Correio da Cidadania

O martírio do professor guerreiro

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“O coração do povo Tembé-Tenetehara sangra com o brutal assassinato do nosso jovem guerreiro Isac Tembé. A bala que lhe tirou a vida, com apenas 24 anos, atingiu a todos que desde tempos imemoriais habitamos essa terra e fazemos a permanente defesa da floresta e de nossos saberes tradicionais”. (I Nota Pública do Povo Tembé-Theneteraha).

O encantamento do espírito guerreiro do jovem mestre Isac Tembé foi um ritual doloroso para o povo Tembé-Tenetehara, pois grande era a dificuldade de lidar com sua partida repentina. Um ritual marcado pela dor e o clamor da voz indignada: “Nunca o povo Tembé chorou tanto a morte de um parente como tem chorado a execução de Isac. A alegria de nosso povo de viver que se refletia em nossas danças e rituais sagrados foi tirada junto da vida de nosso menino sonhador”. Não há como estancar do peito a sangria desatada, de uma história que se repete como tragédia e como farsa. Ferida colonial aberta como página dilacerada pela espada e pela bala, onde agora se escreve mais um capítulo da trajetória de resistência indígena ao genocídio, contra o silêncio e apagamento de sua memória histórica.

Histórico de lutas e resistência

O povo Tenetehara pertence à grande família Tupi da América do Sul, sendo a língua Tenetehara pertencente à família linguística Tupi-Guarani. Há cerca de 400 anos, em 1653, teriam feito os primeiros contatos com os invasores europeus na região do Rio Pindaré, capitania do Maranhão. Ao fim do século 18, os Jesuítas entregaram o controle do Pindaré às autoridades civis e o território Tenetehara foi dividido em "Diretorias", onde se fundaram "Colônias" que favoreciam a invasão de terras. Isto nunca foi aceito pelo povo.

Por volta de 1850, vários grupos Tenetehara migraram do Pindaré e Caru (MA), para o rio Capim, Gurupi e rio Guamá, no estado do Pará, onde se estabeleceram com a denominação "Tembé" e os Tenetehara que ficaram no Maranhão, receberam a denominação Guajajara (mas tanto os Tembé quanto os Guajajara chamam a si mesmos como Tenetehara). Nesse período, foram explorados economicamente pelos Regatões em sua cultura e atividade no plantio e extração de óleo de copaíba e foram se deslocando pelo Rio Gurupi, trabalhando no contato com os Ka'apor.

Desde os primeiros contatos, foram alvos de perseguições, abusos e explorações “em consequência da política indigenista civilizatória e de ações do Governo que visava a Integração Nacional da Amazônia" (Kahwage; Marinho 2011). O sistema colonialista obrigava a venderem seus produtos à metrópole a baixo custo e eram obrigados a comprar produtos acima do valor. O contato com os brancos trouxe diversas doenças, principalmente sarampo. Estudos apontam que na primeira metade do século 20 a população foi reduzida em níveis impressionantes.

A TIARG (Terra Indígena Alto Rio Guamá), foi criada pelo decreto nº 307 de 21 de março de 1945, ainda como “reserva indígena”, no governo do interventor federal paraense, o General Joaquim Magalhães Barata e fez parte do contexto de estratégias políticas de Getúlio Vargas, para tentar encobrir o genocídio indígena no centro-sul do Brasil. Desde o início, ficou evidente que a intenção do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) era transformar a Reserva em uma colônia agrícola, integrando a população indígena aos outros moradores da região.

Nos anos de 1970, durante a Ditadura Militar, quando o SPI se transformou em FUNAI, os Tembé foram levados de suas famílias no Gurupi para área de construção da Rodovia Transamazônica, onde forçados a facilitar o contato com grupos Asuruni do Xingu, com os Pakanarã e demais indígenas locais... Conta-se que foram tantos adultos levados à Transamazônica que faltou caça no Gurupi e houve fome entre crianças e anciãos.

Com aval da FUNAI, a Companhia Agropecuária do Pará invadiu 11.000 hectares da reserva e assim facilitou a ação de novos invasores da terra indígena. Ao longo do tempo, essas invasões ao norte e ao leste formaram vilas e povoados, restando apenas os limites ao sul, onde passa o Rio Gurupi. Ao norte, foi invadida por posseiros e a leste por fazendeiros como Mejer Kabacznick, que roubou mais de 9.000 hectares da reserva. Embora homologada em 1945, a demarcação de terra só começou mesmo em 1972 e se arrastou até 1976, em decorrência de inúmeros conflitos e invasões de território. Oficialmente, a demarcação final aconteceu apenas em 2010.

