Por que “funciona” o ataque à cracolândia em São Paulo?
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- Henrique Parra, Alana Moraes, Edson Teles e Acácio Augusto, PimentaLab
- 19/05/2022
Foto: Em 2017, durante outra operação na cracolândia, ao demolir um prédio, a prefeitura acabou derrubando a parede de uma pensão vizinha, sobre as pessoas que lá se encontravam. Cracocolândia, uma diversidade de urgências. Raphael Sanz/Correio da Cidadania
Diante da recente ação desastrosa do prefeito Ricardo Nunes e do governo Dória/Garcia na abordagem do fenômeno conhecido como “cracolândia”, constatamos rapidamente, e mais uma vez, que a brutal repressão aos usuários não é uma política eficiente para a solução do problema.
Mas experimentemos uma outra hipótese.
E se os critérios de eficiência dos poderes constituídos forem outros? E se ao invés de uma abordagem equivocada, estejamos diante de uma estratégia bem desenhada para produzir exatamente os efeitos que estamos vendo? E se essas ações forem apenas para alimentar as engrenagens econômicas e políticas de grupos que se beneficiam continuamente com a manutenção do fenômeno “cracolândia”, fazendo dela também um laboratório de teste do poder de (des)mobilização das polícias militar e metropolitana?
Se partimos dessa hipótese, talvez possamos rastrear algumas conexões entre as dinâmicas que acontecem no território. Basta a gente fazer algumas perguntas simples para que dúvidas relevantes se instalem.
Não é surpreendente que uma cidade com mais de 12 milhões de habitantes, a “cidade mais rica do Brasil”, não tenha sido capaz de lidar com uma situação que envolve uma população usuária de substâncias ilícitas (e licitas também) e em grande medida moradora de rua, em número aproximado de 2000 pessoas?
Não é estranho que o Estado (prefeito e governador) tenha mobilizado no dia 11 de maio, cerca de 650 policiais (militares, metropolitanos e civis), carros, caminhões, armamentos e helicópteros para uma megaoperação de guerra que se propõe a resolver um problema e que, ao final, tudo siga como antes, mas agora concentrado a dois quarteirões de distância na rua Helvetia, e espalhado outras micro-cenas pela cidade?
Sejamos francos, o governo convoca um exército contra um pequeno agrupamento faminto e já muito fragilizado, e depois apresenta como resultado da ação “vitoriosa” uma lista com alguns entorpecentes apreendidos, algum dinheiro, alguns homens negros presos e, na sequência dos fatos, uma pessoa assassinada? Não é incrível que alguns veículos de comunicação de grande circulação ainda reproduzam esse mesmo resultado como um grande feito e não façam perguntas simples como, quanto custa aos cofres públicos uma operação policial como essa, ou mesmo interrogar sobre possíveis conexões entre setores do Estado e polícia com as empresas que dominam o tráfico na região?
E se o que está em jogo for na realidade uma operação destinada a sempre “falhar”? Afinal, não é estranho que após tantas investidas, massacres, violências e deslocamentos forçados a cracolândia ainda persista? Sigamos rastreando aquela hipótese inicial.
A cracolândia é uma peça importante nos processos de transformação urbana do centro da cidade e nas dinâmicas de especulação e financeirização da terra. Nessa região da cidade, a questão fundiária mostra-se complexa para a dinâmica do mercado imobiliário: muitos imóveis de pequenos proprietários, espólios não regularizados, casarões antigos e habitações coletivas sob regimes heterogêneos de propriedade e que abrigam pessoas que residem e trabalham na região há muitos anos.
A cada ciclo de aproximadamente 5 anos, a cracolândia é deslocada para um novo endereço. Normalmente, ela se instala em alguma área que já acumula algum nível de violação de direitos pelo Estado. Ao se instalar, rapidamente o Estado deixa de fazer o pouco que fazia e a região se deteriora rapidamente. Começa a se produzir uma imagem e discurso de uma zona de exceção. Os pequenos proprietários são forçados a vender seus imóveis a baixo preço para as incorporadoras ou então são sumariamente desapropriados e despejados pelo Estado quando a imagem de zona de exceção está suficientemente consolidada na opinião pública, de maneira que qualquer ação naquela região é considerada uma ação legítima de saneamento público contra a “chaga social”.
Reparem no histórico de movimentação da localização da cracolândia, desde início dos anos 2000 e a sobreponham ao mapa das áreas que foram transformadas. Grandes projetos de equipamentos culturais e conjuntos residenciais; Parceria Público Privado com vultuosas transferências de recursos públicos para a iniciativa privada e programas de endividamento para a população compradora. Mais recentemente, um importante hospital público para a região também fruto de uma PPP.
Alguém se lembra do que aconteceu com todas as famílias e residências das pessoas que moravam ali antes da área “virar” a cracolândia?
A cracolândia é mais um exemplo do consórcio entre a economia do medo, o mercado de segurança, financeirização da cidade e a milicianização da sociedade. Poucos dias antes da operação, chamou a atenção o fato de que em alguns pontos do bairro começaram a aparecer seguranças privados, com guarda-sol de empresas do setor. Será que alguns atores da região já tinham informações do plano que estava por vir, e assim garantiram que durante a operação não sobrassem problemas embaixo de suas janelas? Passada a operação, o sentimento e a vivência de insegurança se espalham, e a própria polícia (que também faz “bico” como segurança privada) passa a recomendar e mediar a contratação de serviços privados de segurança.
