Correio da Cidadania

‘O atual modelo esportivo brasileiro está esgotado’

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A chama da Paralimpíada se apagou no Maracanã e o Brasil encerra o ciclo de megaeventos que marcou os últimos 10 anos do calendário esportivo. Para fazer um balanço a respeito das oportunidades aproveitadas e desperdiçadas, entrevistamos o jornalista José Cruz, especialista nos esportes ditos olímpicos, isto é, todos aqueles que integram o programa dos Jogos, exceto o futebol, e ainda hoje ocupam menos da metade de seu espaço em nossas mentes e corações. Em sua síntese, os resultados não estiveram à altura dos investimentos.

 

“Os dirigentes fortalecem o discurso sobre o ‘futuro do esporte’ e se haverá mais verbas para o ciclo rumo a Tóquio. Este descompasso no discurso, como a desviar o assunto, tira o foco das irregularidades na aplicação das verbas públicas, de tal forma que a Polícia Federal e o Ministério Público do Rio de Janeiro já estão em campo promovendo uma rigorosa investigação. É preciso deixar claro que o alto rendimento tornou-se, há bom tempo, um grande negócio, espetáculo, business. E o governo federal decidiu investir nesse ‘negócio’ bilionário, onde muitos ganham às custas de verba pública que deveria estar indo na direção do ‘desporto escolar’”, criticou.

 

Na conversa, José Cruz, que manteve uma coluna poliesportiva no Portal Uol durante seis anos e cobriu diversos eventos esportivos, ilustrou a má gestão dos recursos através dos péssimos desempenhos na natação e atletismo, as duas modalidades que mais preenchem o quadro de medalhas. Ademais, lembra da responsabilidade do Estado brasileiro, cujos vícios fisiológicos também vitimaram a área. Apesar de tudo, Cruz também vislumbra uma grande capacidade esportiva no país e no uso das ótimas instalações construídas para os Jogos.

 

“O potencial é enorme. Mas nos falta, prioritariamente, uma política de esporte que defina competências da União, dos estados e dos municípios. Além disso, há uma ‘bateção’ de cabeças de tais entes políticos com os esportivos (comitês, confederações, federações, clubes etc.). Temos uma “desordem institucional” muito clara e não temos uma liderança que assuma o debate para colocar ordem na casa do esporte. Ao contrário, a disputa político-partidária se sobrepõe aos interesses da estrutura ordenada no esporte, o que há muito tempo se almeja”, analisou.

 

A entrevista completa com José Cruz pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: Qual balanço você faz do desempenho do Brasil nos Jogos Olímpicos e sua posição final no quadro de medalhas?

 

José Cruz: O Brasil teve duas classificações nos Jogos: uma oficial, do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), e outra da imprensa. O COB inovou ao computar o “total” de medalhas. Nesse critério, ficamos em 12º lugar. Já a imprensa manteve a tradição, que vem desde 1952, nos Jogos de Helsinque, e valorizou o peso das medalhas – ouro, prata e bronze, colocando o Brasil em 13º lugar na classificação final. Em ambas não atingimos o décimo lugar, meta fixada pela III Conferência Nacional do Esporte e aceita pelo COB e governo federal. Com 19 medalhas no total, evoluímos apenas duas posições, comparativamente aos Jogos de Londres. Ou seja, em quatro anos crescemos só duas medalhas.

 

Neste enfoque, é muito pouco, uma miséria. Principalmente se considerarmos os valores investidos pelo governo federal. Mas esta não é a única forma de apreciar o crescimento ou não do país-esportivo, o que deve ser motivo de análise e bons debates. O certo é que perdemos medalhas que o COB considerava certas, como no atletismo e na natação, principalmente. Porém, tais perdas foram compensadas por outras modalidades que chegaram ao pódio, como o tiro, a canoagem e o boxe.

