A greve dos caminhoneiros e a constante pasmaceira da extrema esquerda
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- Gabriel Silva
- 28/05/2018
Nesta segunda, 28, chegamos ao oitavo dia da greve nacional dos caminhoneiros. O movimento não para mesmo depois de passar por cima de acordo firmado com o governo federal por várias de suas entidades representativas e mesmo já tendo conseguido arrancar grandes vitórias econômicas. Consegue forçar os governos federal e estaduais a promoverem redução de impostos sobre os combustíveis e realização de subsídios bilionários à Petrobras para sustentar a redução do preço do diesel e suspensão dos ajustes diários de preços dos combustíveis, num processo que fez as ações da empresa despencarem e colocou em pauta a demissão de seu presidente, Pedro Parente. Mais importe, a greve despertou imensa solidariedade ativa de outros setores da classe trabalhadora.
A sanha grevista
Despertou os petroleiros, que nos dias anteriores já fizeram paralisações em solidariedade aos caminhoneiros e com pautas próprias, paralisando instalações importantes em Canoas (RS), Betim (MG) e Araucária (PR). O clima de luta na categoria forçou a Federação Única dos Petroleiros a marcar uma greve nacional por tempo determinado para esse dia 30, quarta, com duração prevista de 72h. No domingo, os petroleiros promoveram novos atrasos e cortes de rendição nas quatro refinarias e fábricas de fertilizantes que estão em processo de venda: Refinaria Landulpho Alves – Rlam (BA), Abreu e Lima (PE), Repar (PR), Refap (RS), Araucária Nitrogenados (PR) e Fafen Bahia.
Os petroleiros se aproximam da data base de sua campanha salarial e sofreram no último ano forte degradação de suas condições de trabalho devido às reestruturações na empresa e a um agressivo programa de demissão voluntária que reduziu a categoria em 12 mil trabalhadores, sobrecarregando todos os demais. Além disso, a Petrobras também passa por um processo de privatização.
Também mobilizou os motoristas de uber, que têm sentido diretamente em sua renda o aumento do preço dos combustíveis e aderiram em peso à paralisação dos caminhoneiros em diversas cidades. Há noticias de paralisações e protestos de ubers nas cidades de São Paulo (SP), Recife (PE), Campina Grande (PB), Belém (PA), Brasília (DF), Salvador (BA), Campo Grande (MS) e Brusque (SC), na que provavelmente é a primeira grande mobilização nacional com ações diretas radicalizadas dessa nova categoria profissional de motoristas, que também é símbolo da flexibilização das relações de exploração do trabalho. As mobilizações dos ubers, unificadas com caminhoneiros, motoboys e com apoio popular já haviam sido prenunciadas em mobilizações unificadas justamente contra o aumento da gasolina no fim do ano passado em Goiânia.
Paralelos
É curioso lembrar que antes da revolta popular derrubar o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo em 2013 e se espalhar por todo país, já havia ocorrido uma revolta popular em menor escala que derrubara o aumento da tarifa em Goiânia, capital do Centro-Oeste que novamente prenuncia em seu microcosmo uma grande rebelião nacional. Na sexta feira, 19/05, quem foi para a icônica Avenida Paulista no período da tarde viu de um lado a avenida paralisada por ubers, do outro lado por motoristas de vans escolares.
Os motoristas de vans escolares em São Paulo capital aderiram em massa à greve dos caminhoneiros. Estima-se que algo em torno de 90% da categoria parou, são mais de 6000 motoristas que deixaram de transportar mais de 100 mil crianças para a escola desde quinta, 24/05. Só na capital do estado de São Paulo estima-se em 20.000 o número de motoristas de vans parados, o que equivale a 80% da categoria; há registro de mobilização de motoristas de vans também em outros estados.
Os motoristas de vans escolares em São Paulo têm tido uma progressiva escalada de combatividade desde o ano passado, quando já faziam protestos e paralisações junto com as mães afetadas pelos cortes do programa de transporte escolar gratuito (TEG) promovidos pela prefeitura de São Paulo, que tem posto em marcha demissões e diminuição do número de crianças transportadas, portanto, redução de renda dos motoristas.
Tais cortes têm sido repetidos em diversas prefeituras. Como militante do Movimento Passe Livre acompanhei e apoiei as mobilizações deles no último período, suas lutas se dão sempre à margem das organizações tradicionais, mesmo tendo eventualmente influência de direções ligadas ao PSOL. Já em janeiro desse ano a categoria, para enfrentar um decreto do prefeito Dória que promovia a demissão de 2000 motoristas (e motivada pela conjuntura de mobilização nos transportes com a luta contra o aumento e a greve dos metroviários), ocupou a Secretaria Municipal de Educação, conquistando a derrubada do decreto.