Quando a demarcação foi concluída, colonos já estavam morando na área, havia grandes fazendas instaladas e até mesmo estradas cortando o território... Uma estrada ligando a rodovia BR-316 ao município de Garrafão do Norte e outra com 24Km de extensão, ligando a Fazenda “Irmãos Coragem” de Mejer Kabacznick à Vila de Livramento, no município Nova Esperança do Piriá. Atualmente, o município tem 70% de seu limite dividindo a terra indígena ao meio.

A presença de invasores impactou negativamente as relações socioeconômicas e culturais, a territorialidade foi violada e a própria circulação de indígenas tornou-se difícil e perigosa. A formação de povoados, fazendas de pastos e abertura de estradas, facilitou a entrada de fazendeiros, posseiros, madeireiros, garimpeiros e até traficantes de drogas, com plantações dentro na área. Essa divisão do território prejudica a unidade cultural entre os povos e a proximidade com o município de Capitão Poço, influenciou a cultura nas Aldeias do Rio Guamá. Todas essas atividades criminosas colaboram para o desmatamento da terra indígena e continuam sendo determinante para divisão dos Tembé Tenetehara em dois grupos: de aldeias ao norte, no Gurupi, e as Aldeias do sul, no Guamá.

As florestas da TIARG embora remanescentes das florestas primárias, compõem o maior contínuo florestal do nordeste paraense, sendo o santuário de espécies vegetais ameaçadas como a maçaranduba, ipê-roxo, itaúba, cipó titica, entre outras. Grande parte da vegetação florestal formada por espécies como cajuí, sucuuba, cupiúba, paxiúba, jacareúba e seringueira, está alterada na região ou em processo de sucessão inicial. A relação indígena com a flora, além de toda sua cosmovisão com a floresta, acontece no uso dos recursos vegetais, através de conhecimento da biodiversidade, na alimentação, artesanato, medicina tradicional e em bioconstruções. A recuperação e regeneração natural da floresta leva bastante tempo e as ameaças de agentes nocivos não param de crescer vertiginosamente.

A terra indígena é alvo constante de invasões, ataques e violações de toda ordem de direitos, promovidas pela ação ostensiva de madeireiros na extração das espécies economicamente valiosas, pelos pequenos agricultores, que como posseiros desmatam a floresta para estabelecer pastagens e plantações, por garimpos ilegais cercando todo o território, pelos fazendeiros com seu modelo de pecuária, monocultura e a pulverização de agrotóxicos desfolhantes químicos sob plantações. Um modelo de desenvolvimento e modernidade, defendido e incentivado pelo Estado nacional brasileiro, que culmina na perda da cobertura florestal, território e identidade.

A base da cultura alimentar indígena está na caça e na pesca. Existem cerca de 74 espécies de peixes cientificamente identificadas na TIARG, como: surubim, acarú cabeça gorda, cará, mandi, pirandirá, traíra, tucunaré, pacu piranga etc... Outra base tradicional da cultura alimentar Tenetehara é a caça de animais silvestres. No entanto, a prática da caça tornou-se perigosa, devido à presença de constantes invasões e a proximidade de vilas e fazendas. E foi, justamente neste contexto, durante uma atividade de caça que aconteceu o assassinato do jovem Isac També.

O martírio de Isac

No crepúsculo, do dia 12 de fevereiro de 2021, o espectro da morte rondava o território na Terra Indígena Alto Rio Guamá, município de Capitão Poço (PA). Era fim de tarde e Isac Tembé havia saído para caçar com um grupo de jovens indígenas. Estavam a apenas 1 km de sua morada, a Aldeia Jacaré, portanto estava dentro da chamada zona de amortecimento (uma faixa de terra de 5Km que serve para garantir a proteção do território, garantida pela Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012). O entardecer e a noite desempenham um papel fundamental na caçada, embora se exija do indígena muito mais da observação e ótica do alvo, neste horário é que certas espécies animais estão mais à vontade para sair de suas tocas e abrigos para procurar alimento nas redondezas.

