Respeitem o povo originário dessa terra
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- Coluna Imbaú, por Dayana Molina
- 16/02/2021
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
As lutas não são propriedades privadas. Os territórios, tampouco o são. Os mundos colonizados estão frequentemente divididos a partir de imposições de processos territoriais que mapeiam influências de poder. Vide o Tratado de Tordesilhas, um documento assinado em junho de 1494, na vila espanhola de mesmo nome. Os protagonistas colonizadores foram Portugal e Espanha, que delimitaram, através de uma linha imaginária, as posses portuguesas e espanholas no território da América do Sul, chamado de “Novo Continente”. O objetivo era acabar com as disputas de território desde que o novo continente havia sido invadido, dois anos antes. Essa é uma prática altamente violenta e colonial. A chegada desses senhores mudou completamente o marco da história para os povos nativos de Abya Yala, ou seja, da América Latina.
Sem o senso de coletividade, nenhuma luta se fortalecerá. Antes de falar de Nordeste ou Sudeste, precisamos falar de Pindorama. Não adianta sermos territorialistas ao ponto de esquecer que todo Brasil é território indígena. Nossos povos nativos são constantemente esquecidos de tais pautas. Essa prática é eurocêntrica e opressora. Independentemente de repartições geográficas, fomos explorados, saqueados, marginalizados, estereotipados e colocados à margem. Essa inversão de valores resultou na desigualdade social que se arrasta até os dias atuais. Vocês ainda lembram dessa parte da história? Nesse sentido, vale bater no peito pelo orgulho nordestino se nos invisibilizam enquanto nação indígena?
Falamos muito de colonialidades e contemporaneidades. Mas equivocadamente muitos cometem um erro estrutural. Se queremos construir uma sociedade mais igualitária socialmente, é necessário fazer desta premissa uma bandeira prioritária na luta antirracista. Respeitem e promovam o povo originário dessa terra com a mesma força que o fazem por outros corpos racializados. Nossos antepassados continuam gritando por justiça social. Muitos deles através dos filhos e filhas, netos e netas que o sistema da morte não exterminou. Para uma sustentabilidade sistêmica, precisamos nos comprometer e promover a diversidade. Fomentar culturas e racialidades é uma resolução ética e anticolonial.
Frantz Fanon, em Os condenados da terra, escreve: “O mundo colonial é um mundo compartimentado. Sem dúvida que é inútil, no plano da descrição, recordar a existência de cidades indígenas e cidades europeias, de escolas para indígenas e escolas para europeus, assim como não adianta nada recordar o apartheid na África do Sul. Não obstante, se penetrarmos na intimidade dessa separação em compartimentos, poderemos pelo menos pôr em evidência algumas das linhas de força que ela comporta. Esta visão do mundo colonial, da sua distribuição, da sua disposição geográfica, permite-nos delimitar os ângulos a partir dos quais se reorganizará a sociedade descolonizada”.
Parece contraditório, por exemplo, citar apenas talentos negros no Nordeste. Como se houvesse apenas talentos negros nessa região. Precisamos estar atentos às armadilhas que nos dividem. Pessoas racializadas não eram consideradas humanas para o colono. Também consideramos injusta a compreensão limitada de que esses irmãos e irmãs foram o povo mais sofrido do Brasil. Essa reflexão não é sobre onde doeu mais. É imensurável a crueldade sobre nossas existências. Mas é importante considerar que o sangue dos corpos indígenas já estava sendo derramado quando o Nordeste nem existia e a comunidade de raiz africana não havia chegado aqui. Desde a invasão dos colonizadores, estamos morrendo de forma silenciosa, historicamente. Todos nós! Se não estivermos juntos em um movimento interracial, a diáspora se torna uma manutenção dos processos de violência contra a existência de outros povos. Acredito que esse não é o caminho. Só seremos verdadeiramente livres quando entendermos a força de nossas lutas em unidade.
Ailton Krenak, ativista e filósofo indígena, cita em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo, uma reflexão pertinente: “A ecologia dos saberes deveria também integrar nossa experiência cotidiana, inspirar nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver, nossa experiência como comunidade. Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania”.
Vale relembrar um fato muito necessário: não éramos pobres e nem miseráveis. Os povos indígenas do Brasil tinham abundância em seus solos, águas límpidas, frutos e alimentos provenientes de seus ambientes nativos. A miserabilidade começa a existir em nossa existência quando deixamos de ter autonomia sobre nossos corpos e territórios. Os modos de vidas eram violados na medida em que os colonizadores adentravam em nossas terras e nos exploravam de muitas formas. Portanto, devemos ter a liberdade ir e vir. Não de forma imposta, mas pela decisão da livre escolha no sentido humano.
