A direita espreita “nossas” marchas ou as maiorias entraram em movimento?
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- Eduardo d’Albergaria
- 19/06/2013
Depois de passar a noite boquiaberto ao ver uma multidão de jovens ocupar o teto do Congresso nacional, chego em casa e a única coisa que as pessoas comentam nas redes sociais são as manifestações massivas que se alastraram por todo o país.
Dos meus amigos "comuns", alguns de presença bastante “inusitada” nesse tipo de “evento social” (atos políticos), leio a alegria de terem participado ou visto as manifestações.
E em muitos amigos militantes li comentários assustados com algumas palavras de ordem e posturas conservadoras que viram na marcha. Teria a direita “cooptado” as “nossas” marchas?!
Eu também fiquei desconfortável com algumas palavras de ordem que ouvi. No meio da multidão que se aglomerava na chapelaria do Congresso ontem, vi uma senhorinha de megafone na mão gritar “Dilma é terrorista” e, em seguida, puxar a palavra de ordem "Dilma roubou, matou e torturou", chamada que logo foi seguida por cinco rapazes que estavam em volta dela – e reproduziam tudo o que ela puxava pelo megafone. Eu não aguentei... Fui até ela e disparei exaltado: “você tá louca? Vai puxar ‘Bolsonaro presidente’, também? Se tem alguma coisa que a Dilma fez de bom na vida foi lutar contra a ditadura. Você é a favor da ditadura?". E ela respondeu "eu não". E continuou a puxar outras palavras de ordem sorrindo para mim, com cara de surpresa por um doido (no caso eu) se exaltar pelo que ela falou.
Já tinha presenciado outros gritos “estranhos” na manifestação de sábado em frente ao Estádio Mané Garrincha. Muitas vezes o clássico "polícia é para ladrão" (que desconhece o que é criminalização da pobreza e genocídio da população negra).
E vira e mexe o cu "aparecia": "ei, FIFA, vai tomar no cu", "ei, Globo, vai tomar no cu". E todas as vezes em que alguém do PSTU surgia com uma bandeira: “PSTU, vai tomar no cu”.
É verdade que a referência ao sexo anal, uma proibição moral cristã dos últimos séculos, pode ser considerada uma visão conservadora. Mas os alvos demonstram que aquela massa, na maioria das vezes, entendia quem eram os “inimigos”: a FIFA, uma empresa que submete países inteiros aos seus interesses, ficando com os lucros dos jogos, enquanto os custos são “socializados” por toda a população; a Globo, a mais forte empresa de comunicação do Brasil, que na última semana atuou para criminalizar a luta social. Os manifestantes acertavam o alvo, mas não da forma que esperamos.
A ojeriza aos partidos aponta um certo grau de conservadorismo: demonstra que a maioria dos presentes “compraram” a ideia tão propagada pela mídia corporativa de que “política é algo ruim” (sendo os partidos a representação máxima do que é política).
Os meios de comunicação empresariais constroem um imaginário do que é a corrupção – que só envolve os chamados “políticos” e alivia a barra das grandes corporações, que são quem realmente opera a corrupção como instrumento de uso do Estado pelos seus interesses. Na medida em que a população rejeita a política (e inclusive a política partidária, que é o mecanismo de expressão de posições em nossa limitada democracia representativa), ela está abrindo mão do único instrumento de transformação da realidade – sem política é a “economia” quem governa a vida. E isso é, sem dúvida, algo conservador.
Mas a rejeição aos partidos também carrega uma dimensão positiva: a rejeição à política institucional, viciada, que vive uma profunda crise de legitimidade. E nosso papel não é salvar a democracia representativa, mas, a partir desse sentimento antipartido, propor formas mais radicais de democracia.
De qualquer forma, só de se colocarem em marcha, essas pessoas já estão fazendo política. E elas precisam ser avisadas disso.
