A hora e a vez da rua
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- Plínio de A. Sampaio Jr.
- 22/06/2013
As manifestações convocadas pelo Movimento do Passe Livre pela redução das passagens de ônibus politizaram a discussão sobre o orçamento público. Ao questionar a crônica penúria de recursos para as políticas sociais, a juventude brasileira exige transparência nas contas públicas e novos critérios na utilização do dinheiro do povo. O tufão que revitaliza a luta de classes provocou uma desnaturalização da economia, colocando em evidência o componente ideológico que oculta os interesses por trás da linguagem técnica, hermética e supostamente neutra da racionalidade econômica.
Apesar da contundência das manifestações, as maiores e mais virulentas da história recente do Brasil, os partidos há décadas encastelados no poder – PT, PSDB, PMDB, PSB, DEM – parecem não ter entendido a mensagem das ruas. Aturdidos pela dimensão avassaladora da revolta popular que toma conta do Brasil, muito a contragosto, prefeitos e governadores cederam à demanda por cortes nas tarifas de transporte público. Mas teimam em manter as premissas antisociais que regem a política fiscal, que se materializam nos princípios ultra-regressivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, cuja essência consiste em canonizar os interesses dos credores da dívida pública, transformando o gasto social e os investimentos públicos em variáveis de ajuste das contas públicas.
O caso do prefeito da cidade de São Paulo, supostamente um expoente da ala mais à esquerda do PT, é simbólico da incapacidade de as autoridades estabelecidas colocarem em xeque os parâmetros que regem a política fiscal sob o jugo do neoliberalismo.
Quando a disposição de luta da população ainda não se tinha manifestado plenamente, a reação de Fernando Haddad foi de total menosprezo pelo pleito do MPL, negando peremptoriamente qualquer possibilidade de diálogo e afirmando a absoluta impossibilidade de alterar a tarifa de ônibus (R$ 3,20 era uma cifra inquestionável, um problema matemático). Premido pela força dos fatos, em poucos dias o prefeito foi obrigado a abrir diálogo com os manifestantes.
No entanto, no encontro com representantes do MPL, o prefeito reiterou seus argumentos sobre a absoluta impossibilidade técnica de alterar a tarifa. Lançando mão de subterfúgios e sofismas, Haddad, com a autoridade do poder, reforçada por sua origem acadêmica, provou por a + b que não haveria a menor possibilidade de abaixar a tarifa – R$ 3,20 era um limite intransponível. Tratava-se de um problema matemático. No Conselho da Cidade, o prefeito foi peremptório: “A coisa mais fácil do mundo é agradar no curto prazo, tomar uma decisão populista sem explicar para a sociedade as implicações”. Para defender seu ponto de vista, lançou da impostura. Manipulando as informações que deveriam ser públicas e transparentes, explicou por que não poderia reduzir as tarifas: “Nossas estimativas dão conta que o custo anual até 2016 daria para contratar 20 mil médicos, dobrar a rede hospitalar, construir 20 mil unidades habitacionais”. A mensagem era clara: “Se tivermos que ampliar os subsídios com recursos municipais, que a sociedade participe da decisão porque teremos que tirar dinheiro de investimentos em outras áreas, como saúde e educação”.
O esforço para dividir o movimento, jogando a população contra os jovens que lutavam contra o aumento das tarifas, não deu resultado. Horas mais tarde, o mesmo discurso apareceria na boca do governador Geraldo Alkmin, quando ambos, lado a lado, constrangidos, anunciaram, finalmente, que o impossível tinha acontecido. O aumento estava revogado.
Contudo, ao insistir que os recursos para financiar a redução das tarifas seriam retirados de outras áreas sociais, a essência do pleito dos manifestantes – inverter o critério de prioridade cristalizado na Lei de Responsabilidade Fiscal e liberar a política fiscal dos imperativos dos grupos parasitários que controlam o orçamento público – continuou olimpicamente ignorado. Na patética tergiversação do prefeito e do governador, existe um componente de coerência: a cumplicidade incondicional com o status quo liberal. Ambos recusam-se a discutir as premissas que condicionam a política fiscal. São honestos, contudo, quando reconhecem cinicamente que, nos parâmetros da ordem, seus governos não têm a menor possibilidade de oferecer serviços públicos dignos.
Não entenderam o brado das ruas. A população não foi às ruas apenas por 0,20 centavos. Ela luta por uma mudança nos supostos da política fiscal. Na substância da descrença geral sobre a capacidade do Estado de resolver os problemas essenciais da população, existe uma total rejeição aos poderes instituídos. Se o recado tivesse sido entendido, os governantes não teriam trapaceado com dados e ocultado informações que revelam os grandes interesses econômicos escondidos na caixa preta do orçamento público.
A apresentação fragmentada e incompleta das contas da prefeitura manipula a realidade. Contrapor como necessidade inexorável diminuir os investimentos públicos como forma de financiamento dos transportes públicos é uma trapaça. Se houvesse vontade e coragem política para enfrentar os interesses econômicos e sociais que governam a cidade, não seria difícil constatar que São Paulo – uma cidade rica – não está condenada a tratar seus cidadãos como escravos modernos. A histeria tecnocrata de Haddad simplesmente não se justifica.
