Lei Antiterrorismo: “a crise, de modo geral, está aumentando a militarização do Estado brasileiro”
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- Gabriel Brito, da Redação
- 13/04/2016
No mesmo dia 4 de março que marcou o reinício da convulsão política e social nas ruas do Brasil, motivado pela nomeação ainda inconclusa do ex-presidente Lula para a chefia da Casa Civil, um fato que pode ter um peso histórico similar às contendas político-partidárias passou, e continua a passar, despercebido dos grandes debates: a sanção da Lei Antiterrorismo pelo governo Dilma. A este respeito, publicamos entrevista com a advogada Camila Marques, da ONG Artigo 19, um dos poucos atores sociais empenhados contra o projeto.
“O projeto já saiu do Governo Federal com regime de urgência. Isso significou que a sociedade não teve tempo hábil de debater sua necessidade e as possíveis consequências de sua aprovação. Além disso, o projeto não passou pelas comissões específicas e temáticas do Congresso, que tornariam possível um debate mais aprofundado dos seus termos. Por todas essas razões, vemos a aprovação da Lei Antiterrorismo com bastante preocupação”, explicou.
Trata-se, sem dúvida, de um momento muito complexo na vida política nacional, pois enquanto o governo Dilma vê seu processo de impeachment se encaminhar, milhares de grupos e militantes de esquerda, dentro e fora do governismo, bradam contra o que chamam de golpe e fazem juras à democracia. No entanto, a aprovação dessa lei de histórico mundialmente reacionário simplesmente foi ignorada nas manifestações de tais setores, o que acaba por ilustrar a imensa confusão de valores e ideias que paralisa o Brasil.
“Por mais que o texto aprovado traga algumas ressalvas de proteção aos movimentos sociais e manifestantes, não podemos nos esquecer que quem vai aplicar a lei é o judiciário. Ou seja, quem está envolvido na interpretação dessa lei é o sistema de justiça: os promotores, procuradores e os próprios juízes. E sabemos que o nosso sistema de justiça é muito conservador quando precisa lidar com movimentos sociais”, advertiu Camila.
A entrevista completa com Camila Marques, gravada em parceria com a webrádio Central3, pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como você enxerga o projeto de lei 2016/2015, mais conhecido como a Lei Antiterrorismo, que visa tipificar essa modalidade de crime aqui no Brasil, algo inédito, sancionado pela presidente Dilma no mesmo dia da polêmica nomeação de Lula para a Casa Civil?
Camila Marques: Nós da sociedade civil e movimentos sociais recebemos com bastante preocupação a aprovação do projeto de Lei Antiterrorismo. O texto da lei é extremamente vago e pode criminalizar movimentos sociais e manifestantes. Mas para além dessas preocupações é importante dizer que o processo é marcado por muitos abusos e arbitrariedade.
O projeto já saiu do Governo Federal com regime de urgência. Isso significou que a sociedade não teve tempo hábil de debater sua necessidade e as possíveis consequências de sua aprovação. Além disso, o projeto não passou pelas comissões específicas e temáticas do Congresso, que tornariam possível um debate mais aprofundado dos seus termos. Por todas essas razões, vemos a aprovação da Lei Antiterrorismo com bastante preocupação.
Correio da Cidadania: Você acredita nas alegações das principais representações políticas favoráveis ao projeto, algumas delas ancoradas em eventos como as Olimpíadas ou mesmo em comparação a países estrangeiros que já tipificaram o terrorismo? Ou você pensa que essa lei tem única e exclusivamente a intenção de criminalizar movimentos e contestadores sociais de maior porte?
Camila Marques: Não digo que intenção tenha sido unicamente a criminalização dos protestos sociais, mas acredito que o processo também foi composto por esse interesse. Muitos organismos internacionais se manifestaram contrários ao projeto brasileiro dizendo que era extremamente vago e poderia trazer prejuízos à democracia. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a ONU se manifestaram nesse sentido – e reiteraram depois de sua aprovação.
Temos um cenário no mundo todo, mas principalmente no Brasil, com os grandes eventos como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, que abrem brechas e possibilidades para que se justifiquem a aprovação de medidas e leis muito restritivas. Muitas vezes o Estado aprova leis de cunho intimidatório com vistas a manter a segurança em questões relativas a grandes eventos. Mas o que vemos é que em outros países já se deu o mesmo roteiro e o final não foi benéfico para a sociedade, porque geralmente tais leis acabam usadas para criminalizar os movimentos sociais internos.
Correio da Cidadania: Mas não haveria nenhum tipo de perigo ao qual o Brasil precisaria se precaver e que justifica de alguma maneira esse tipo de legislação?
Camila Marques: Um dos pontos que sempre falamos durante todo o processo, inclusive durante sua apresentação lá no Congresso, é que o Brasil já possui normas e leis que poderiam combater o terrorismo. Temos uma série de artigos no Código Penal, em leis especiais e na lei que se refere a organizações criminosas. Casos de terrorismo já poderiam estar enquadrados nesses tipos de legislação. Portanto, defendemos que não havia a necessidade de uma legislação específica, ainda mais feita às pressas, como a que foi aprovada agora.