Nos meses seguintes a categoria prosseguiu junto às mães realizando vários atos regionais contra os cortes das TEGs, chegando a conquistar pequenas vitórias locais. Tal processo aparece como um prenúncio para essa primeira paralisação estadual e talvez nacional massiva com travamentos, como a feita nesta semana pelos motoristas de vans. Entre as avenidas travadas somente na sexta, 25/04, estão algumas das principais avenidas da capital como a Av. Paulista, Marginal Pinheiros, Marginal Tietê, Radial Leste e Av. 23 de maio, além de se somarem aos caminhoneiros em outras avenidas e rodovias.
Os motoqueiros são outra categoria altamente precarizada, cuja renda é diretamente reduzida pelo preço alto dos combustíveis e que tem aderido a paralisações e atos dos caminhoneiros a nível nacional.
Além destas categorias, está claro que a deslegitimação total do governo e a deterioração das condições de vida da população em geral criaram um caldo de maciço apoio aos movimentos grevistas e de travamento capitaneados pelos caminhoneiros, apoio que tem se manifestado em diversas ações de solidariedade e que tem sido mensurado e combatido diariamente pela grande mídia. Tal apoio é o principal fator pra explicar a relativa pouca repressão que o movimento tem sofrido, apesar de o próprio presidente Michel Temer num pronunciamento ao vivo em rede nacional de televisão ter ameaçado usar o exército para reprimir o movimento.
Importantes greves já ocorriam semana passada de forma paralela, sem relação direta com a greve dos caminhoneiros, mostrando a sanha grevista que circula entre os trabalhadores nessa conjuntura. Paralisaram essa semana professores de escolas privadas de São Paulo, uma categoria sem tradição de luta que prepara sua primeira greve histórica para resistir aos ataques da reforma trabalhista. Houve greve dos metalúrgicos da Mercedes-Benz de São Bernardo, que conquistaram aumento real e a manutenção do acordo coletivo ameaçado pela reforma trabalhista.
Também ocorreu a greve dos rodoviários de Salvador, que ao serem obrigados pela justiça a manterem a circulação parcial dos ônibus liberaram as catracas e praticaram a tarifa zero na cidade. Em 24 horas, conquistaram o aumento salarial acima da inflação.
Sou bancário e na minha categoria profissional o assunto da semana foi essa onda grevista. O Banco do Brasil anunciou remoção compulsória de algumas dezenas de escriturários em mais um capítulo das constantes reestruturações que têm ocorrido, mas dessa vez o clima era outro e já se marcou uma paralisação de resistência para segunda-feira de forma sintomática e em clima de preparação da campanha salarial da categoria que deve ocorrer em julho/agosto (1).
Greve geral?
A greve já provoca desabastecimento de postos de combustíveis, aeroportos, entrepostos de alimentos e restaurantes, paralisação de grande parte das frotas de ônibus de transporte público nas principais capitais brasileiras, paralisação da fabricação de veículos nas principais montadoras, paralisação total ou parcial em diversas indústrias, paralisação parcial das postagens dos Correios, paralisação no abate de animais, se estimando a perda de 1 bilhão de aves e 20 milhões de suínos por falta de alimentação, além da perda de enormidades numéricas de vários produtos perecíveis com prejuízos tamanhos que o setor do agronegócio tem pressionado o governo por um plano de reestruturação na área.
Sem muito rigor no levantamento dos dados, já podemos afirmar, com segurança e sem exageros, que em todo o Brasil alguns milhões de trabalhadores estão tendo desde a semana passada seu trabalho total ou parcialmente paralisados devido à falta de combustíveis, falta de transporte para ir e voltar do trabalho ou falta de insumos diversos que não chegam devido ao imenso movimento nacional de greve e travamentos dos caminhoneiros.
A greve dos caminhoneiros já é, por sua amplitude, força, nacionalização, disseminação da luta por diversas categorias, apoio social, alta radicalidade nas ações diretas e impacto econômico direto para o conjunto da economia capitalista, o principal movimento dos trabalhadores no último período. É comparável nestes quesitos apenas a junho de 2013 e pela greve geral do dia 28/04/2017, claramente superando estes dois eventos em seus impactos econômicas imediatos, sendo inclusive o mais próximo de um real movimento de greve geral que a minha geração já viveu.