Os jovens relatam que progrediam no entorno da unidade de conservação, que fica nas proximidades do rio, quando foram surpreendidos pela luz de dois veículos, que deles desceram homens gritando, que o grupo logo se dispersou correndo para se esconder e em seguida se ouviram disparos. Os tiros ecoaram na imensidão da floresta e foram ouvidos na aldeia Jacaré, São Pedro e Frasqueira... Eram cerca de 19 horas e 15 minutos.

Segundo informações do Boletim de Ocorrência Policial Nº.00185/2021.100099-1 (registrado às 23:28:43, pelo Policial Militar Cabo Denésio de Oliveira Moura), uma guarnição da Polícia Militar do Estado do Pará foi acionada pelo filho do proprietário da fazenda Boa Vista, chamado Francisco Nédio Lopes Sales, que alegava uma queixa-crime de roubo de gado em andamento... E bastou a queixa do filho do senhor para evocar a herança serviçal, pois a sua voz de comando não faz pedidos: é uma ordem!

Em depoimento, os policiais envolvidos na operação alegaram que estavam inspecionando o pasto com auxílio de lanternas, quando supostamente teriam sido surpreendidos por disparos de armas de fogo e que para conter o ataque teriam deflagrado 9 disparos em resposta. Foram sete tiros de fuzil e dois de espingarda calibre 12. Diante de um grupo de jovens desarmados, o Cabo Denésio disparou quatro vezes de fuzil, o Soldado Dayvilson fez três disparos de fuzil e o Soldado Wellington disparou duas vezes de espingarda calibre 12.

Na dramatúrgica versão apresentada pela polícia militar, que busca sempre consolidar a legítima defesa no estrito cumprimento de dever legal como alicerce para o excludente de ilicitude, observamos um enredo antigo e notório nas periferias dos grandes centros urbanos. Segundo o registro policial: (...) “foi realizada uma varredura na área e foi constatado que um animal bovino estava sendo desossado no pasto e um dos elementos estava caído ao chão com um tiro na região do tórax e junto a ele uma arma calibre 38 deflagrado”. Ainda, segundo essa versão dos fatos, a pessoa teria sido levada para uma Unidade de Saúde, onde não resistiu ao ferimento e evoluiu a óbito.

No entanto, trata-se de uma versão repleta de inconsistências e que é totalmente refutada pelo Povo Tembé Tenetehara. Pois o guerreiro Isac Tembé foi atingido com um disparo no peito por volta de 19h15min, no entanto, o corpo de Isac teria chegado ao Hospital de Capitão Poço somente às 22h (sendo que a distância do local para a cidade não passa de 20minutos de percurso). A ocorrência foi registrada às 23h e 28min... E o que aconteceu nesse espaço de tempo entre os disparos e a entrada no hospital municipal?

Fica evidente a quebra da Instrução Normativa nº001/2013, oficializada em ato do Comando Geral da Polícia Militar do Estado do Pará que afirma que os policiais envolvidos na ocorrência deveriam primeiramente “comunicar o fato ao Centro Integrado de Operações (CIOP); providenciar o isolamento e preservação do local do fato e acionar a perícia científica; assegurar a não remoção de vítimas fatais, preservando suas vestes e acionar o atendimento médico de urgência e emergência”. Ao invés disso, modificaram a cena do crime sob o subterfúgio do socorro médico. O IPL do hospital, assinado pelo enfermeiro Romário Rodrigues Lopes COREN/PA 610-493 ENF, alega que “paciente sem identificação trazido pela Polícia Militar por volta das 22:53 da noite do dia 12/02/21, realizado o primeiro atendimento à vítima de arma de fogo, deu entrada sem pulso e sem sinais vitais”, ou seja, a demora no atendimento pode ter sido determinante para morte de Isac.

Além da contradição temporal dos registros realizados pelos agentes de segurança pública, percebe-se que o agente policial no comando da operação não cumpriu o seu dever de preservar a cena dos fatos e acionar imediatamente a polícia civil e, por conseguinte, a equipe da perícia científica. Na verdade, o trabalho da perícia técnica foi cabalmente contaminado pelo translado da vítima, possivelmente visando impossibilitar a individualização das condutas assumidas pelos agentes de segurança pública e também por Isac Tembé.