Correio da Cidadania: Considera plausível uma leitura enviesada dos aparatos de governo e justiça, de modo a tratar de maneira discricionária uns e outros protestos e manifestações?
Camila Marques: Com certeza não é de hoje, nem dessa década, que os movimentos sociais brasileiros são criminalizados. Seja pelo Executivo, pelo Legislativo ou pelo Judiciário. Assim, por mais que o texto aprovado traga algumas ressalvas de proteção aos movimentos sociais e manifestantes, não podemos nos esquecer que quem vai aplicar a lei é o judiciário. Ou seja, quem está envolvido na interpretação dessa lei é o sistema de justiça: os promotores, procuradores e os próprios juízes. E sabemos que o nosso sistema de justiça é muito conservador quando precisa lidar com movimentos sociais.
Já vimos em diversas decisões que leis são aplicadas de forma completamente inadequadas contra movimentos sociais. Já vimos, por exemplo, o MST ser processado pela Lei de Segurança Nacional. Vimos em São Paulo, em 2013, um casal que participou de uma manifestação ser processado pela Lei de Segurança Nacional, acusados de serem terroristas. Portanto, tal tipo de lei pode ser usado como um instrumento intimidatório, além de interpretado de maneira muito subjetiva e inadequada pelo poder judiciário.
Correio da Cidadania: O fato de tal projeto vir do governo federal simboliza o que, a seu ver, em relação ao PT e sua trajetória no poder central?
Camila Marques: Esse fato é bastante sintomático de que o Governo Federal, por meio de suas muitas esferas e instrumentos, vem tentando sofisticar e trazer outros instrumentos legais a fim de serem usados para barrar as críticas e a atuação de movimentos sociais. Acredito que o Governo Federal deveria ter uma preocupação triplicada no momento em que propôs o projeto, isto é, a respeito de como poderá ser usado no futuro.
Correio da Cidadania: Organizações como a Artigo 19 e similares têm aparecido com maior frequência nos debates políticos e sociais do país. Acredita que também acabam exercendo uma representação que antes cabia mais a partidos e movimentos sociais mais enraizados? Você enxerga um vazio político que inclusive explica a ofensiva conservadora em voga?
Camila Marques: Acredito ser muito necessária a existência de uma sociedade bastante diversa, forte, capaz de incidir politicamente, pautar seus ideais, enfim, sensibilizar o governo e construir políticas públicas de acordo com aquilo que está sendo discutido de forma mais profunda com a própria sociedade. Assim, acho saudável um ambiente de oposição e de críticas ao que está posto, de forma muito forte e expressiva. É muito importante.
No entanto, é claro que o Brasil vem passando por uma onda conservadora muito grande e isso também é um ingrediente que amplia a necessidade de a sociedade civil estar forte e enraizada na luta social para evitar retrocessos e avançar nas suas pautas.
Correio da Cidadania: Para onde acredita que esteja indo o Brasil, em mais um ano em que a crise econômica, política e ética prossegue e o desemprego só aumenta, em meio a projetos como esse que discutimos aqui?
Camila Marques: São tempos bastante difíceis em que vemos uma série de retrocessos nos campos econômico e político. Vemos leis restritivas, inciativas que nos fazem voltar às décadas de 60 e 70, além de os campos da saúde, educação e outros setores sociais também experimentarem retrocessos.
É um momento em que a sociedade precisa estar muito atenta para o que os atores públicos estão fazendo. Para além disso, as crises política e econômica são um passo para fomentar a participação da sociedade, a fim de podermos participar de forma mais ativa da construção de políticas públicas e da formação do Estado, de forma a realmente consolidar a democracia no Brasil.
Correio da Cidadania: Seria uma mostra clara de que os governantes do país, de variadas escalas, não tem projeto algum de satisfação das necessidades essenciais da população?
Camila Marques: Concordo. Vejo que estamos seguindo um momento de desenvolvimento das cidades e de políticas públicas muito militarizadas no Brasil. Independente do estado em que a gente esteja, vemos a segurança pública ocupar um papel central nas políticas públicas estaduais. E é uma segurança pública que vai muito no sentido de criminalizar a população que já é marginalizada. Isso acaba por aumentar o anseio punitivista que já existe na sociedade, ao invés de se discutir, de fato, os problemas da segurança pública e pensar em meios mais alternativos e eficazes de se resolver seus problemas.
Um exemplo dessa falta de tato está na questão das manifestações de 2013, que depois deram ensejo para que as Secretarias de Segurança Pública de São Paulo e Rio de Janeiro pudessem se armar mais, aumentar e sofisticar seu aparato repressor. O que vemos é que a crise, de forma geral, está aumentando a militarização do Estado.
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Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.