No meio daquele mar heterogêneo de pessoas e palavras de ordem ouvi muita coisa interessante. "Fora Feliciano” foi cantado muito vezes mais do que o "Sarney Ladrão! Devolve o Maranhão". E em vários momentos foram cantadas palavras de ordem sobre a Copa, defendendo inversão de prioridades: “da Copa eu abro mão, quero dinheiro pra saúde e educação”.
Mas não é de se assustar o perfil heterogêneo das marchas de ontem. Essas vozes conservadoras são expressão das ideias das maiorias sociais (do pensamento hegemônico, com suas contradições e temporalidades).
Essa ampla adesão, inclusive de gente que as marchas não costumam alcançar, tem que ser entendida como resultado de uma intensa disputa política que travamos na última semana, e vencemos! Ao custo de muita mobilização, agitação nas redes e nas ruas, e de muito suor e sangue dos manifestantes em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília...
E muita criatividade: que explorava as contradições da criminalização do movimento, “sou a favor da unificação das Alemanhas, mas quebrar o muro é vandalismo!”, que confrontava matérias de um mesmo jornal comparando a abordagem sobre as manifestações na Turquia com os atos no Brasil...
Na semana passada a linha política do andar de cima era criminalizar a luta social, dizer que qualquer mobilização deve ser proibida para não incomodar o “direito de ir e vir”. O simples ato de manifestar seria vandalismo. A polícia atacava de forma truculenta a multidão, dispersava manifestantes, despertava raiva e potencializava a ação violenta de grupos anarcopunks. E em seguida a mídia corporativa entrava em cena para reforçar a ideia de que as passeatas eram violentas. Isso gerou uma espiral de violência policial, em que sua própria ação violenta gerava legitimidade para ela ser ainda mais violenta. Mas o “monstro” da violência policial saiu do controle: no ato de quinta-feira (13.06), só da Folha de São Paulo foram 7 jornalistas agredidos, sendo o caso que ficou mais conhecido o da jornalista que tomou um tiro de borracha no rosto. Outros tantos jornalistas (do UOL, Carta Capital) foram presos – inclusive por portar um perigoso líquido, o vinagre.
Vídeos no Rio de Janeiro, São Paulo, Distrito Federal mostravam que, momentos antes dos ataques policiais, as manifestações eram pacíficas. No caso de Brasília, um vídeo desmoralizou o governador (Agnelo, PT), que mentiu ao dizer que a polícia agiu, inclusive atingindo torcedores que entravam no jogo do Brasil, porque os manifestantes estariam tentando invadir o estádio. Mas as imagens mostram os manifestantes sentados no chão quando o comandante da operação ordenou que a cavalaria avançasse sobre a manifestação.
Um olhar positivo da população sobre as manifestações se consolidou a partir das denúncias da violência desmedida, aliado ao enorme caldo de descontentamento popular com os gastos da Copa, o preço das passagens e a qualidade do transporte público e dos serviços de saúde e educação.
A vitória foi tão expressiva que a mídia precisou mudar sua abordagem sobre as marchas. Jabor, tantas vezes o intelectual orgânico do andar de cima, “reconheceu” que errou e passou a defender a legitimidade das manifestações.
A mídia empresarial mudou sua tática. Resolveu, dentro do possível, invisibilizar as marchas. Ali Kamel mandou tirar do ar o especial de 15 minutos sobre as marchas que iria ao ar no Fantástico do último domingo (16.06).
Como nos lembra Safatle, no seu magistral artigo na Folha de São Paulo (18/06), “há várias maneiras de esconder uma grande manifestação”. Você pode fazer como a Rede Globo e esconder uma passeata a favor das Diretas-Já, afirmando que a população nas ruas está lá para, na verdade, comemorar o aniversário da cidade de São Paulo.
Mas você pode transformar manifestações em uma sucessão de belas fotos de jovens que querem simplesmente o "direito de se manifestar". Dessa forma, o caráter concreto e preciso de suas demandas será “paulatinamente calado”.
A própria Folha brada em sua capa que a marcha agora é “contra tudo”.