“Por que esses agentes da segurança pública servem de milícia privada para fazendeiros que invadem terra indígenas? Porque chegaram atirando contra nossos jovens, filhos, netos e sobrinhos, que caçavam, prática que faz parte da cultura de nosso povo? A Polícia Militar assassinou duas vezes Isac Tembé: mataram seu corpo e tentam matar sua memória quando atacam a índole de nosso jovem guerreiro e liderança exemplar”, essas são as palavras do povo Tenetehara em sua primeira nota pública.

E continua: “nosso território sofre diariamente invasões e ataques por parte de exploradores ilegais de madeira ou de fazendeiros que insistem em manter a ocupação de partes da Terra Indígena Alto Rio Guamá, através de cabeças de gado e de outras atividades econômicas. Há décadas lutamos contra essa violência e não vamos parar até que nenhum metro de nossa terra esteja ilegalmente ocupado. Não temos medo. A Constituição Federal protege nossos direitos e o Estado brasileiro precisa fazer cumprir o que manda a Lei maior”.

A morte de Isac está relacionada a um histórico de violações de direitos fundamentais contra povos indígenas. Além do histórico de invasões sob concordância e incentivo do Governo Federal, que favorece a presença dos invasores como exemplo de empreender na produção de bens de subsistência e geração de renda; o Estado brasileiro por tempos incrementa a força de trabalho invasora em detrimento da cultura e desprezando o modo de produção indígena, fundamentado em sua cultura e cosmovisão da vida em sociedade.

Os donos do poder, que sustentam a força de uma oligarquia decrépita, forjaram pela superestrutura uma realidade distópica, onde agentes da segurança pública servem como milícia privada aos interesses de fazendeiros. Onde a força agressiva do modelo pecuarista substitui a floresta pelo pasto, para o deleite de madeireiros, mercadores das árvores de maior valor comercial. Onde a miséria de pequenos produtores desprovidos dos meios de produção básica os torna posseiros e agentes nocivos, subservientes aos mais poderosos, formando assim um perverso mosaico social que constitui o cenário clássico para o assassinato do jovem mestre guerreiro.

A luta por justiça para Isac Tembé!

No sábado, dia 13 de fevereiro, a notícia do assassinato estava nas manchetes dos blogs e portais de notícias. A Secretaria Estadual de Segurança Pública – SEGUP, se pronunciou por meio de nota, onde delegava à Delegacia de Crimes Funcionais (Decrif) da Polícia Civil a missão de dar continuidade às diligências e que a Corregedoria da Polícia Militar havia instaurado um Inquérito Policial Militar (IPM) para apurar as circunstâncias do fato.

A Associação Indígena Tembé das Aldeias Tawari e Zawaruhu (CNPJ 13.772.794/0001-53) tornou-se a representação oficial dos parentes Tenetehara nesse caso e emitiu cinco notas públicas. São comunicados à sociedade em geral, onde exigem que Funai, MPF, Polícia Federal e todos os órgãos assumam o compromisso de suas competências, assim como a punição dos assassinos e mandantes.

O Ministério Público Federal (MPF) enviou ofícios à Polícia Militar, à Polícia Federal, à Polícia Civil e à Fundação Nacional do Índio (Funai) em que são requisitadas informações e cópias dos documentos relativos ao caso - Notícia de fato nº 1.23.006.000019/2021-89 – Procuradoria da República em Paragominas (PA).

O sepultamento do corpo de Isac foi no domingo (14), conforme os costumes tradicionais do Povo Tenetehara. Os Ritos de Passagem e Encantamento do Espírito Guerreiro do jovem mestre seguirão para que venha dançar e cantar junto ao seu povo. Segundo a cosmologia Tenetehara, de forte ligação com as estrelas, tudo parte do conhecimento da criação e estruturação do universo. Após a morte física, sua morada é Tekohaw. Agora, Isac vive na encantaria!

Na manhã do dia 15 de fevereiro, a Associação Indígena Tembé das Aldeias Tawari e Zawaruhu recebeu em seu território a Comissão da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), representada pelo advogado Marco Apolo Santana Leão, histórico defensor dos direitos humanos e que representará juridicamente a família e o povo na justiça dos valores e normativas da sociedade não-indígena.