A exploração capitalista começou a massacrar os nossos corpos, violentar mulheres indígenas, escravizar a força nativa e transformar estruturalmente nosso bem viver. Antes que qualquer outro povo fosse massacrado aqui, nós já estávamos sofrendo com a violência física, emocional e espiritual. Se não pelo controle, pela exploração sexual, física, fome, pobreza e miséria, pelas mãos desonestas e violentas dos invasores.
Os livros não contam, mas os nossos corpos eram mortos ou expulsos. Existiam poucas possibilidades de sobrevivência. Fugir do Nordeste ou de qualquer outra parte do Brasil se tornou um acontecimento cada vez mais recorrente para a nossa gente originária. Fugir muitas vezes significava resistir. Muitas das vezes, de forma isolada. Nem sempre a concepção de resistência significa permanecer. Resistir é preservar a cultura independentemente de onde a gente esteja. Nesse sentido, essa não é, e nem será uma discussão em torno de algumas raças, se não de todas que de fato sofreram (e sofrem) com esses processos de extermínio.
Promover, celebrar e valorizar nossa gente originária: onde estão as referências intelectuais, críticas e que refletem os saberes indígenas?
Nossas narrativas e perspectivas são estratégias que encontramos no combate ao apagamento e genocídio de nossos corpos. O sábio Ely Macuxi dizia “Mergulho para sentir a areia fria no fundo do rio. Se eu não realizar uma caminhada na floresta, não consigo encontrar o equilíbrio. Para nós indígenas, fé, crença e espiritualidade é tudo. E está em todos lugares”.
Precisamos pensar para além dessas questões regionais. Até porque, essa terra que pisamos hoje, sempre foi e será originalmente indígena. Independentemente dos motivos que nos jogavam para fora de nossas terras, precisamos lembrar que antes de qualquer divisão geográfica inventada por homens brancos o Brasil e toda América Latina é Abya Yala. Uma terra fértil de muitas gentes, muitos povos e muitas etnias. O que mudou foram as nomenclaturas desse trauma colonial.
A terra das palmeiras, é uma terra cheia de nativos diversos, povos que resistem há cinco séculos de mazelas e colonização. Minhas raízes vêm do sertão pernambucano. Cresci com as bênçãos das mãos de minha avó benzedeira. Um conhecimento matriarcal que passou de geração em geração na minha família. A sabedoria das avós nordestinas nasce da cultura indígena. É importante colocarmos esses saberes ancestrais em seu devido lugar. Se ainda hoje eles resistem, é porque aprendemos a honrar esse conhecimento e preservá-lo de forma consciente.
Sair das nossas regiões nunca nos impediu de ser árvores enraizadas na natureza, fazer nossas rezas, fogueiras, artes, rituais e curas. Muitos de nossos ancestrais partiram, mas nós somos as raízes que resistem e continuam vivas. Graças a esse ciclo do ensinamento através da oralidade, não nos perdemos daquilo que nos mantém fortes. Um pouco por teimosia, um pouco por rebeldia. Abram os caminhos, que nós estamos passando com nossa resistência, orgulho étnico e cultural. Queremos de volta todas as coisas que nos roubaram, inclusive o direito do bem viver, as propriedades e a liberdade de falarmos por nós mesmos sem interlocutores.
Hoje me sinto responsável por cooperar com o desmonte dessa sociedade excludente. Para que as próximas gerações vivam melhor que nossos antepassados. É muito doído crescer em um Brasil desigual como cresceram os meus ancestrais. Um rio de sangue em cada narrativa de sobrevivência a esse massacre chamado colonização. É extremamente desconfortável falar da identidade sem citar tantas dores e violências cometidas nesse chão.
Um país originalmente indígena que precisa constantemente ser lembrado desse fato. Entendam, não são apenas pessoas negras que se cansam de explicar alguns acontecimentos. Nós também cansamos. E está mais que na hora de olharmos para a verdadeira origem desse Brasil e ter senso de responsabilidade.
Como assim responsabilidade? A manutenção do sistema atual continua longe da nossa influência e sabedoria ancestral. Somos sustentáveis e protegemos o meio ambiente.
Mas onde estão as referências indígenas nesse sentido? Podemos citar criativos indígenas em muitos segmentos. Mas é chegada a hora que vocês precisam nos ler e descolonizar suas mentalidades.
