Antifa: contra o quê e ao lado de quem lutar
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- Facção Fictícia
- 05/06/2020
O tema do Antifascismo vem tomando conta dos debates políticos, seja por meio da educação e da difusão de mensagens e ações, ou das ameaças de criminalização e repressão. No início do ano, antifascistas em Porto Alegre interromperam um protesto bolsonarista em 17 de maio; depois, torcedores de diferentes times de futebol se juntaram para ocupar as ruas em São Paulo e frustrar protestos de apoiadores do presidente. Ambos inspiraram ações em mais de 15 cidades, como em Belo Horizonte, onde atos estão sendo organizados semanalmente para bloquear, atrasar e impedir carreatas dos que gostam de “protestos a favor” de populistas de direita.
Ao fim de maio, a onda de protestos combativos em centenas de cidades nos Estados Unidos, após o assassinato de George Floyd, repercutiu no mundo as lutas antirracistas e antifascistas. Como efeito, Bolsonaro e políticos da sua laia, pretendem imitar Donald Trump e fazer o que podem para tornar ações e grupos antifa como uma “ameaça terrorista doméstica”. Deixando claro o que sempre dissemos: quem se incomoda e combate o antifascismo é, pela lógica, um fascista. Seu objetivo pode não ser cumprido na lei, mas podemos esperar o que sempre aconteceu na história: vai atiçar os ânimos de suas bases dispostas a praticar atos de violência nas ruas contra minorias e todos que denunciam o fascismo, com a conivência da polícia.
Por isso, o momento é de se organizar e nos educar sobre a questão. Assim, o coletivo Facção Fictícia convidou Mark Bray, autor do livro Manual Antifa (2019), para uma entrevista exclusiva sobre alguns temas relevantes e polêmicos como: relação entre movimentos antifa e black bloc, anarquismo, esquerda institucional e até os ditos policiais “antifascistas” – fenômeno até então exclusivo no Brasil e que surpreende até mesmo militantes e pesquisadores com vasta experiência nas lutas antifascistas contra todas as formas de regimes e autoritarismos.
Boa leitura! Nos vemos nas ruas.
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Como você define o que chama, em seu livro, de antifa moderna e como ela contribui para o cenário de protestos atuais contra o racismo e a polícia nos EUA?
Mark Bray: Em resumo, eu diria que a política ou um grupo da antifa moderna seria uma oposição militante, socialista revolucionária, orientada para a ação direta, à extrema direita que rejeita recorrer à polícia ou ao Estado para detê-los e que geralmente tem uma espécie de noção de esquerda antifascista amplamente radical (pan-radical), embora nem sempre. Como você sabe, Trump culpou antifas e anarquistas pela destruição nos recentes protestos. Embora antifas tenham, provavelmente, estado em algumas manifestações, não há evidências de sua participação nelas. Com certeza, simplesmente não há antifas suficiente nos EUA para causar tal destruição. Eu gostaria que houvesse tantos, mas não existem. Certamente, porém, antifas apoiam o Black Lives Matter e pode haver algumas pessoas que participam dos dois tipos de organização.
Quais a relações entre antifa, tática black bloc e as lutas anarquistas e anticapitalistas contemporâneas desde a emergência do movimento antiglobalização?
Mark Bray: Na maior parte, os black blocs foram usados nos Estados Unidos a partir de 1999 para protestar em cúpulas econômicas (OMC em Seattle, especialmente), protestando contra as guerras, contra as convenções políticas nacionais etc. A associação entre antifa e black blocs nos EUA realmente começou com o J20 (protestos radicais que atacaram a cerimônia de posse de Trump em 2016), quando muitos anarquistas, antifa e outros antiautoritários foram presos e acusados de crimes cujas sentenças poderiam chegar a décadas na prisão. Felizmente eles foram absolvidos. Também ocorreram eventos como os black blocs interrompendo e acabando com um discurso do provocador de extrema-direita Milo Yiannopoulos em Berkeley, em 2017, e outros confrontos em Portland e em outros lugares.
Curitiba, 1 de junho de 2020
Desde os levantes em 2013 e 2014 no Brasil, percebemos um grande esforço das autoridades em criminalizar táticas, como os black blocs, como se estas fossem organizações formais ou criminosas, terroristas. Vemos agora essa tentativa com os antifas. Para isso, usam discursos que atacam e deslegitimam movimentos combativos, alegando que quem pratica ações ditas ‘violentas’ (dano à propriedade, revide à violência policial) em manifestação são ‘minorias’ ou ‘infiltrados’ para justificar o isolamento de setores radicais e a repressão estatal. Como você vê, historicamente, a resposta dos movimentos antifascistas e antirracistas a tais acusações e disputas de narrativas – que muitas vezes emergem dos próprios setores da esquerda?
Mark Bray: Bem, algumas das primeiras movimentações antifas na Alemanha da década de 1980 surgiram dos movimentos autônomos, que rejeitaram basear suas políticas na aprovação da opinião pública.