 

A questão é: como explicar o fracasso da natação, com apenas uma medalha (maratona aquática), considerando que a CBDA recebeu mais de R$ 80 milhões dos cofres públicos para preparar a equipe das cinco modalidades – natação, saltos ornamentais, nado sincronizado, maratona aquática e polo aquático? Quem explica o naufrágio de César Cielo, que teve verbas públicas à vontade e quatro anos desperdiçados, sem que ninguém cobrasse dele um comprometimento que justificasse a grana pública que recebeu? E o atletismo, também com uma medalha, com evidente involução comparativamente aos anos em que não se tinha a fartura de verbas de agora?

 

Portanto, no balanço geral e pelo critério de “conquistas de medalhas” mostramos um despreparo maior do que uma preparação adequada. Nossa “evolução” foi inexpressiva. Por isso, é preciso questionar as autoridades sobre a gestão das verbas liberadas. Mas o governo tem estrutura ou disposição para isso? Observem que, enquanto se silencia neste aspecto, os dirigentes fortalecem o discurso sobre o “futuro do esporte” e se haverá mais verbas para o ciclo rumo a Tóquio. Este descompasso no discurso, como a desviar o assunto, tira o foco das irregularidades na aplicação das verbas públicas, de tal forma que a Polícia Federal e o Ministério Público do Rio de Janeiro já estão em campo promovendo uma rigorosa investigação.

 

É preciso deixar claro que o alto rendimento tornou-se, há bom tempo, um grande negócio, espetáculo, business. E o governo federal decidiu investir nesse “negócio” bilionário, onde muitos ganham às custas de verba pública que deveria estar indo na direção do “desporto escolar”, como determina a Constituição Federal, a fim de contribuir na formação física e intelectual dos jovens, prioritariamente. Mas essa é outra discussão.

 

Correio da Cidadania: Como avalia a preparação brasileira nos sete anos que antecederam os jogos e o papel desempenhado pelo COB? E o que pode ser feito daqui em diante?


José Cruz: Precisamos, logo e antes de tudo, de uma grande avaliação sobre a estrutura do nosso esporte. O modelo atual se esgotou e já está muito claro que as federações são instituições inexpressivas no sistema, desde há muito dominado pelo COB. Ganhamos um Ministério do Esporte em 2003, mas as sucessivas trocas de ministros (foram seis em 13 anos, sendo quatro – reparem bem, quatro! – nos últimos dois anos) impedem a formulação de uma política de esportes. Não temos nem o “sistema”, pois o governo não enviou a proposta para o Congresso Nacional.

 

Assim, o governo entra com verbas (públicas) num negócio privado, das confederações, que não têm estrutura adequada. O resultado da parceria é a corrupção, como já se provou várias vezes. O Ministério não tem estrutura para fiscalizar o dinheiro que libera nem para analisar as prestações de contas, que se acumulam. Há corrupção até na Bolsa Atleta, paga para quem já não compete mais. Tenistas que já ganharam mais de 500 mil dólares só este ano recebem a Bolsa, além de patrocínio milionário dos Correios! O Tribunal de Contas da União já alertou, em relatório recente, que a gestão no Ministério do Esporte não é confiável e a deficiência de gente capacitada na sua estrutura é propícia para que ali se desenvolva a corrupção. Esta é a realidade do esporte num país em que o governo tomou-o como “questão de Estado”, mas sem oferecer estrutura para tal. Ao contrário, sem estrutura podem se justificar os desvios de verbas e formação de quadrilhas, como já identificou a Polícia Federal do Rio de Janeiro.

 

Mas quem vai mexer neste modelo viciado, se os próprios cartolas não se afastam de seus comandos há décadas? Se o ministro é um ente político de uma instituição reconhecidamente corrupta? Foi nesse panorama que a delegação brasileira se preparou, com verbas da Lei Piva, da Lei de Incentivo ao Esporte, das Forças Armadas, das estatais (Banco do Brasil, Caixa, Petrobras, Infraero, Eletrobras, BNDES, Correios etc.), fartos convênios do Ministério do Esporte, enfim. E o resultado dessa fartura está nas migalhas de pódios e fracasso de “talentos” considerados potenciais medalhistas.