O custo e o investimento em uma operação policial como a realizada na Praça Princesa Isabel são bem calculados. A primeira vista, criticamos a falta de eficiência no resultado. Novamente, o cálculo é outro.
Não há desperdício na economia política da força policial. Há sempre um excesso operando que gera efeitos psicossociais na produção da ordem e na criação do inimigo. Uma vez estabelecido o consenso político e midiático sobre as cracolândias enquanto zonas de exceção, os gastos e o “combate” são legitimados. Se impõe um regime de visibilidade no qual os usuários aparecem como desprovidos da plena humanidade, animalizados, incivilizados e passíveis de serem criminalizados e, no limite, executados. Ademais, as operações rendem frutos na economia do marketing eleitoral, alimentam a indústria de notícias e buscam reforçar a justificativa para ampliação dos investimentos públicos na área de segurança. Como explicar que, historicamente, o aumento sem fim nos gastos com a polícia não se reverta na melhoria da segurança pública? Novamente, o critério de medida é outro. Nossa polícia não foi criada para promover segurança pública e bem-estar social. Ela está historicamente estruturada para militarizar a vida social e fazer o controle da população.
Na chamada “guerra às drogas” na cracolândia também funciona para uma certa engrenagem. O crack é a substância apresentada como a droga de pessoas mais vulneráveis, pobres e em sua maioria negras, embora ele seja consumido, como toda substância, por pessoas de todas as classes sociais. A construção do usuário do crack define toda uma geografia biopolítica: quem pode usar drogas; o que é dependência; que drogas são lícitas; quais drogas transformam seus usuários em sujeitos abjetos; quem pode vender; quem pode comprar e como pode ser o comércio.
Assim, a criação da figura limite da cracolândia permite, por um lado, autorizar o consumo e o comércio de outras drogas ilícitas por atores bem estruturados e inseridos na estrutura de poder; por outro, garante o funcionamento do sistema de encarceramento em massa e o genocídio da população negra. A criminalização do consumo de certas drogas funciona como dispositivo seletivo para o encarceramento, quase sempre sem o devido processo legal, e para a política de morte das populações-alvo (jovens negros em sua maioria).
O Brasil já é o país com a quarta maior população carcerária do mundo, sendo que cerca de 40% dela sem julgamento! O país é também o segundo maior consumidor de cocaína (em várias formas) do mundo, atrás apenas dos EUA. A combinação entre criminalização das drogas, encarceramento em massa, corrosão de direitos e infraestruturas coletivas, confluindo para o genocídio da população negra, é outro arranjo sociopolítico profundo de nossa democracia autoritária, racista e colonial. Uma curiosidade espacial: não é estranho que frequentemente a cracolândia se forme muito próxima de uma delegacia de polícia?
Em se tratando de uma população que sobrevive da rua, e por isso sua preferência pela região central da cidade, a questão da moradia também se impõe. Com tantos apartamentos e prédios vazios, com tantas unidades desocupadas, como explicar que haja tanta gente sem teto? Parece uma pergunta infantil, mas as perguntas das crianças são as melhores para revelar aos adultos o funcionamento absurdo do nosso mundo. Na região do Campos Elíseos e Luz, além de edifícios vazios, há inúmeros galpões e terrenos subutilizados que servem apenas à especulação imobiliária. Segundo a política urbana inscrita no plano diretor da cidade já deveriam ter sido expropriados e convertidos em habitação social. Mas é mais interessante para os poderosos utilizar a cracolândia como vetor de degradação de áreas estrategicamente selecionadas para entregá-las como ativos do mercado imobiliário.
Estamos diante de um consórcio amplo e complexo, mas com um olhar um pouco mais atento, percebe-se que não há poder paralelo. É uma fina trama entre instituições públicas e grupos privados, entre o legal e o ilegal, entre setores da polícia, do Estado, das grandes corporações e do crime organizando.
Talvez a cracolândia seja também a permanente fabricação desse “outro” da nossa civilização (que, aliás, já vive na catástrofe). Esse “outro” insubordinado, vagabundo, abjeto e que não se submete à disciplina do trabalho, da assistência e à vida sacrificial ordinária, um outro racializado e desumanizado que deve ser continuamente conjurado, punido exemplarmente e massacrado para manter tudo como está. A ampla oferta de imagens e discursos nos oferecem cotidianamente doses de sedação e impotência, mas também o gozo perverso diante do sofrimento alheio.
Talvez devêssemos nos perguntar quem são afinal os “zumbis” dessa história; os que não se adaptam à ordem, os que vagam e que resistem ou os que existem sujeitando-se todos os dias?
O artigo foi retirado do Outras Palavras.
Henrique Parra é cientista social e professor na UNIFESP, Alana Moraes é antropóloga e pós-doutoranda na UFRJ, Edson Teles é filósofo e professor da UNIFESP, e Acácio Augusto é cientista político e professor na UNIFESP.
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