Correio da Cidadania

Resenha: Memórias da rua, amor, luta e maloca

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Quem passa diariamente pela Radial Leste, saindo ou chegando ao centro de São Paulo, pode não perceber que debaixo daquele viaduto – o primeiro sentido bairro – existe uma comunidade auto-organizada de moradores de rua.

A invisibilidade da rua perante a sociedade funciona como um escudo de duas faces para quem não é da rua. Por um lado, repleta dos seus autointitulados “cidadãos de bem” e “gente honesta e trabalhadora”, a sociedade fica imune ao conhecimento desta sempre presente realidade e suas histórias. O olhar que essa sociedade tem da rua pode variar; de gente vulnerável que precisa do paternalismo do Estado ou de benfeitores endinheirados a vagabundos que não querem trabalhar e merecem o castigo policial.

Por outro lado, o não conhecimento e o não envolvimento com tais pessoas e suas histórias dá a essa sociedade controversa (para não dizer hipócrita) a medida certa da consciência: não importam as pessoas, as histórias, as alegrias e nem as dificuldades da rua; basta uma doação de alimentos ou roupas, acompanhada de uma bela foto no instagram para dormir tranquilo e curtido.

Assim, a realidade social e as histórias pessoais – que muitas vezes se misturam – acabam confinadas na própria comunidade, expandindo-se no máximo para pessoas mais próximas; o que contribui com a invisibilização dessa realidade e sua correlata resistência e história humana – fortalecendo o papel de desumanização e exclusão da população da rua em geral e, em especial, da comunidade do viaduto Alcântara.

O livro de contos escrito por Paulo Escobar vem no sentido de romper essa barreira e contar as histórias das pessoas que vivem, invisibilizadas pela sociedade e criminalizadas pelo poder público, nas ruas de São Paulo. O autor, que participa do CATSO – Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais – organização que atua junto a comunidade (leia as matérias relacionadas abaixo para entender melhor), é nascido no Chile e viveu durante os primeiros dez anos de sua vida sob a ditadura de Augusto Pinochet. Desde cedo conhece os limites das arbitrariedades do poder.

Escobar veio ao Brasil com o pai, ainda criança, onde morou dentro de uma fábrica no Bom Retiro. Depois mudou-se para a zona norte, onde viveu nos bairros Jardim Brasil e Vila Nivi. Seu primeiro contato com a população de rua foi no Tucuruvi nos anos 90, quando conheceu e se aproximou dos catadores de material reciclável. De lá pra cá, dedica sua vida aos de baixo, àqueles que nem ao privilégio do básico têm acesso. Vive diariamente “ajudando nos corres do viaduto” como ele mesmo diz e, assim como todo o CATSO, não adota uma postura vanguardista.

Dizem ser melhor “se organizar com a rua” do que ter a pretensão de “organizar o povo de rua”. Afinal de contas, um povo que precisa se organizar e resistir diariamente, pondo o peito na frente de uma arma da GCM ou da PM para garantir quatro paredes, cobertores e um chuveiro, além de outras necessidades básicas à vida, não pode ser considerado um povo incapaz de organizar-se. Essa condição expõe uma enorme contradição dos dias atuais: itens básicos para a vida humana, numa sociedade entorpecida pelo capitalismo, tornam-se privilégios sociais.

Narrados neste contexto, os microcontos de Escobar vão desvendando segredos e rememorando histórias que estavam invisíveis no mundo da literatura. Ele consegue passar, em poucas palavras e muito sentimento, por diversas questões em um mesmo conto. Coisas triviais, humanas, que se passam com qualquer pessoa, se misturam à realidade social e suas dificuldades de diversas ordens. O grande acerto da obra foi saber contar as histórias da rua de maneira bonita e poética mantendo os pés no duro chão da realidade, sem romantismos e sem achismos.

O Corote lava a alma daqueles que sofrem, os faz esquecer a crueldade de uma sociedade que finge que não existem ou das cicatrizes familiares que carregam.

Companheiro nos momentos de solidão e na alegria.

O Corote, incompreendido e olhado com reprovação pelos mesmos assistenciais e pelos conservadores.

Porém, enquanto esta sociedade condenar em muito a miséria e o sofrimento, o Corote continuará sendo uma alternativa daqueles que sofrem no mundo. A cachaça do Corote alivia as dores e o frio daqueles que padecem nas calçadas”.

*São dignas de nota outras pessoas que participaram do lançamento deste livro. O Padre Júlio Lancelotti escreveu o prefácio; Sérgio Rossi, filho de Waldemar Rossi - eterno colunista deste jornal, produziu o projeto gráfico e a capa da obra; revisada e publicada pela Editora Córrego através da Caróu Diquinson, que junto do autor também está presente na comunidade da Alcântara.

Ficha técnica

Título: Memórias da rua, amor, luta e maloca
Autor: Paulo Escobar
Editora: Córrego
Ano: 2016
Páginas: 82 páginas
Preço: R$ 25,00

Para adquirir um exemplar, entre em contato com a Editora Córrego: http://www.editoracorrego.com.br/

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Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania

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