Mas existe outra tática que vem sendo usada pela mídia corporativa e as forças policiais: mostrar os atos de vandalismo dos punks como uma exceção e tentar atrelar a oposição de esquerda ao governo a esses grupos. A Folha afirmou que seria o PSOL quem os estaria recrutando (hilário: os anarquistas agora seriam “dirigidos” por uma organização partidária).
No caso de Brasília, o governo petista criou uma história fantasiosa de que militantes do grupo B&D estariam pagando ativistas para comparecerem às manifestações. Procurando intimidar o movimento social organizado, e tentar impedir que ele canalize o sentimento de indignação popular para ações políticas efetivas.
Está aberto um período de disputa com a mídia corporativa do imaginário destas manifestações. Supor que a forma mais eficaz de confrontar os elementos conservadores destas marchas é levantarmos bandeiras de nossos partidos é colocar os partidos políticos no lugar que os manifestantes já esperam.
É hora de mostrar outra forma de construção e disputa política. É papel das organizações de esquerda se apresentarem como partes do processo. Desde as marchas da corrupção em Brasília (uma manifestação com perfil BEM mais esquisito do que a Marcha do Vinagre de ontem), a Cia Revolucionária Triângulo Rosa, coletivo sexo diverso do DF, tem participado das marchas com coluna própria. Pautando a luta pela liberdade sexual.
No sábado, quando o restante da manifestação mandava quem quer fosse “tomar no cú”, puxávamos um “libertem o cú, libertem o cú”, e momento seguinte as pessoas se tocavam do tom equivocado de sua palavra de ordem e mudavam o grito. O “Globo vai tomar no cu” virava um “o povo não é bobo, abaixo a rede Globo”.
Quando gritavam “fora partido”, gritávamos, junto com outros coletivos, “tome partido!”. Como não estávamos “uniformizados” com camisas e bandeiras, a recepção de nossas palavras de ordem tinham muito mais eco na multidão.
A Cia Revolucionária Triângulo Rosa aglutina diversos militantes que não são filiados a qualquer partido, mas entendem a importância de se organizar, inclusive para disputar espaços na institucionalidade, porque vivem uma relação saudável de autonomia e construção coletiva com militantes partidários que não tentam cooptar o movimento.
A marcha de ontem (17.06) teve uma dimensão muito maior, aumentando em muito a dificuldade de fazer a disputa de imaginário.
Nosso desafio, para impedir que as marchas descambem para a direita, é reforçar e construir frentes entre diversos movimentos sociais para pautar politicamente a marcha. Com faixas politizadoras, bandeiras dos movimentos sociais, camisas dos partidos (camisas nunca incomodam e são uma expressão importante de adesão partidária à marcha).
Nossa real disputa não é convencer as pessoas que o PSOL é o partido (ou nossas correntes!) que melhor representa aquela manifestação, não é fazer parecer que a marcha é nossa, por meio de uma jogada manjada de distribuir uma bandeira por militante e distribuir faixas estrategicamente na frente do ato. Tampouco tentar projetar nossas lideranças, quem sabe conseguindo que elas apareçam em um espaço da mídia corporativa. Nossa tarefa central é fazer com que essa juventude se mantenha em movimento e se organize, seja no MPL, seja no movimento estudantil, ou em qualquer outro movimento.
Nossa tarefa central é formar politicamente essa multidão para que esses militantes entendam as engrenagens do sistema do capital e estejam dispostas a superá-lo. Nossa tarefa central é demonstrar, na prática, que temos uma postura de construção dos movimentos primando por sua autonomia. A pedagogia do exemplo é a arma mais eficaz contra o antipartidarismo.
Travemos mais esse bom combate. E se tivermos a mesma sabedoria que tratamos no debate sobre a legitimidade das marchas, teremos mais uma vitória!
Eduardo d´Albergaria é especialista em Políticas Públicas do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPO) e membro do Diretório Nacional do PSOL.