Lei contra o assédio nos estádios: “aposta na educação como ferramenta para superar cenários violentos e hostis às mulheres”
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- Gabriel Brito, da Redação
- 09/03/2020
O estado do Rio de Janeiro aprovou a lei 8.743, que visa à criação da Campanha Permanente Contra o Assédio e a Violência Sexual em estádios de futebol. Tradicional reduto masculino, tais ambientes vêm há anos observando uma maior frequência feminina, além de a própria modalidade ter avançado bastante no país entre as mulheres. Para comentar o tema, o Correio entrevistou a deputada estadual Dani Monteiro (PSOL), autora do projeto.
“Na prática, a implementação da lei ocorrerá por meio de uma atuação conjunta entre o Estado com as administrações dos estádios, por meio da divulgação de campanhas que expliquem sobre o combate à violência e ao assédio, e orientações sobre os canais de denúncia caso ocorram violações. Também é prevista uma formação dos agentes nos estádios para que essas ações e atitudes sejam coibidas também por meio de uma fiscalização mais sensível e atenta”, explicou.
Dani Monteiro comentou que, apesar de mais mulheres frequentarem os estádios atualmente, a lei é reflexo de uma quantidade ainda grande de denúncias, algo inevitável diante do contexto geral de violência de gênero que marca as relações sociais brasileiras. No entanto, destaca o lado positivo das mobilizações antimachistas.
“A opressão de gênero é algo que está enraizado na própria sociedade e avança junto com ela. Ainda temos muito a avançar em legislação para a proteção (da mulher) em outros espaços públicos também. Historicamente, já sabemos que as conquistas não vêm facilmente. Mas vêm”.
A entrevista completa pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, o que comenta da aprovação da lei 8.743, que cria a Campanha Permanente Contra o Assédio e a Violência Sexual nos estádios do Rio de Janeiro?
Dani Monteiro: Os estádios de futebol, culturalmente ocupados por homens, guardam em suas dinâmicas práticas que vão, silenciosamente, às vezes nem tanto, afastando as mulheres desses espaços. Atuar por meio de educação em direitos e coibir a partir da informação o assédio e a violência contra a mulher é assumir e compreender a nossa responsabilidade para atacar a violência contra a mulher. A ideia é que nós sejamos de fato acolhidas, que tenhamos informações claras sobre como agir diante de um caso de violência e que sejamos empoderadas.
Nesse sentido, no que a lei propõe, a pedagogia tem enorme valor. As campanhas existirão para promover a conscientização do público e dos profissionais que atuam nos estádios. É uma aposta na educação como ferramenta essencial para superarmos esses cenários violentos e hostis às mulheres. Já queríamos torcer. Com a lei, esperamos ter tranquilidade para circularmos, seja na arquibancada, seja nos corredores e banheiros, ou nos arredores dos estádios.
Correio da Cidadania: Como ela será posta em prática e quais as consequências para quem infringi-la?
Dani Monteiro: Na prática, a implementação da lei ocorrerá por meio de uma atuação conjunta entre o Estado com as administrações dos estádios, por meio da divulgação de campanhas que expliquem sobre o combate à violência e ao assédio, e orientações sobre os canais de denúncia caso ocorram violações. Também é prevista uma formação dos agentes nos estádios para que essas ações e atitudes sejam coibidas também por meio de uma fiscalização mais sensível e atenta.
Não há previsão expressa sobre a punição caso ocorra descumprimento, mas trata-se de uma lei de aplicação obrigatória, não autorizativa, que faculta ao governo a sua aplicação. Em caso de descumprimento de preceito legal é possível responsabilizar o Estado judicialmente e, sobretudo, nós confiamos em mecanismos de fiscalização existentes, como a Comissão do Cumpra-se, que é uma comissão temporária presidida pelo deputado Carlos Minc, que verifica a execução de leis em vigor e realiza recomendações em caso de descumprimento.
Por fim, neste caso, é importante sinalizar a intenção do governador na sua execução, tendo, em vista a sanção sem vetos. É sinal de que o mesmo vê importância na legislação.
Correio da Cidadania: Nos últimos anos vimos um aumente exponencial da presença feminina nos estádios, o que aparentemente significava que estes vêm se tornando ambiente menos machistas. Dessa forma, o que levou a deputada Dani Monteiro a criar o projeto? Ainda chegavam muitas denúncias e queixas a respeito de assédio e violência sexual?
Dani Monteiro: Sim, as denúncias chegavam, mas de modo difuso. Fomos acompanhando os movimentos de algumas torcidas de mulheres dos grandes clubes e percebemos uma demanda reprimida. Contamos com a ajuda e o suporte de torcedoras de Flamengo, Vasco, Botafogo e Fluminense. Mas também ouvimos torcedoras de times menores, o que demonstra o interesse feminino pelo esporte e a disposição para a torcida.
Ouvimos muitos relatos de e sobre mulheres que já deixaram de ir ao estádio por conta do medo de estarem sozinhas naquele espaço, por serem vistas como meros 'adereços', na maioria das vezes, em vez de serem respeitadas como torcedoras legítimas. Foi a partir das queixas e ponderações delas que chegamos à elaboração do projeto.
Correio da Cidadania: Existem outras leis semelhantes para outros ambientes públicos no Rio ou ainda há um certo vazio jurídico na proteção às mulheres nesse sentido?
Dani Monteiro: As leis que atuam em um sentido preventivo da violência contra a mulher ainda são poucas, mas acreditamos que não se deve mudar tais comportamentos apenas por meio de alguma sanção após o crime, mas, sobretudo, também através de medidas que sensibilizem todos sobre a gravidade dessas violações.
Não é de hoje que as mulheres se organizam para frequentar estádios de futebol, mais precisamente. Pouco se fala sobre o tema, mas as mulheres marcaram presença no surgimento das primeiras torcidas organizadas do país, por volta dos anos 1940. E não eram apenas membros. A Torcida Organizada do Vasco (TOV), por exemplo, foi criada em 1944 por mulheres, unidas com o propósito de incentivar o time durante as partidas de futebol. É evidente que o problema não está no estádio ou no esporte em si.
A opressão de gênero é algo que está enraizado na própria sociedade e avança junto com ela. Ainda temos muito a avançar em legislação para a proteção em outros espaços também. Historicamente, já sabemos que as conquistas não vêm facilmente. Mas vêm.
Correio da Cidadania: Como coloca a aprovação deste projeto em meio a um momento de avanço do discurso conservador e frequentemente machista no Brasil?
Dani Monteiro: As práticas de assédio e violação do corpo das mulheres em espaços como os estádios são reflexos de uma sociedade que não pode discutir gênero nas escolas, que não conscientiza a população como forma de atacar um problema que é estrutural e acumula dados alarmantes de violência contras as mulheres.
Curiosamente, e para nossa sorte, apesar de vivermos uma época sombria, há resistência, a luta não cessa. Esse projeto só virou uma realidade porque as mulheres vêm fazendo barulho nas arquibancadas e também fora delas. A lei é, sem dúvida, uma grande vitória para todas nós e para a sociedade. Precisamos, sobretudo em tempos como esse, ampliar direitos.
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.