Precisamos sim enaltecer e dar espaços que foram negados aos nossos. A nossa luta é uma necessidade para manter de pé as florestas e a chama ancestral. Ainda que muitas vezes essas memórias atravessem nossos corações de muitas formas, resistimos. Enquanto houver vida, vou lutando por terras demarcadas, representatividade em todos os espaços, reparações históricas, sociais, econômicas e culturais em todos os níveis. Faço parte dessa geração de indígenas futuristas; acredito que para haver mudanças, precisamos falar do passado, conquistar o presente e garantir melhorias para o futuro. Estamos conectados ao mundo contemporâneo sim, mas nunca longe de nossas tradições, cosmovisão e costumes.
Temos muito o que desconstruir. Essa visão estereotipada do que somos e como vivemos está mudando. Isso se deve ao fato de hoje fazermos e falarmos o que faz sentido para nós e não o que acreditam que faça sentido por nós. Ou seja, estamos construindo uma nova perspectiva do que queremos. Se a imposição acabou para um povo, ela ainda está muito latente para outros. É urgente desbravar novos caminhos em lugares que sempre nos pertenceram. Pela autonomia dos povos, é importante a garantia de direitos originários.
O capitalismo move o mundo. Mas a diversidade move estruturas para um mundo real e humanizado
São tantos os nossos ativismos; lutamos pela terra, demarcações, preservação da cultura, territórios, proteção à natureza, direito de existir, moradia e tantos outros elementos essenciais. Em meio a tantas lutas, também desejamos melhores condições de vida, mais oportunidades nos espaços que estamos inseridos e empoderamento econômico. A moda ainda promove muita desigualdade social. Basta olharmos para a indústria têxtil. Constantemente nos deparamos com comportamentos exploratórios. Especialmente nos ambientes de confecções e produções de roupas em larga escala. Há grande número de mulheres negras e indígenas (em grande maioria imigrantes nigerianas e bolivianas) buscando melhorias de vida. Se a moda é uma força para o bem, também vale nos envolvermos na emancipação dessas pessoas que sofrem com trabalho análogo à escravidão, mão de obra desumana, inapropriada ou insalubre.
Reflitam que há pessoas que acreditam que só existem indígenas “de verdade” na Amazônia, especificamente no Amazonas. E desconsideram o fato de nossa diversidade étnica e cultural. Somos mais de 305 povos indígenas no Brasil, falando centenas de diferentes línguas e uma população maior do que o censo consegue contabilizar, com aproximadamente 1 milhão de indígenas brasileiros. Para além dos povos indígenas do Brasil, precisamos lembrar dos indígenas de diversos povos da América Latina que estão em busca de oportunidades longe de suas terras originárias. Se desejamos enaltecer a humanidade mais que os bens de consumo, devemos valorizar e respeitar toda a diversidade que aqui existe. Ou cometeremos com outras pessoas racializadas os mesmos erros que cometeram contra nossa origem.
Não queremos falsas homenagens, nem apropriações que contenham nossas histórias. Esse lugar de protagonismo é o que nos interessa. Queremos ser autores de nossas próprias histórias. A resistência dos corpos e pensamentos indígenas deve adentrar em muitos espaços e ascender. A cada dia, um de nós irá se levantar e retomar o que nos foi negado por 521 anos. Essa força vai se tornar uma onda intensa de norte a sul desse país.
Concluo com o pensamento de Fanon em Os condenados da terra: “Adverte-se, pois, que o mundo tem consciência dessa violência e que não se trata de responder sempre com uma maior violência, mas, sim, de resolver a crise”. Precisamos falar de proporcionalidades. Sabemos que isso ainda é inexistente. Se fizermos o constante exercício da inserção de pessoas racializadas, é um começo significativo. Sobretudo, fazer da luta antirracista, uma militância plural, sem o token e o antirracismo seletivo que temos visto nos muitos espaços “descontruídos” ou “democráticos” que nos “acolhem”.
Dito isto, precisamos falar de mudanças permanentes, para além dos calendários. Seguimos desconstruindo, estudando, descolonizando e em constantes movimentações pela vida.
O artigo foi escrito por Dayana Molina, estilista e ativista indígena, e publicado originalmente na Carta Capital em 7 de fevereiro de 2021. Sua inclusão nesta coluna foi autorizada pela autora.
A Coluna Imbaú é um novo espaço aberto no Correio da Cidadania junto de organizações e indivíduos indígenas de 13 etnias diferentes, com a finalidade de divulgar as produções e o pensamento dos povos originários brasileiros e suas pautas.