Na terça (16), a equipe da Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa do Estado do Pará (CDHDC-ALEPA), presidida pelo deputado Carlos Bordalo (PT), que se reuniu com lideranças e realizou diligências na área do homicídio, na presença da Ouvidora do Sistema Estadual de Segurança Pública e Defesa Social (SIEDS), a advogada Maria Cristina Fonseca de Carvalho, e assessores da deputada Marinor Brito (PSOL). Uma comitiva indígena atravessou Capitão Poço em carreata, passando em frente ao Batalhão da Polícia Militar e recebeu apoio da Fundação Nacional do Índio [FUNAI] e do Conselho Indigenista Missionário [CIMI].

Passados 5 dias da execução, foi lançada a Terceira Nota Pública enumerando uma série de questionamentos: 1) Quem da polícia executou Isac? 2) Quem mandou a polícia executar Isac? 3) Onde Isac foi executado? 4) Cadê o documento de entrada e de saída do corpo de Isac da unidade de atendimento de saúde em Capitão Poço? O comunicado, termina com um ultimato “O povo Tembé tem justiça e sabe fazer justiça. A morte de nosso filho não ficará sem resposta e não cairá na impunidade reinante neste país!”.

Neste período os parentes também receberam a visita do coordenador da Comissão Pastoral da Terra no Pará (CPT); o Padre Paulo Joanil da Silva, o Padre Paulinho, que realizou ato ecumênico em memória de Isac Tembé.

O Ministério Público Federal (MPF) enfim se apresentou ao território, na Aldeia São Pedro, na segunda-feira, dia 22 fevereiro, na representação do procurador da República Milton de Souza Júnior, que realizou audiência com lideranças indígenas e familiares de Isac Tembé. Os indígenas cobram que a Justiça Federal assuma as investigações por se tratar de indígena assassinado em área de zona de amortecimento da TIARG. Em resposta, o procurador da República informou que o MPF pediu informações para a Polícia Militar, Polícia Civil e Funai. E sugeriu que a UFPA participe da elaboração de um Laudo Antropológico para identificar a região de reserva, os limites da zona de amortecimento e que o homicídio não ocorreu em terreno particular da fazenda de Nedio Lopes.

Na quinta-feira, 25 de fevereiro, a Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa do Estado do Pará (CDHDC-ALEPA), apresentou o documento intitulado “Relatório e Recomendações: Caso Isac Tembé Tenetehara”, confirmando uma série de denúncias e as afirmativas da Associação Indígena Tembé das Aldeias Tawari e Zawaruhu em defesa da memória de Isac.

O documento apresenta 13 questionamentos a serem respondidos pelo Sistema de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (SIEDS) e descreve recomendações e proposições aos Ministérios Públicos Estadual e Federal, à SEGUP e às polícias Civil e Militar, são considerações e análises com base nos fatos e depoimentos coletados junto às lideranças indígenas, familiares da vítima, autoridades policiais locais e visita ao local do homicídio. Além da associação e de familiares, estiveram presentes representantes do Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público Estadual (MPE), a Defensoria Pública do Estado do Pará (DPE), Ouvidoria do Sistema de Segurança Pública e Defesa Social (SIEDS), Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH), a Polícia Civil (PC), a Diretoria de Polícia Comunitária e Direitos Humanos (DPCDH), Polícia Militar do Pará (PM), Secretaria de Estado da Segurança Pública e da Defesa Social (SEGUP) e a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH).

O relatório recomenda aos Ministérios Públicos, “atuar para que as Polícias Civil e Federal instaurem inquéritos para apurar a morte do indígena Isac Tembé, dadas às circunstâncias obscuras de sua morte, a imprecisão do local do óbito, o desmonte da cena do crime e as pressões de natureza socioambiental na qual se insere a Reserva Indígena Alto Rio Guamá, a fim de confirmar ou afastar motivações de natureza criminosa como a extração ilegal de madeira, garimpos clandestinos e a existência de organizações criminosas atuando na área e a prática de execução contra o indígena por agentes do estado ou civis”.

