“Tarifa zero no transporte também diz respeito à reforma tributária e distribuição de renda”
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- Gabriel Brito, da Redação
- 22/01/2020
Mais uma vez São Paulo, entre outras cidades, começa o ano com aumento das tarifas de um transporte público que consome fatia cada vez maior da renda do trabalhador médio. Uma lição que os poderes instituídos aprenderam em 2013, quando um aumento no meio do, com o cotidiano a todo vapor, potencializou a revolta popular. O Movimento pelo Passe Livre já fez três manifestações contra o reajuste, a última delas interditada por uma polícia cada vez mais munida de dispositivos legais para controlar protestos. É sobre este quadro que conversamos com Diego Soares Thiago, membro do MPL-SP.
Sobre o Decreto-Lei que institui a figura do policial mediador e exige aviso prévio sobre o trajeto a ser percorrido pelos manifestantes, Diego é taxativo: “é sempre ameaçador, são meios de intimidação. O Estado procura ferramentas de repressão, vivemos numa cidade que é um ‘barril de pólvora’ e eles temem um sublevação da população. O policial mediador é só mais um disfarce, uma resposta pra ‘inglês ver’. Mas mesmo com esta figura o Estado Democrático de Direito não é respeitado, aliás, muitas vezes nem o próprio protocolo da Polícia Militar é respeitado”.
Além de lidar com um poder público francamente reacionário em relação a movimentos autônomos e de fato antissistêmicos, o MPL precisa responder as campanhas difamatórias de uma esquerda que se viu deslocada das comodidades do poder de 2013 pra cá, potencializadas pelas recentes declarações de Lula. Como em outros anos, Diego oferece explicações práticas sobre as razões de existir do movimento e sua pauta.
“O aumento do salário mínimo foi baixo, o trabalho informal tem crescido, pesquisas apontam que os mais pobres gastam cada vez mais com o transporte. A carga tributária é uma das mais altas do mundo pra quem recebe até cinco salários mínimos (...) A luta pela tarifa zero, contra o aumento e contra o corte de linhas de ônibus (que é outra maneira de aumentar os lucros) é também uma discussão sobre reforma tributária e distribuição de renda”.
A entrevista completa com Diego Soares Thiago pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, o que comenta da série de atos convocados pelo Movimento Passe Livre contra mais um aumento da tarifa, como foram em sua dinâmica e participação popular?
Diego Soares Thiago: Em São Paulo, historicamente, sempre houve revolta contra o aumento da tarifa do transporte. O MPL-SP foi fundado em 2005 e, desde então, tenta organizar e fortalecer parte dessa revolta. Esse ano, já fizemos três manifestações centrais e faremos a quarta (dia 23, às 17h no Terminal Parque Dom Pedro II). Em todas elas, temos colocado nossa posição de que uma tarifa de R$4,40 é um absurdo, incompatível com a realidade da maioria da população, e por isso pressionamos para que as catracas do metrô fossem liberadas ao final dos atos, para que todos pudessem ir embora.
Infelizmente, a resposta do governo e do metrô tem sido reprimir manifestantes, jornalistas e pessoas que estão no entorno para proteger as catracas a todo custo. Também participamos da manifestação que moradores do Grajaú organizaram no bairro. No entanto, organizar manifestações em janeiro envolve a dificuldade de mobilização em um momento de férias escolares e de competição com as férias da classe média.
Além disso, a parte mais precarizada da população, que mais sofre com a tarifa, muitas vezes não tem dinheiro ou tempo pra ir aos atos. E devemos lembrar que a repressão e a criminalização das manifestações têm o objetivo de assustar e afastar muitas pessoas. Ainda assim, acreditamos que é fundamental não desistir de ocupar as ruas e construir a luta por um transporte público de verdade, pois somente com a organização desde baixo podemos conquistar nossos direitos. Isso vale tanto para o direito de manifestação quanto para o direito ao transporte.
Correio da Cidadania: Mais especificamente sobre o terceiro, o que tem a dizer a respeito da dificuldade em fazer a manifestações?
Diego Soares Thiago: A brutalidade com que a polícia agiu na terceira manifestação contra o aumento mostra que há um medo, da parte dos governantes, de que a luta por transporte cresça e ganhe adesão. A Polícia Militar é o braço armado do Estado e é preciso responsabilizar João Doria e Bruno Covas pela tentativa de impedir a mobilização e o debate público sobre transporte.
Desde o bloqueio à saída da manifestação na sua concentração (o qual conseguimos furar), era evidente que a polícia tinha ordens para dificultar o prosseguimento do ato. Quando chegamos à Praça da República, depois de driblar cordões policiais por duas vezes, a ação da PM escalou em sua violência. Adolescentes puxadas pelo pescoço com mata-leões, bombas de gás, tiros de bala de borracha, manifestantes arrastadas pelos cabelos, detenções arbitrárias. Fizeram de tudo para gerar um clima de terror.
