O lugar da política
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- Murilo Gaspardo
- 21/06/2013
Alguns posicionamentos sobre as mobilizações dos últimos dias são inerentes a um Estado Democrático: manifestações públicas são legítimas e fortalecem a democracia; o vandalismo e a reação violenta das forças policiais são inaceitáveis. Algumas análises encontram boa dose de consenso: os movimentos revelam aversão aos partidos políticos e não toleram a sua instrumentalização partidária; os protestos são motivados por pautas reivindicatórias muito diversas, mas que trazem em comum uma insatisfação com a qualidade dos serviços públicos e com a forma como os recursos públicos são empregados; as instituições representativas não estão se revelando capazes de processar satisfatoriamente as demandas apresentadas por tais movimentos; a repressão dos primeiros atos fez com que as mobilizações crescessem, assumindo a bandeira da luta pela liberdade.
Há outras questões, porém, que exigem um debate mais amplo. Tomemos como exemplo os temas da qualidade do transporte público e do valor de sua tarifa, e o da corrupção na política. Um discurso bastante difundido atribui a responsabilidade por estes problemas à ineficiência do Estado e à falta de caráter dos políticos brasileiros, elegendo estes como os inimigos a serem combatidos.
Trata-se de um discurso fácil e tentador, mas que encobre muitas coisas e traz riscos para a própria democracia. Por um lado, ao se desqualificar todos os políticos e mecanismos por meio dos quais se opera o jogo democrático (dos partidos ao Congresso Nacional), abre-se espaço para diferentes formas de autoritarismo: desde o uso da força pura e simples para “restabelecer a ordem”, passando pelo sentimento de que, se os políticos são inúteis, podem muito bem ser substituídos pela tecnocracia estatal e do mercado, até o surgimento ou fortalecimento de líderes carismático-populistas que, com respaldo na opinião pública, poderiam promover a “limpeza” e o desenvolvimento do país, sem qualquer tipo de vinculação jurídico-institucional. A história brasileira tem exemplos fartos neste sentido. Por outro lado, tal discurso afasta do debate um elemento central para a compreensão dos problemas historicamente enfrentados pelo Brasil: o poder econômico. Com isto, presta-se um enorme serviço não para a transformação da sociedade brasileira, mas sim para a manutenção de sua estrutura injusta e desigual.
Outro viés consiste na politização do debate (não partidarização), ou seja, trazer para o centro da cena a discussão sobre como ocorre e como deve ocorrer distribuição da riqueza nacional, explicitando-se todos os conflitos que isto envolve. Por exemplo: por que o transporte público é caro e ineficiente? Por que os dirigentes políticos são corruptos e incompetentes? Não haveria outros interesses envolvidos? Qual a responsabilidade das concessionárias de transporte coletivo e da indústria automobilística por esta situação?
Quem vai pagar o custo da melhoria dos serviços de saúde e educação? Quem terá sua renda diminuída para viabilizar uma distribuição mais justa? Como serão repartidos os custos ambientais? Por que existem políticos corruptos? Não existiriam também corruptores? Não estaria o Estado brasileiro historicamente apropriado por interesses privados, que não se restringem aos dos políticos e burocratas? Quanto custa uma campanha eleitoral? Não estaria a política dominada pelo dinheiro? Enfim, como queremos que seja estabelecida a relação entre poder econômico e democracia?
Por fim, ressalta-se que mobilizações espontâneas, não hierarquizadas, horizontais, fluidas, em rede etc., contestando as instituições do Estado, constituem sinal claro de seu esgotamento e de uma demanda por novas formas de expressão política. Entretanto, a existência de instituições, não necessariamente no formato partidário-representativo, continuam indispensáveis para processar pacificamente os conflitos sociais, construir consensos, racionalizar o poder.
O povo nas ruas é absolutamente capaz de derrubar o valor da tarifa de ônibus ou mesmo um governo, mas a construção do novo demanda novos projetos de Estado e sociedade, e novas instituições, e estamos carentes de ambos. Estas mobilizações podem significar justamente uma grande abertura para tal debate. Porém, deixar-se manipular pelos interesses conservadores pode se transformar simplesmente em mais um espetáculo para encobrir questões de fundo e contribuir com a manutenção da estrutura social vigente.
Murilo Gaspardo é doutor em Direito do Estado pela USP. Professor Substituto de Ciência Política e Teoria do Estado da UNESP/Campus de Franca.
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