 

Quem responde por este resultado? O Ministério, dono do dinheiro? O COB, que centraliza a estrutura do esporte olímpico? As confederações, que administraram as verbas e coordenaram a preparação das equipes no ciclo olímpico? O próprio atleta, beneficiário direto de milhões de reais de verbas públicas, boa parte indo diretamente para o seu bolso, sem intermediário?

 

Correio da Cidadania: Vimos uma boa quantidade de novas e modernas instalações esportivas. Qual o potencial que elas têm e como podem se colocar a serviço do esporte e da sociedade brasileiros?

 

José Cruz: O potencial é enorme. Mas nos falta, prioritariamente, uma política de esporte que defina competências da União, dos estados e dos municípios. Além disso, há uma ‘bateção’ de cabeças de tais entes políticos com os esportivos (comitês, confederações, federações, clubes etc.). Temos uma “desordem institucional” muito clara e não temos uma liderança que assuma o debate para colocar ordem na casa do esporte. Ao contrário, a disputa político-partidária se sobrepõe aos interesses da estrutura ordenada no esporte, o que há muito tempo se almeja.

 

Para se ter uma ideia, temos uma “Confederação Brasileira de Desporto Escolar”, a histórica CBDE. No entanto, quem organiza os Jogos Escolares, agora “Olimpíada Escolar”, é o COB, cujo compromisso é o de preparar as delegações aos eventos internacionais. Dá para entender a confusão onde estamos metidos? Os ministérios do Esporte, da Educação e da Saúde não dialogam em busca de um programa de interesse integrado da comunidade escolar. Não conversam porque os ministros são temporários e não conhecem sobre o assunto.

 

Além disso, seus interesses partidários são maiores do que as questões do esporte na escola. Um esporte que não se destinaria a formar atletas, mas a ter a prática como matéria complementar aos assuntos pedagógicos e que contribuísse para a formação do caráter dos jovens. Coisas elementares, mas muito difíceis de, no mínimo, tentar se discutir por aqui.

 

Correio da Cidadania: Acredita na ideia do legado, dentro e fora das quadras, pistas e piscinas? Acredita que aumentamos nossa cultura esportiva após o Rio-2016 ou perdemos a chance de fomentar o esporte em maior escala?

 

José Cruz: Não há dúvidas de que os Jogos mexeram com a população do Rio de Janeiro e boa parte do país. As manifestações das crianças e jovens, principalmente, mostraram que houve um despertar para a prática esportiva e isso é muito importante. Os bons exemplos ficaram, independentemente de pódio. Mas como preencher estes espaços apagada a chama da Paralimpíada? Quem ali será o atleta? O futuro atleta? O desporto escolar? A comunidade? O aspirante ao salto com vara? Quem preparou a ocupação das instalações? Quem vai usar a arena do tênis? Quem comandará cada uma desses valiosos espaços?

 

As instalações de Deodoro deverão ser bem utilizadas, pois estão sob o comando das Forças Armadas. Deve-se considerar, também, que a prefeitura do Rio de Janeiro estará sob novo comando a partir de janeiro. A ocupação dessas instalações será preocupação do futuro prefeito? Ou o destino desses espaços será o mesmo no pós-Jogos Pan-Americanos? Para comandar o legado e outras atribuições o governo federal criou a Autoridade Pública Olímpica, que se revelou um reduto político-partidário e, por isso, ineficiente. Não cumpriu a sua principal missão, que era a de congregar os três entes institucionais que organizaram os Jogos: o município, o estado e a União.

 

Assim, diante da história e dos exemplos que temos, sou cético quanto ao real aproveitamento das instalações, principalmente porque alguém terá que se responsabilizar pela “manutenção” e “conservação” das arenas, com um custo significativo no orçamento público. E quem fará isso num momento de crise na economia pública?

 

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Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

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