Portanto, nesse sentido, nem todos os antifas se importaram tanto com isso da mesma forma que outros. Mas é claro que essas disputas têm o potencial de separar os movimentos. Nas minhas entrevistas com antifascistas europeus, parece que cada movimento teve, em diferentes momentos, maior ou menor colaboração com grupos de esquerda como sindicatos etc.
Tê-los como aliados pode ajudar, mas é uma aliança que pode ser inconstante. A noção de “diversidade de táticas”, que surgiu há 20 anos ou mais durante a era do movimento de justiça global (ou antiglobalização), foi um esforço para coexistir e contornar esses problemas. Claro que não é uma receita de bolo, depende de cada caso.
Enfim, é muito difícil desfazer a dicotomia ‘bom manifestante’, ‘mau manifestante’, como fazem as imprensas e alguns grupos de esquerda.
No Brasil, nos deparamos com um fenômeno curioso, no qual policiais civis e militares se consideram “antifascistas” e se organizam enquanto movimento para se infiltrar e influenciar lutas sociais e pautas da esquerda. Em sua pesquisa, já deparou com exemplos semelhantes em outros países? Qual a sua opinião sobre a participação de policiais, militares ou outros agentes das forças de segurança estatais ou privadas em movimentos e manifestações de política radical?
Mark Bray: Isso me lembra a Europa do pós-guerra, onde todos (exceto Espanha e Portugal) estavam oficialmente do lado dos vencedores da Segunda Guerra Mundial, quando a interpretação sobre o antifascismo era simplesmente estar do lado vitorioso da guerra.
Nesse contexto, houve debates tensos sobre o que significava antifascismo, especialmente porque, em países como a Alemanha ou a Itália, os “comitês antifa” socialistas revolucionários que surgiram durante a guerra, foram fechados pelos novos governos dos Aliados, de regime liberal-democrático. Os movimentos revolucionários que surgiram nas décadas seguintes, incluindo os que deram origem à antifa moderna, desafiaram a interpretação oficial do antifascismo, apontando que ainda havia muitos fascistas na sociedade e argumentando que o capitalismo oferece espaço para o fascismo. Os argumentos desses grupos antifas no pós-Segunda Guerra dão conta de que o antifascismo deve ser anticapitalista.
Se nós, como anticapitalistas revolucionários, permitirmos o antifascismo cair no menor denominador comum de ser literalmente “todos aqueles que se opõem ao fascismo”, perderemos essa interpretação socialista, no seu sentido mais amplo, que faz do antifascismo uma oposição enraizada na política hoje e não apenas o fato de qual lado da Segunda Guerra você estava. Portanto, para deixar bem claro: polícia antifa é uma baita de uma besteira.
As táticas antifa se mostraram a forma mais radical de resistência ao governo Trump nos EUA ao governo Bolsonaro no Brasil, trazendo uma herança de práticas radicais e anticapitalistas. Como você vê adesão da esquerda institucional, dentro dos palácios e gabinetes, aos símbolos e discursos antifa?
Mark Bray: Bem, eu acho que a criação de um movimento e um sentimento antifascista mais amplo na sociedade é importante. Idealmente, não haveria necessidade de grupos antifa específicos, porque as comunidades expulsariam os fascistas por conta própria. Como as origens do antifascismo militante podem ser encontradas na oposição a grupos fascistas e nazistas de pequeno e médio porte, faz sentido que a resistência deva ser mais ampla e maior para lidar com regimes inteiros ou grandes partidos políticos. Debato esse desafio analisando entrevistas com antifascistas que enfrentam esse impasse em um capítulo do “Manual Antifa”. Mas trabalhar em conjunto ou forjar uma coalizão não significa abandonar sua política.
Esse é sempre um equilíbrio complicado: como trabalhar com aliados que não compartilham toda a sua política sem, no final das contas, realizar a agenda deles e não a sua? De uma perspectiva antiautoritária, podemos ver o que os stalinistas fizeram com os anarquistas espanhóis durante a Guerra Civil Espanhola. Este é um precedente importante a ter em mente, mas se somos fracos demais para derrotar nossos inimigos por conta própria, não podemos simplesmente concordar em ser mártires.
Certamente, devemos criticar a cooptação institucional dos símbolos antifa, especialmente quando usados para se opor a valores centrais, como barrar a extrema direita sem recorrer à polícia ou aos tribunais (o que, obviamente, implica uma postura abolicionista penal). Talvez, em algum momento, os progressistas e moderados possam se tornar mais radicais no processo? Pelo menos nos EUA, parece que, nos últimos anos, muitos liberais, progressistas e socialistas democráticos ficaram muito mais à vontade com os socos na cara dos nazistas e, com certeza, há algo de bom nisso.
Facção Fictícia é um coletivo que produz informação anarquista e antifascista. Conheça o site: https://faccaoficticia.noblogs.org/