Quanto à SEGUP, o documento recomenda verificar o fiel cumprimento das resoluções do CONSEP quanto a RESOLUÇÃO Nº 202/12 – CONSEP, que aprovou as Normas Procedimentais nas ocorrências que resultem letalidade ou lesão corporal envolvendo os agentes do Sistema Estadual de Segurança Pública e RESOLUÇÃO Nº 204/12 – CONSEP, que regulamentou o Uso da Força pelos Agentes de Segurança Pública do Estado do Pará. Assim como dar suporte ao Grupo De Acompanhamento da Letalidade e Mortalidade Do CONSEP - Conselho Estadual De Segurança Pública, para garantir o cumprimento de suas competências, como monitoramento e prevenção da letalidade policial. Garantir a avaliação de risco para vítimas, testemunhas e defensores de direitos humanos, a fim de avaliar a necessidade de inclusão nos programas de proteção de vítimas e testemunhas e de proteção a defensores de direitos humanos PROVITA e PPDDH. Dar ampla divulgação e transparência à funcionalidade dos relatórios de rastro das viaturas policiais militares, do corpo de bombeiros militar e da polícia civil.

Por sua vez, a Polícia Civil deve garantir a apuração adequada dos fatos, em especial quanto à ocorrência de Crimes Funcionais e abrir inquérito para esclarecer quais os policiais civis obstruíram o registro de ocorrência policial por parte dos indígenas que se dirigiram à Delegacia de Polícia de Capitão Poço na noite do dia 12 de fevereiro.

E a Polícia Militar deve garantir a apuração adequada dos fatos a partir da abertura de Inquérito, que investigue a conduta dos policiais militares e promova monitoramento e prevenção da letalidade policial, com base nas normativas vigentes. Justamente, o Estado, que assassinou o jovem por duas vezes, ao matar seu corpo e outra vez ao tentar matar sua memória, atacando a índole do jovem guerreiro e liderança exemplar.

O martírio do indígena Isac Tembé Tenetehara foi também a última lição do Professor Guerreiro.

Isac, o professor guerreiro

O jovem Isac Silva Tembé morava na Aldeia Jacaré – Terra Indígena Alto Rio Guamá (TIARG), tinha apenas 24 anos de idade e despontava como liderança do Povo Tenetehara. Era formado no curso de História e se preparava para iniciar a licenciatura, assumindo uma vaga de professor na prefeitura de Capitão Poço. Em poucas semanas, estaria lecionando nas aldeias da Terra Indígena. Isac seguia seu caminho “herdando a experiência adquirida, criando e recriando, integrando-se às condições de seu contexto, respondendo a seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo, transcendendo, lançando-se num domínio que lhe é exclusivo: o da História e o da Cultura” como diria o mestre Paulo Freire. Mas agora Isac deixa 3 filhos adotivos, esposa grávida de seis meses e o projeto de casa inacabado.

O promissor historiador era atuante na organização e protagonismo da juventude indígena. Consciente da função das práticas tradicionais para unidade cultural do povo, juntou-se a outros jovens e fundou a Associação Cultural Kamarar Wà (significa Guerreiro / Guerreira), com o objetivo de “fortalecer a cultura Tembé, debater política, formar novas lideranças e cuidar do povo”. Em carta manifesto, os jovens da associação Kamarar Wà expressam “dor, angústia, sofrimento e revolta”. Em meio à perda e o sentimento de injustiça pela atrocidade cometida, afirmam que Isac “jamais será esquecido: queremos justiça, não vamos deixar que a morte de nosso líder seja mais uma para a estatística de crimes contra lideranças indígenas sem resposta. Isac era uma jovem liderança, professor de história, futuro pai, filho exemplar, um exemplo de ser humano que só tinha amor em seu coração e planos para seu povo. Ao contrário do que a polícia diz, Isac Tembé não é um bandido, bandido são eles que executaram Isac a sangue frio. Nós do Grupo Kamarar Wà repudiamos essa versão da polícia onde Isac é taxado como criminoso”, afirma o manifesto da associação.

“Isac era um cidadão honrado, professor de história, atuante na comunidade e na organização da juventude. Sua esposa está grávida e em breve dará à luz a mais uma criança Tembé, garantia da continuidade deste povo originário. Jamais se envolveu em qualquer ato ilícito e nunca em sua vida portou ou disparou uma arma de fogo”, diz a nota da associação. O disparo que atingiu o professor Isac Tembé também feriu de morte a todos nós, que desde tempos imemoriais habitamos e resistimos na permanente defesa da floresta, dos territórios e dos saberes tradicionais.

Não é de agora que a polícia marginaliza o jovem indígena, realizando sempre os procedimentos de revista (o baculejo) da forma mais vexatória e humilhante. Num contexto de violações de direitos e abuso de poder, a abordagem policial militar, constantemente com uso da força, bastante revolta no professor. Isac era de uma índole exemplar e “sempre se portava com altivez perante a polícia tratando de demonstrar a licitude de sua conduta e a injustiça das abordagens policiais que os marginalizam”, como afirma o relatório I CDH-ALEPA.

