário da sociedade e das mulheres, ainda que algumas políticas públicas estejam longe do ideal.

 

“Nunca acreditei que o movimento feminista, nossa luta, nossas idas para a rua e os nossos gritos, fossem chegar aonde chegaram. Mesmo com tantos políticos conservadores, acredito que estamos prestes a alcançar uma revolução, estamos batendo de frente. É reconfortante saber que a minha filha talvez consiga viver em um Brasil melhor. Vamos derrubar um por um. Alguma coisa vai acontecer. Estou sentindo que vai haver uma revolução das mulheres no Brasil”, afirmou.

 

A entrevista com Tati Gois, gravada nos estúdios da Central3, pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, o que você pode nos contar do último 8 de março, marcado por diversas manifestações feministas Brasil afora?


Tati Góis: Eu como feminista fico muito feliz com a militância de hoje, conheci mulheres muito fortes nessa caminhada. Por outro lado, acredito que o movimento feminista tem deixado algumas “rebarbas”, ou seja, não tem abordado alguns temas que considero muito importantes enquanto feminista negra de periferia.

 

O debate sobre o 8 de março é bastante importante, mas é preciso ser levado em consideração que na época da morte das trabalhadoras que inspiraram a data, em 1857, nós mulheres negras éramos escravizadas, estupradas e mortas. A Lei Áurea só veio em 1888 no Brasil. Assim, talvez naquele momento o 8 de março não representasse a mulher negra. Claro que a data é muito importante por representar a mulher trabalhadora, mas não vejo uma força muito grande para representar a mulher negra de periferia que foi escrava.

 

Correio da Cidadania: E sobre os confrontos envolvendo militâncias com diferentes identidades políticas, inclusive a ponto de governistas agredirem mulheres que não aceitaram colocar a defesa do mandato de Dilma em primeiro plano?

 

Tati Góis: Sobre a manifestação, acho que a mídia deu uma importância muito grande para os desentendimentos que ocorreram dentro dela ao invés de falar das pautas das mulheres.

Em minha opinião, há partidos políticos que se aproveitaram. A data em si é um momento que despertou a sensibilidade partidária com fins de usar a nossa luta e nossa ida às ruas a seu serviço, o que na verdade não é bom, em especial para pessoas como eu, que estou independente de partidos.

 

Correio da Cidadania: Como avalia o governo Dilma, a primeira mulher a chegar à presidência da República, em termos de políticas de proteção social e a igualdade de gênero?

 

Tati Góis Toda política afirmativa é bastante importante. Em relação à presidente Dilma, uma mulher no poder foi um marco, principalmente por se tratar do Brasil, que ainda é um país muito machista. Com o governo Dilma se alcançaram algumas coisas, como a consolidação da Lei Maria da Penha, mas muitas outras ainda precisam ser conquistadas. Independentemente disso, eu não a criticaria tanto como a mídia tem feito, porque sei que muitos dos ataques são em função de ela ser mulher. Isso também precisa ser pautado.

 

Correio da Cidadania: Quais são as principais pautas do momento do movimento feminista, em sua análise?


Tati Góis: O governo tem sido omisso em relação aos direitos das mulheres, um debate muito forte que já está até mais avançado em outros países da América Latina, a exemplo da questão do aborto. É uma pauta que não está sendo debatida de maneira coerente. Dentro disso, desculpe entrar novamente na questão da mulher negra, mas as mulheres negras são quem mais têm morrido em abortos clandestinos, o que é uma das coisas mais importantes a serem pautadas.

 

Não tem como falar de feminismo sem falar da mulher negra, uma população esquecida pelo governo e também pelas próprias feministas, mas que representa 25% da população brasileira e têm suas demandas e especificidades. As mulheres brancas que estão lutando por igualdade precisam colocar o recorte racial dentro do debate.

 

Ao criticar o governo e discutir o que tem sido feito para as mulheres de forma geral no Brasil, podemos ver alguns avanços, mas a mulher negra de periferia como eu, que não tem estudo, está sendo esquecida. Não estudei, não cursei faculdade, nunca li um livro da Simone de Beauvoir. E o movimento feminista tem defendido pautas em relação à mulher estudada, numa linha academicista.

 

Correio da Cidadania: O que você pode contar a nós sobre o atual momento da articulação e atuação do movimento feminista, de modo mais geral?


Tati Góis: Hoje eu não articulo mais nada, não estou mais participando de nenhum grupo dentro do movimento feminista, estou apenas levando o conhecimento do que é o feminismo para as mulheres da periferia que não tiveram acesso à educação. E o que eu acho bastante importante é estar perto das mulheres. Graças aos governos Lula e Dilma hoje estamos tendo mais oportunidades de debater tais assuntos dentro da periferia. Há pequenos avanços que esses governos propiciaram para nós, mulheres da favela.

 

Sempre vou bater nessa tecla, e pode até parecer que sou um pouco chata, ou talvez uma pessoa não politizada o suficiente, vista como superficial por falar apenas da minha vivência. Mas o movimento feminista que é colocado na mídia, ou seja, a mulher que vai falar sobre o feminismo, tem silenciado as demandas das mulheres negras e pobres. Por isso, de certa forma, mesmo me considerando uma mulher feminista, já passei e saí de diversos movimentos. Mas continuo lutando através da arte, participação em eventos, conversas e processos de empoderamentos dentro da periferia.

 

Correio da Cidadania: Como enxerga a exaltação de ânimos mais conservadores no atual momento da vida do país e como isso se relaciona aos direitos, necessidades e anseios das mulheres?


Tati Góis: Nunca acreditei que o movimento feminista, nossa luta, nossas idas para a rua e os nossos gritos, fossem chegar aonde chegaram. Mesmo com tantos políticos conservadores, acredito que estamos prestes a alcançar uma revolução, estamos batendo de frente.

 

Antes éramos apenas mulheres revoltadas que nunca haviam sido bem vistas pela sociedade. Hoje o feminismo tem tomado proporções enormes. São muitas mulheres, e mulheres jovens, indo para a rua bater de frente e mostrar força contra o movimento conservador. Falamos de direitos iguais, tiramos a questão da religião sobre o corpo da mulher, entre outros empecilhos criados pelo sistema patriarcal. Já estamos enfrentando tanta coisa e agora vêm esses conservadores – religiosos principalmente – querendo nos impor retrocessos goela abaixo, como se nós fossemos uma minoria.

 

Acredito que os rumos tomados e os movimentos que estão indo para a rua e se unindo, principalmente sob a bandeira do “Fora Cunha”, mostram uma força tão grande que chegamos a uma situação na qual não daremos passo atrás. Vamos encarar eles de maneira literal e com a força que precisarmos. Eu nunca imaginei que isso pudesse acontecer ainda na minha geração. Vi muitas histórias sobre o feminismo, de mulheres que bateram de frente e morreram por nós que estamos vivendo hoje e fico muito feliz com o que está acontecendo, pois estamos honrando essa tradição e enfrentando os conservadores idiotas, com o perdão da palavra.

 

É uma realização para mim como mulher saber que o movimento feminista não vai voltar atrás na nossa luta e nos nossos ideais. Eu não tenho mais medo. Estou confiante na juventude e nas feministas que estão na luta. É reconfortante saber que a minha filha talvez consiga viver em um Brasil melhor. Vamos derrubar um por um. Alguma coisa vai acontecer. Estou sentindo que vai haver uma revolução das mulheres no Brasil.

 

Áudio da entrevista

 

Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas.

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