Correio da Cidadania: Sobre essa postura ditatorial do Estado que você aponta, como se sente em participar de atos sob a luz do Decreto-Lei nº 64.074/2019, que entre outras coisas exige que a Polícia Militar saiba dos trajetos com antecedência, tendo poder de decisão sobre eles, e institui a figura do policial mediador?
Diego Soares Thiago: É sempre ameaçador, são meios de intimidação. O Estado procura ferramentas de repressão, vivemos numa cidade que é um "barril de pólvora" e eles temem um sublevação da população. O policial mediador é só mais um disfarce, uma resposta pra "inglês ver". Mas mesmo com esta figura o Estado Democrático de Direito não é respeitado, aliás, muitas vezes nem o próprio protocolo da Polícia Militar é respeitado.
Correio da Cidadania: O que pensa das alegações de prefeitura e governo contra os atos?
Diego Soares Thiago: Não existe diálogo com Doria e Covas. Enquanto o prefeito afirma (em uma entrevista ao jornal El País) que não se importa com a popularidade de suas ações e que aumentou a tarifa porque acha certo, o governador defende a atuação violenta da polícia e tenta desqualificar as manifestações como "vandalismo". A posição que eles assumem é evidentemente contrária aos interesses da população que depende do transporte coletivo no dia a dia. Eles atuam pra garantir o lucro dos empresários.
Correio da Cidadania: E o que comenta de mais esse aumento em si? Como você enxerga o atual contexto do transporte coletivo em São Paulo?
Diego Soares Thiago: O novo aumento demonstra o total descaso com a população. O aumento do salário mínimo foi baixo, o desemprego e o trabalho informal têm crescido e pesquisas apontam que os mais pobres gastam cada vez mais com o transporte. E são os mais pobres que sofrem mais com cada aumento. Quem recebe um salário mínimo já gasta um terço de sua renda com o transporte; significa que muita gente deixa de comer ou comprar produtos de necessidade básica para pagar a passagem.
Além disso, a carga tributária do Brasil é uma das mais altas do mundo pra quem recebe até 5 salários mínimos. Enquanto isso, os milionários vivem numa espécie de paraíso fiscal. Veículos de luxo como iates, helicópteros e jatinhos não pagam IPVA. A luta pela Tarifa Zero, contra o aumento e contra o corte de linhas de ônibus (que é outra maneira de aumentar os lucros) é também uma discussão sobre reforma tributária e distribuição de renda.
Correio da Cidadania: O que pensa da narrativa da esquerda hegemônica e do lulismo em relação ao movimento? Como recebeu as declarações de Lula sobre junho de 2013?
Diego Soares Thiago: O discurso propagado por Lula e por parte da esquerda institucional está muito longe da realidade, distante das ruas. Ignora a própria base, que estava desde o primeiro ato nas ruas em junho de 2013. A Tarifa Zero no transporte público já foi uma bandeira do PT, na gestão da Erundina, quando Lúcio Gregori era secretário do transporte. Foi proposto um projeto de lei nesse sentido.
Dizer que as manifestações de junho foram organizadas pela CIA para derrubar o governo petista é surreal e demonstra que o PT opta por se distanciar das reais demandas do povo e de tudo aquilo que não consegue controlar. Ignora a concretude da pauta que mobilizou milhões, ignora o peso da tarifa dos transportes na vida da população e restringe o debate político às disputas pelo poder.
Enquanto movimento social autônomo, não propomos uma atuação em tal sentido; acreditamos na organização desde baixo, na luta para que toda a população possa se deslocar livremente e com qualidade pela cidade onde vive e faz funcionar cotidianamente. A onda de manifestação em junho de 2013 foi uma oportunidade para o PT aprofundar reformas, mas faltou ousadia e vontade política. O partido preferiu reforçar as conciliações com os empresários.
Correio da Cidadania: O que o distanciamento das esquerdas em relação a esta pauta, que sem dúvida alguma incide no bolso de uma população cujo padrão de vida volta a ser claudicante, revela de modo mais geral?
Diego Soares Thiago: Esse distanciamento apenas deixa mais explícito o que já sabemos: na esquerda institucional, muito frequentemente os debates e pautas ligados às necessidades da população são menos importantes do que a disputa pelo poder de Estado. Enquanto as lutas podem ser usadas a favor da construção do partido, há tentativas de se utilizar e se apropriar delas, mas quando elas fogem do controle ou ameaçam a "governabilidade" de gestões ditas de esquerda, são criminalizadas ou invalidadas como algo "da direita".
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Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.