Segundo o jornal Valor Econômico as perdas com a greve já superam R$9,5 bilhões distribuídos pelos diferentes setores da economia nacional. Os ganhos do movimento, com reduções do preço da gasolina que geraram cifras de subsídio na casa dos bilhões, também são uma vitória em escala muito raramente vista na miséria da realidade dos movimentos sociais e sindicais brasileiros do último período.
O movimento dos caminhoneiros, articulado por WhatsApp com uma sofisticada rede descentralizada, tem uma qualidade organizativa que ainda não se tinha visto em grande escala em mobilizações de trabalhadores no país, com muitas semelhanças, neste aspecto, com as jornadas de junho de 2013, que foram convocadas e disseminaram-se em ampla rede organizativa descentralizada por todo país pelo Facebook. Depois, repetiu-se na onda de ocupações dos secundaristas, que a partir de São Paulo tomaram o país em 2015 e 2016.
Ainda mais que em junho, os principais veículos de comunicação e deliberação dos secundaristas foram o Facebook e o WhatsApp. Tal descentralização permitiu que os caminhoneiros passassem por cima de diversas tentativas de desmobilização pelo governo, por suas entidades representativas e pelas próprias centrais sindicais que se oferecem para apaziguar o movimento (2). Todos que leem este texto devem ter recebido em seus celulares diversos vídeos, textos e fotos do movimento dos caminheiros.
Assim como em 2013, pela pauta da redução da tarifa, a pauta da redução do preço dos combustíveis tem um apoio generalizado e consistente pela sociedade, fazendo com que desde o início o movimento tenha um apelo por apoio politico para setores mais amplos da população do que os diretamente mobilizados, furando o corporativismo e um direcionamento das demandas ao Estado.
Uma esquerda pasma
Fico com um sentimento doloroso de imensa frustração organizativa e indignação com a pobreza de análise, falta de debates e forte incapacidade de ação que beira a reação pela maior parte da esquerda e, sobretudo, pela extrema-esquerda em relação à greve dos caminhoneiros. Aliás, é o que me motivou a escrever este texto. Cinco anos depois de junho de 2013 e um novo evento nacional surgido de forma inesperada, novamente temos a extrema-esquerda pasma e sem capacidade de influenciar os acontecimentos.
O movimento dos caminhoneiros e as principais categorias que aderiram ativamente ao movimento, com exceção da mais importante (petroleiros), isto é, motoristas de vans escolares, ubers e motoboys, são todos setores precarizados que estão excluídos do sindicalismo oficial, da CLT, além de não possuírem tradição de lutas ou proximidade por parte da esquerda brasileira.
Esse tipo de luta de trabalhadores “autônomos” – que parecem por vezes se confundir com pequeno-burgueses por terem propriedade de sua ferramenta de trabalho, porém, são precarizados e presos a uma situação de submissão semissalarial com os seus contratantes, e não são claramente representados pelas entidades sindicais – deve se tornar mais frequente com os novos tipos de contratação, trabalho intermitente e fenômenos como a pejotização.
Além disso, a maioria dos setores da extrema-esquerda que valoriza as lutas do mundo do trabalho costuma se pautar a partir de um instrumental teórico que tende a desprezar as lutas que partem da perspectiva do consumo e fora das organizações tradicionais que têm estourado no último período pelo Brasil e no mundo. Não é casual que a luta contra o aumento tocada pelo MPL em 2013 e a atual greve dos caminhoneiros contra o aumento dos combustíveis partam da centralidade dos transportes, e tenham sido as duas principais mobilizações a se espalhar e abalar o capital em nosso país no último período.
Parte-se do mesmo problema de 2013, o encarecimento do custo de vida a partir do transporte, mas dessa vez a mobilização não partiu dos usuários de transportes público, mas bateu num ponto mais profundo, se generalizou a partir do principal insumo do transporte em geral, foram os setores de trabalhadores de transporte que são mais diretamente afetados pelo preço dos combustíveis como os caminhoneiros, transportadoras, motoristas de vans, motoboys, ubers, alcançando inclusive a própria fabricação dos combustíveis com a mobilização dos petroleiros.
Foi toda a cadeia produtiva que gira imediatamente em torno dos combustíveis que movem o transporte que se mobilizou numa tendência de unificação nessa greve. Curiosamente essa unificação se deu à margem das organizações em geral, à direita ou à esquerda, se dando a partir de uma composição de classe delimitada por critérios econômicos e unificando, assim, na prática grevista as posições políticas mais contraditórias.
A postura das organizações perante a greve dos caminhoneiros é só mais uma prova de como a extrema-esquerda pouco aprendeu com junho de 2013, por mais que Conlutas e PSOL tenham declarado apoio logo cedo. A débil ação mostra quão pouca é sua disposição de sair de seus pequenos feudos seguros, se arriscando em influenciar o movimento geral da classe. Neste caso vemos que a direita tem sido muito mais receptiva em se aproximar e pautar o movimento (3).