Isac Tembé lutava pela manutenção de sua cultura, ancestralidade, uso da língua e das músicas tradicionais cantadas em Tenetehara. O jovem com muitas histórias para contar, pela oralidade ou pelo material didático, dos livros ao audiovisual.... O jovem que sonhava falar sobre o passado e da cosmovisão coletiva: do nascimento dos Tenetehara, na história dos 'gêmeos Mayra-Íra e Mucura-Íra e as onças'. E como desde a gravidez, até a fase adulta, acontecem as festas que compõem o ritual de vida, formado pela Festa das Crianças, Festa do Mingau da Moça e o Wyra‘whaw ou Festa do Moqueado. O grafismo corporal é outra expressão do povo e está presente nos rituais do dia-a-dia, na confraternização, na guerra e no luto.

O último ato do jovem professor Isac Tembé foi também uma lição de honra e coragem. Isac era professor e atuava com altivez diante das injustiças para ensinar com a ilicitude de sua conduta a legalidade do movimento de resistência. Enquanto seus algozes se aproximavam e gritavam de armas em punho, Isac preferiu não correr. Talvez, porque acreditou que teria o mínimo direito de se apresentar à guarnição e resolver a situação com diálogo. A única arma de Isac era a sua consciência indígena e fez de sua morte, uma grande lição de vida.

O espírito (karuwara) guerreiro permanece presente e estará nas festas e ritos de iniciação, cantando e se alimentando junto com os pajés. Estará com os jovens Kamarar Wà nos momentos de cura e ataque. Estará presente no cigarro de Tawari, no canto na língua materna e no som do maracá. Na cosmologia do Povo Tembé Tenetehara existe um nível astral, alcançável apenas pelos guerreiros que ajudaram os Tenetehara e que se dedicaram ao bem do grupo. No céu de Tupã e Maíra existe fartura de alimentos na floresta e peixes nos rios e os parentes ancestrais, que alcançaram esse nível devido sua atitude de bravura no mundo terreno e que podem retornar em momentos de cantos.

Na cosmovisão Tenetehera, morrer é a continuação da vida como karuwara. Embora seja um momento de lamentações e tristezas, os rituais fúnebres são ritos de passagem, que levam até 7 dias e servem para que o parente compreenda e aceite a sua nova condição e passe a voltar nos rituais e participar da festa junto às demais karuwaras.

A Kamarar Wà Tembé Tenetehar publicou carta ao senhor André Pantoja Borges, coordenador local da FUNAI, em resposta ao ofício da Polícia Civil (DCRIF): “informamos que o povo Tembé aceita receber a visita do delegado da Polícia Civil Álvaro Luiz Beltrão e sua equipe nesta segunda, 1 de março, no Polo da Saúde Indígena de Capitão Poço, às 10h, com a presença de advogado que representa a família do jovem Isac Tembé, brutalmente assassinado há 16 dias (...) “Na oportunidade, estarão presentes os indígenas que na noite de sexta (12), em que Isac foi executado, foram até a delegacia prestar ocorrência e cobrar o que de fato havia ocorrido, mas a delegacia foi fechada, impedindo que os indígenas tivessem qualquer informação”.

Testemunhamos tudo isso para contar às futuras gerações. No futuro, os livros de história irão emanar ecos de resistência. Cantaremos a memória ancestral e contaremos histórias com protagonismo de narrativa. Dizemos quem somos, para que o mesmo Estado opressor, que assassinou o jovem Isac, não venha macular o ancestral espírito guerreiro com suas distorcidas versões dos fatos. O disparo que atingiu Isac desafia o nosso peito à própria morte.

O Martírio do professor guerreiro foi sua lição de vida!


Angelo Madson Tupinambá é sociólogo e midiativista, diretor da Rádio Web Idade Mídia – Comunicação para Cidadania e liderança do Movimento Levante Tupinambá em Maery.

A Coluna Imbaú é um novo espaço aberto no Correio da Cidadania junto de organizações e indivíduos indígenas de 13 etnias diferentes, com a finalidade de divulgar as produções e o pensamento dos povos originários brasileiros e suas pautas.

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