Correio da Cidadania

O Brasil, o imobilismo e a luta que brota

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O Brasil vive um descompasso entre o que acontece nas redes sociais e a vida real. Nas bolhas internéticas há uma gritaria geral sobre os desmandos da família que hoje comanda o Brasil. Um deles, que gerou uma infinidade de postagens foi o do presidente da nação que, acusado de ter autorizado a entrada do assassino da vereadora Marielle Franco no seu condomínio, no dia do crime, simplesmente foi lá e pegou os registros telefônicos alegando que o fazia para evitar que fossem adulterados.

Por incrível que possa parecer, apesar dos protestos nas redes, isso não foi motivo para qualquer ação da justiça brasileira. No dia da denúncia, um dos filhos do presidente, Carlos, também apresentou uma cópia dos registros da portaria, ato que poderia levar à prisão qualquer outra pessoa. Só que para as instituições de justiça brasileira isso não configura crime, tudo está bem.

Nova polêmica veio de outro filho do presidente, Eduardo, que, na Câmara dos Deputados anunciou sem pejo que se a esquerda brasileira resolvesse radicalizar o governo lançaria um AI-5. Com isso quis dizer que desataria um processo de censura, caça, assassinato, desaparição e tortura, coisa que o Ato Institucional número cinco, baixado durante a ditadura cívico/militar produziu. Ora, isso se configura crime contra a democracia. Está inclusive na Constituição. Mas, para as instituições brasileiras tudo não passou de um arroubo juvenil. O Ministro da Justiça chegou a dizer que o deputado pediu desculpas, então tudo está certo. Essa é a nova jurisprudência da lei brasileira, pedir desculpas, claro que isso só vale para a família Bolsonaro e seus amigos.

Essas são apenas duas passagens envolvendo a família que mostram claramente o descompasso entre a gritaria nas redes e a calmaria na vida real. O governo atual não é tocado por absolutamente nada e a mídia nacional simplesmente não fala sobre os assuntos em questão. E, quando fala, minimiza. Os incêndios na floresta amazônica seguem, já se sabe que houve uma ação deliberada criminosa, mas em vez de repudiar o crime o presidente informa que as queimadas foram importantes para ele impulsionar seus projetos de ocupação da região amazônica. E fica tudo por isso mesmo.

O Nordeste brasileiro vive uma tragédia ambiental sem precedentes, com mais de 50 dias de vazamento de óleo. O governo simplesmente não deu bola para o assunto e só foi agir depois de muita gritaria internacional. Foram 40 dias de omissão e mesmo agora as ações para conter o óleo e limpar as praias são levadas pelas prefeituras locais e pela população. E, ao que parece, tudo está bem. A vida segue.

Os partidos de esquerda fazem seu trabalho em nível legislativo. Denunciam, fazem moções, pedem investigação, tudo como se fosse possível acontecer alguma coisa por essa via. É um ritual, sem qualquer resultado prático e que se expressa unicamente nas bolhas internéticas, feicibuquianas e uatizápicas.

Enquanto isso, na vida mesma, as pessoas que tornaram possível esse governo seguem defendendo com unhas e dentes o “mito”. Nenhuma denúncia lhes chega, e quando chega logo é imediatamente desarmada via memes, propaganda digital que se espalha nos grupos tornando sem efeito qualquer crítica ao presidente e sua família. Está tudo dominando.

No campo das centrais sindicais que historicamente organizaram os trabalhadores para as grandes lutas também há um silêncio rotundo. São meros aparelhos burocráticos, incapazes de mobilizar os trabalhadores. O que se vê, na realidade, é o contrário: os trabalhadores tendo de passar por cima das instituições que criaram quando precisam encaminhar alguma luta. E não têm sido poucas.

O Dieese contabilizou perto de 1.500 greves em 2018, e já estão registradas quase mil agora em 2019. E, pasmem, a maioria dessas movimentações foi para garantir direitos básicos que estavam sendo surrupiados pelos patrões, como o pagamento de salários, 13º salário, férias. Um cenário assustador que tende a ficar pior com a consolidação da reforma trabalhista que legaliza a retirada de inúmeros direitos e abandona ainda mais o trabalhador à própria sorte.

É fato que há uma imobilidade das entidades tradicionais dos trabalhadores. Inclusive, diante de uma proposta de reforma sindical, que prevê parcerias com os patrões, o que se vê são algumas centrais negociando o projeto “menos pior” dentro do Congresso Nacional, seguindo com a política suicida de acreditar que por dentro do Congresso conquistarão avanços. Colado a isso temos o apoio cego dos grupos bolsonaristas que têm feito excelente trabalho de comunicação, expandindo suas redes e bombardeando os espaços com informações falsas sobre as “maravilhas” do governo.

Sem justiça do trabalho, sem central de luta e sem sindicato combativo restará, então, à classe trabalhadora se reinventar o que, de certa forma, vem acontecendo, ainda que muito lentamente. Quem vive na pele a derrocada das suas condições materiais não fica parado. A tendência é o aprofundamento das contradições e da luta de classe. Isso leva os trabalhadores para a luta e a luta pode abrir caminhos grandiosos. Os povos originários, por exemplo, que enfrentam nova onda de violência e extermínio decidiram sair pelo mundo, denunciando o governo e pedindo socorro. Também estão se mexendo.

Assim, apesar de o cenário ser bastante sombrio, nas entranhas da vida real, sem que o facebook anuncie, vai se gestando esse caldo que é resistência e que, com o andar da carruagem, pode se tornar um ataque. A história nos mostra que mesmo na mais terrível noite, quando tudo parece perdido, os trabalhadores se levantam e lutam.

Uma fagulha, apenas uma fagulha, pode desatar um incêndio.


Elaine Tavares é jornalista e colaboradora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC.

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