O custo anual para a prefeitura da redução de R$ 0,20 nas tarifas de ônibus, calculado em R$ 385 milhões, não representa um montante tão extraordinário como Haddad procurou mostrar. Corresponde a menos de 1% da receita total do município; apenas 2,2% da receita tributária da cidade; e pouco mais de 7,2% do IPTU. Enfim, nada que não pudesse ser obtido com uma reforma que aumentasse o IPTU dos bancos, indústrias, shoppings e mansões da cidade de São Paulo.
Comparado com o gasto previsto neste ano com o serviço da dívida pública refinanciada com o governo federal em 2000 no governo FHC, por imposição do FMI – R$ 3,5 bilhões -, R$ 385 milhões é um montante irrisório. Uma redução de 0,7 pontos percentuais nos custos de agiota impostos pela União (juros de 9% ao ano + IGP) ao povo paulistano seria suficiente para cobri-lo e, ainda assim, superaria por larga margem qualquer aplicação do mercado financeiro. Mas Haddad omitiu de sua didática exposição o problema da dívida pública da cidade de São Paulo. Assim, deixou de revelar à população que, entre o ano 2000 e junho de 2013, o serviço da dívida já consumiu R$ 20,9 bilhões. Também omitiu que, apesar de todo esse custo, o estoque da dívida pública com o governo federal aumentou nesse período de R$ 11.3 para U$ 58 bilhões. O juro extorsivo cobrado pelo governo federal estabelece uma dinâmica financeira de expansão da dívida que asfixia o município.
Mesmo tendo plena consciência do fato, pois o assunto foi tema importante de sua campanha, o prefeito ocultou o mecanismo de transferência de recursos dos cidadãos paulistanos para o governo federal a fim de engordar os superávits primários exigidos pelo FMI. Assim, Haddad deixou na penumbra a armadilha financeira que solapa a capacidade de a cidade de São Paulo fazer políticas públicas. Como o prefeito gosta de combater o movimento social com terrorismo contábil, revelando os médicos, leitos hospitalares e casas populares que seriam comprometidas pela redução das tarifas, não custa contrapor o custo dos quase 13 anos de vigência do acordo firmado por FHC e mantido pelos governos de Lula e Dilma. Eis o que se perdeu com a sangria imposta pela dívida pública com o governo federal: 83,6 quilômetros de linhas de metrô (U$ 250 milhões o quilômetro); 418 mil casas populares (R$ 50 mil a unidade); 17.416 creches (R$ 1,2 milhão cada).
Tão zeloso em “abrir” as contas públicas, Fernando Haddad foi absolutamente omisso em relação à caixa preta que explica os custos e lucros que estão por trás do cálculo da tarifa de transporte público, mesmo o assunto tendo sido um reclamo da promotoria pública. Em nenhum momento aventou sequer a possibilidade de mexer na margem de lucro das empresas e, muito menos, em estatizar o transporte coletivo da cidade, eliminando um dos principais parasitas que sugam os cofres públicos. E, no entanto, o povo que saiu às ruas para se apropriar da cidade grita em alto e bom som que a livre circulação das pessoas não pode ser objeto de lucro e ganância.
Nas últimas semanas, a juventude que atendeu o apelo do MPL conseguiu duas grandes vitórias. Primeiro, disse um rotundo NÃO à criminalização das lutas sociais, reafirmando o direito constitucional do cidadão à livre manifestação política. Segundo, o povo na rua derrubou a tarifa de ônibus. São as primeiras batalhas de um longo combate para subordinar a economia brasileira às necessidades do povo trabalhador. Foram batalhas históricas que colocaram na agenda a urgência de uma mudança radical em toda a política nacional.
Não há nada de surpreendente na revolta que se alastra por todos os cantos do Brasil. O surpreendente é que as terríveis contradições de uma sociedade em processo de reversão neocolonial tenham demorado tanto para vir à tona. A luta por uma inversão nas prioridades da política pública expõe a urgência de uma completa reviravolta na política econômica, a começar pela revogação da Lei de Responsabilidade Fiscal. A luta contra o neoliberalismo colocará em questão a necessidade de a sociedade brasileira concluir o seu longo processo do Brasil colônia de ontem para o Brasil nação de amanhã.
O Brasil vive uma revolta popular séria que pode se transformar no estopim de uma revolução democrática que abrirá novos horizontes para o trabalhador brasileiro. É todo o edifício do capitalismo dependente que começa a ser posto em questão, de baixo para cima, pela intransigência da população em aceitar condições de vida subumanas. Na confusão inerente a tempos turbulentos, todo cuidado com os pescadores de água turva é pouco, mas uma coisa deve ficar clara para todos que lutam pela transformação social: a luta de classes se polariza entre revolução e contrarrevolução.
Plínio de A. Sampaio Jr. é professor do Instituto de Economia da UNICAMP e membro do Conselho Editorial do Correio da Cidadania – www.correiocidadania.com.br
Comentários
Só uma observação. Tem dois trechos em que ficou confuso se as cifras mostradas estão em reais ou em dólares porque o símbolo muda na mesma frase. São eles "83,6 quilômetros de linhas de metrô (U$ 250 milhões o quilômetro); 418 mil casas populares (R$ 50 mil a unidade); 17.416 creches (R$ 1,2 milhão cada)." e "Também omitiu que, apesar de todo esse custo, o estoque da dívida pública com o governo federal aumentou nesse período de R$ 11.3 para U$ 58 bilhões."
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