O debate sobre os setores patronais próximos ao movimento dos caminhoneiros são reais, mas não podem nos desmobilizar, devemos lembrar que a greve geral do dia 28/04/17 também teve em grande escala características de lockout, também, analisando a história vemos como momentos de greves gerais e grandes lockouts acompanham com frequência os processos revolucionários. Ao se pensar o encaminhamento de uma revolução, deve-se lidar ativamente com a patronal na ação direta.
Que a extrema-direita seja o principal setor político a se capitalizar com essa histórica greve dos caminhoneiros é um perigo ao conjunto dos anticapitalistas. A cooptação pela direita de setores da vanguarda de um movimento vindo de baixo de forma descentralizada com poder de em poucos dias desabastecer de combustível e alimentos as principais cidades e interromper total ou parcialmente as principais empresas produtivas é uma ameaça de ascensão do fascismo muito mais consistente do que as manifestações dos verde-amarelos jamais poderiam ser. É necessário atuar numa perspectiva que fomente essa greve para que fortaleça os laços de solidariedade entre a nossa classe contra os capitalistas e não que fortaleça a direção dos capitalistas sobre os movimentos dos trabalhadores.
Algumas questões colocadas pela possível continuidade da greve dos caminhoneiros nos próximos dias são o desabastecimento crescente nas principais cidades, que demandam pensar em meios de infraestrutura para resistir a isso e a consequente diminuição do apoio que a greve tem no conjunto da população.
Caso a greve se mantenha, a questão da repressão militar vai se colocar com mais força e temos de pensar formas de lidar com as consequências disso. A propagação/generalização da greve com a paralisação de outras categorias ainda é uma possibilidade em aberto e este é o momento de propagandear a greve geral por direitos. Com ou sem a continuidade da greve uma imensa quantidade de locais de trabalho teve suas atividades interrompidas. Assim, conflitos em torno da reposição ou desconto das horas paradas por falta de insumos para a produção devem acontecer em grande quantidade com o fim ou prolongamento da greve dos caminhoneiros.
Este texto é uma tentativa de ajudar a fomentar esse importante debate entre os anticapitalistas e um voto contra o sectarismo autocentrado que reina nas organizações e que tem dificultado que pensemos qualquer coisa para além dos nossos próprios grupelhos.
Notas
1) Paralisação do edifício São João do Banco do Brasil convocada para essa segunda 28/05:
https://www.facebook.com/retomadabancaria/photos/a.1716704701901221.1073741828.1716234561948235/2112435592328128/?type=3&theater
2) Nota das centrais:
http://fsindical.org.br/forca/nota-das-centrais-sindicais-sobre-a-greve-dos-caminhoneiros
3) Rafael Saddi, 26/05/2018, facebook: https://www.facebook.com/rafael.saddi/posts/1978536055491250
Quem melhor acertou na percepção do momento e por isso melhor capitalizou a luta dos caminhoneiros foi a extrema-direita. Rapidamente, visitaram as concentrações dos caminhoneiros, servindo água e café, formando uma rede de apoio. Souberam vincular a pauta concreta dos caminhoneiros e a crise de representação política entre o precariado às suas próprias análises gerais (corrupção na Petrobrás que gerou isso. Fora todos os políticos. Só os militares para resolver. A luta é de todos os brasileiros contra os políticos e os impostos.).
Os vídeos do Bolsonaro foram os melhores de todos. Falou diretamente para o caminhoneiro, de sua situação concreta e difícil. Parabenizou a coragem e a força. Por fim, e no fim, só depois de elogiar muito, aconselhou a não trancarem mais as rodovias. Ora, claro. Sem rodovia trancada, sem enfrentamento com os militares. Sem enfrentamento com os militares, sem prejuízo para a pauta da extrema-direita.
É a primeira vez que a extrema direita brasileira se envolve diretamente em uma luta concreta da classe trabalhadora. Até então só falava ao trabalhador em termos moralistas (aborto, pedofilia) e em termos de segurança pública (bandido bom é bandido morto, estado mais punitivo contra os bandidos). Nunca se dirigia às suas pautas econômicas. Deram um grande passo. Enquanto isso, uma boa parte da esquerda fez um papel ridículo, divulgando posts mentirosos que reduziam toda a movimentação à conspiração das empresas e como nova etapa do golpe. O erro de análise sai caro. Muito caro.
Gabriel Silva é bancário e ativista do MPL.
Publicado originalmente em Passa Palavra.