Acampamento Terra Livre x Acumulação Primitiva do capitalismo
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- Givanildo Manoel
- 01/05/2024
O vigésimo encontro do Acampamento Terra Livre (ATL) acabou sem grandes saldos para o movimento indígena, alardeiam os grandes jornalões. Difícil discordar dessa constatação, porém, os jornalões não aprofundam o porquê da falta de avanço. Preferem ficar na superficialidade, na constatação fácil e trivial: responsabilizar o Governo Lula. Dessa forma, vemos a grande mídia trabalhando em seu “habitat natural”: desgastar esse governo, em suas claras fragilidades com seus compromissos históricos.
De qualquer maneira, de uma coisa nós sempre soubemos: a grande mídia trabalha com a possibilidade de construir um candidato totalmente refratário à efetivação dos direitos dos povos indígenas. Foi assim no apoio dessa mesma mídia a Jair Bolsonaro em 2018, que levou ao governo mais anti-indigena que já houve. Portanto, nessa sanha, fica fácil fazer a crítica descomprometida e comprometida com o atraso.
Para entender quais os nossos desafios, irei exemplificar como os interesses dos povos indígenas sempre esbarram na lógica que nos impôs o colono-capitalismo, a que esse governo também é submetido, impedindo as possibilidades de avanço e ao mesmo tempo, quando lhes interessa, avançando sobre as conquistas dos povos indígenas e de outros grupos sociais, como temos assistido por parte do Congresso Nacional e do Poder Judiciário.
Sabemos que a criação de um Ministério para tratar dos assuntos dos povos indígenas não foi só “qualquer coisa”, Contudo, a fragilidade em garantir direitos vem se mostrando de forma clara. Um claro exemplo é a promessa não cumprida de demarcar 14 territórios em 100 dias de governo. Ao invés disso, foram demarcados 10 territórios em mais de 480 dias, e isso com muito custo. O que fazer com as mais de 200 terras indígenas esperando para ser demarcadas e homologadas? Se o processo continuar nesse ritmo, não chegaremos ao fim dos 4 anos de governo a 2 dezenas de territórios demarcados e homologados. Portanto, sim, sabemos muito bem que o governo está em falta.
A Realpolitik atropela direitos e a razão, muitas vezes porque sua lógica é de contemplar interesses de grupos com maior poder. Dessa forma, interfere na dinâmica do Estado em detrimento de interesses coletivos, lógica imposta pelo sistema capitalista, a classe que o opera, a burguesia, tem uma infinidade de possibilidades de exercer sua pressão, muitas vezes apenas apertando pequenos e insignificantes teclas, o que nos deixa com a impressão de que somos protagonistas das decisões políticas, enquanto na realidade parecemos mais como reféns de promessas.
Penso que o desafio número 1 aos povos indígenas, e não só aos povos indígenas, mas a todo movimento que deseja ter algum tipo de avanço em seus direitos, é tentar compreender o capitalismo em todas as suas dimensões e as mudanças em sua dinâmica de reprodução.
A primeira tarefa é entender que o processo de reprodução do capitalismo tem como base a Acumulação Primitiva-Originária permanente, cuja expansão foi destrutiva ao longo da história para os povos indígenas e outros grupos que estivessem fora da lógica de sua reprodução. A violência de todas as ordens, a espoliação, o saque e a desumanização sempre foram características do colono-capitalismo, que, sabemos, continuam presentes no cotidiano dos povos. Não é à toa que muitos povos desenvolveram doenças de guerra.
A existência dos territórios indígenas ou formas de relação não-capitalista que existem para não atender as demandas do próprio sistema colono-capitalista aplicarão sua própria lógica. O grande exemplo e mais visível é o território Yanomami, que foi demarcado e homologado em 1991 e hoje se encontra sob forte ataque. Não precisamos ir muito longe para descobrir quem são os beneficiários dessa espoliação. Algumas bem conhecidas e outras nem tanto: H. Stern, Gold Joias, a DU Gold, Naza Joias, Itaituba Metais, Dillon, a Carol, a FD’Gold e a Coluna. Essas são as que temos conhecimento, mas não podemos nos esquecer que existem outros tantos beneficiários que compraram ouro do estado de Roraima em 2019 de forma indireta, através da Índia, sem nenhuma autorização para operação de minas, muito menos de minas de ouro.
Além desse processo destrutivo visível, ainda tem o processo destrutivo subjetivo, que esse mundo dos homens da mercadoria cria, tornando todos nós em mercadoria sem que percebamos; que nos faz desejar objetos, porque sem eles não nos sentimos pertencentes, vivos, já que o bombardeio segundo a segundo diz que para ser temos que ter, ou seja, sem a mercadoria somos nada.
Essa lógica já alterou a nossa dinâmica e dinâmica dos diversos povos pelo planeta. Aliás, não só alterou como destrói. Como temos percebido no nosso cotidiano, a urgência climática é o grande alerta!
Essa é a conjuntura e o avanço da extrema direita, que tem na exploração da terra, os seus mais ardorosos quadros, nos colocando como seus principais inimigos, junto com os quilombolas, MST e grupos que se organizam a partir da terra, que impôs derrotas na organização dos Ministérios dos Povos Indígenas e Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que colocam os Ministérios em uma condição quase simbólica e com poder real aquém dos desafios dessa quadra histórica.
Esses retrocessos se encontram principalmente no âmbito do legislativo, que tornou o governo refém, que permite só uma acanhada pauta econômica, e avança contra as pautas dos direitos, principalmente nos dos indígenas, com acusações etnocidas de que os indígenas são “falsos índios”, propondo inclusive projetos de lei nesse sentido, a exemplo do projeto de lei do marco temporal aprovado.
O campo do direito é um caminho que deve ser feito, mas como o direito faz parte da dinâmica do capitalismo, ele existe para realizar os interesses de quem detém o poder econômico, como temos visto, o que apresenta enorme limitação para avançar nesse campo.
Não podemos esquecer que o debate e defesa do Marco Temporal tem início no campo do direito, que legitima questionamentos sobre as identidades indígenas.
Quais são os nossos desafios, diante de todo esse retrocesso?
- Solicitar ao IBGE a desagregação dos dados da distribuição dos indígenas em todo território, para saber onde estamos e, dessa forma, podemos planejar as nossas ações;
- Fazer uma profunda reflexão sobre o que significou o processo de apagamento, entender seus processos e reivindicar o direito à história e à memória, principalmente daquelas e daqueles que estão impedidas/impedidos de acessá-las;
- Promover campanha de abertura de arquivos das igrejas gratuitamente para que a história de grupos sejam restauradas, bem como fazer campanha de repatriação de objetos e documentos dos diversos países pelo mundo para que tenhamos acesso pleno a nossa história;
- Fazer campanha pela Comissão de direito à memória-história e verdade permanente dos povos indígenas;
- Defender ampla revisão histórica da presença os povos indígenas, no pensamento em todas as áreas e em todo processo histórico;
- Acumular conhecimento sobre a escravização indígena em todo período colonial, império e república;
- Defender que o estado português, além dos reparos da invasão territorial, defendido pelo presidente de Portugal, ocorram sobre as diversas violências, mortes, estupros, escravização, entre outras violências, dos povos indígenas;
- Construir espaços de formação política para as lideranças e fomentar novas lideranças;
- Promover amplos encontros para pensar a política do conjunto do movimento indígena;
- As entidades indígenas devem se fazer presentes nas diversas lutas dos outros setores. Isto é, para que a luta indígena tenha força, precisa transversalizar e ser solidário com outras lutas, seja a luta por condições de vida de uma comunidade ou por melhores condições de salário de qualquer setor dos trabalhadores e trabalhadoras, não perdendo de vista que uma das principais lutas é a luta pela terra e defesa da natureza;
- Fazer um esforço de capilarização do debate sobre a importância da luta indígena do ponto de vista da preservação da vida, porém, é fundamental que sejam colocadas questões importantes, como a história de luta dos povos indígenas;
- Incorporar as entidades, grupos e coletivos de indígenas que estão no contexto urbanizado, nas dinâmicas da luta indígena, o que amplia o poder de mobilização em e com os setores urbanos dos movimentos;
- Refletir e acumular sobre estado pluriétnico;
- Escolher partidos que tenham em seu programa e em suas práticas a defesa dos direitos dos povos indígenas e participar ativamente dos processos eleitorais, apoiando candidaturas indígenas onde tiver lideranças que assumam esse papel, ou candidaturas de apoiadores, quando não tiver candidaturas indígenas;
- Defender os direitos humanos da natureza.
Essas são algumas reflexões de caminhos possíveis para o fortalecimento da luta indígena, sabendo que a nossa existência e forma de vida é contraditória com o colono-capitalismo. Portanto, toda e todo indígena é anticolonialista e anticapitalista, exatamente pela própria lógica que o coloca assim, e pelo fim de modelos de existências que não sejam compatíveis com a lógica predatória e exploradora dos seres humanos e da natureza.
Talvez os povos indígenas e as e os indígenas sejam o setor mais importante nesse momento da história da humanidade. O futuro não é ancestral por uma ingenuidade de síntese, mas porque a humanidade precisa urgentemente repactuar a sua relação com a natureza para pensar em sua própria existência.
Tal necessidade nos coloca na centralidade dessas reflexões e ações para tentar reverter a “Queda do céu”.
Givanildo Manoel indígena fulniô em contexto urbano. Educador popular e um dos produtores da coluna Imbaú no Correio da Cidadania. Organizador dos livros Tribunal Popular – O Estado brasileiro no banco dos réus e Desmilitarização da polícia e da política.
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