Sobre o velho e o novo
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- Darlan Montenegro
- 24/06/2013
Não há motivo para pânico. Também não há motivo pra deslumbramento. De uma maneira geral, há motivo para um bocado de otimismo. E para alguma preocupação. Mas não muita.
O que é antigo não deve produzir nenhum desespero. A esquerda política e os movimentos sociais que se aglutinam, de uma forma ou de outra, em torno dela já lidou com isso em outros momentos.
E o que é antigo?
1) É antiga a forte resistência aos partidos políticos, nos movimentos juvenis de massas (os grandes, grandes, mesmo). Elas envolvem dezenas de milhares de pessoas que nunca foram a uma passeata, que têm uma relação tensa com a política e que não veem nos partidos os seus representantes. E a maior parte da sociedade não se sente representada pelos partidos. Não se sente hoje e não se sentiu, no passado. Falo dos grandes movimentos de massas que eu vivi como membro de grêmio secundarista, de centro acadêmico e da União Nacional dos Estudantes (tudo isso entre os anos 80 e 90): a luta dos secundaristas do Rio contra o aumento das mensalidades, em 1988; a luta pelo Fora Collor, em 1992 (a maior mobilização juvenil da nossa história, até aqui; mas que está sendo rapidamente superada, em termos de número de participantes, pela atual); a luta dos secundaristas e universitários do país inteiro por uma mudança na legislação que regulava as mensalidades, em 1993. Todas essas foram muito grandes (ainda que muito diferentes em suas dimensões e alcance). E, nelas, a força do antipartidarismo era imensa.
Em 1988, os estudantes tentaram tirar o presidente da Ames (Associação Municipal – então Metropolitana – de Estudantes Secundaristas, do Rio) de uma grande passeata porque ele se identificava publicamente como militante do PT e da Convergência Socialista. E muitos de nós, que atuávamos numa organização que mais tarde, naquele mesmo ano, viria a se chamar OJL, atuamos de forma deliberada para capitalizar o sentimento antipartido das lideranças estudantis e construir um campo político que se tornaria hegemônico no movimento estudantil secundarista do Rio de Janeiro por alguns anos.
A força política que tem hegemonizado as entidades estudantis nacionais brasileiras ao longo dos últimos trinta anos é justamente aquela que decidiu não se apresentar publicamente como partido e adotar, como um dos pilares da sua política de massas, a denúncia da interferência dos partidos no movimento. Trata-se do PCdoB, que, no movimento secundarista, atua, desde 1984, como UJS, e, no universitário, foi Viração por toda uma época e, depois, UJS. Eu fui a muitos congressos da UNE, na minha vida. E a alguns da Ubes. Em todos, estava lá o PCdoB puxando a palavra de ordem: “A UNE (ou a Ubes) é união; não é partido, não”. É hipócrita, é claro. Mas vocês hão de concordar que tem funcionado.
Nas manifestações do “Fora Collor”, escolas inteiras se retiraram de manifestações, em protesto contra a participação de representantes dos partidos nos atos públicos (não falo apenas dos chamados “burguesinhos da zona sul”, como foi o caso nas manifestações de 1988; falo da galera do bom, velho e público Colégio Pedro II, mesmo). Na luta contra os aumentos de mensalidades, em 1993, uma imensa rede (olha ela, aí) de centros acadêmicos de cursos de universidades pagas, na região metropolitana de São Paulo, se recusava a ter qualquer relação com a UNE e denunciava os partidos como instrumentalizadores do seu movimento.
É bom registrar que, além dos que chegavam ao movimento sem nunca terem participado de nenhuma outra manifestação, aqueles que simpatizavam com o anarquismo também rejeitavam os partidos (exatamente como hoje). Para completar, só mais um exemplo: quando a União Estadual dos Estudantes de São Paulo foi (re)construída, em 1993, a chapa vencedora foi a do movimento dos “independentes” (os sem-partido e, de uma maneira geral, antipartido). Tinham apoio partidário, é verdade. Mas a base que os sustentava não sabia disso.
Porém, não obstante a resistência e os protestos dos “antipartido”, todos esses movimentos foram dirigidos por entidades fortemente identificadas com a tradição política da esquerda. Portanto, não priemos cânico. Pelo menos, não muito.
2) É antiga a disposição da mídia (o partido mais bem organizado da burguesia brasileira e também o mais influente) de disputar os rumos dos nossos grandes movimentos de massas; a primeira tentativa é, quase sempre, de deslegitimar ou descaracterizar, pra ver se a coisa morre. Foi assim que a Globo agiu na campanha das Diretas e no Fora Collor (não acredite no que contam por aí; o Fora Collor não foi um movimento orquestrado pela Globo; foi um movimento orquestrado por entidades estudantis que se opunham à implementação do projeto neoliberal no Brasil).
Na época das diretas, a Globo começou não cobrindo os primeiros atos (convocados pelo PT, ainda em 1983). Depois, quando o negócio decolou, em 1984, disse que o povo que estava nas ruas tinha saído para comemorar o aniversário de São Paulo (essa é uma das mais patéticas). Aí, quando o negócio se alastrou, mesmo, a Globo virou democrata de carteirinha e colocou o Osmar Santos para ser locutor dos comícios das Diretas. Ripa na chulipa e pimba na gorduchinha.
No início das manifestações pelo Fora Collor, a Globo (principal aliada do presidente, apesar do que diziam e dizem os seguidores do nosso bravo e heroico – de verdade e sem ironia – Leonel Brizola) não cobria. Centenas de milhares de jovens nas ruas do país inteiro e, para o Jornal Nacional, era como se nada estivesse acontecendo. Depois, passou a adular os caras-pintadas e o meu velho amigo e companheiro de direção da UNE, Lindbergh, acabou passando o natal na Xuxa. Mas, antes disso, foi sistematicamente taxado de dinossauro (todos fomos) a cada vez que dizia que o nosso movimento não era apenas contra a corrupção, mas contra as “reformas” neoliberais do Collor. E é bom que se diga: Lindbergh nunca parou de descer o pau nas privatizações e na política neoliberal de Collor. A Globo levou ele para a Xuxa, APESAR disso.
A Folha de São Paulo, em ambos os casos, agiu de forma distinta, em relação à Globo, mas com objetivos semelhantes: aderiu cedo às campanhas, percebendo o seu potencial mobilizador. Mas buscou sempre influir nos rumos desses movimentos. No caso das Diretas, buscou garantir que a transição não desembocasse em um governo de esquerda (muito provavelmente encabeçado pelo Brizola). No caso do Fora Collor, procurou garantir que a imagem de corrupto de Collor não contaminasse o programa neoliberal do qual ele era o maior portavoz. A mídia que apoiou a “CPI do PC” e repercutiu as denúncias contra Collor, na verdade, não apostava na sua derrubada, mas no seu enfraquecimento, o que o levaria a negociar com os grupos das elites cujos interesses haviam sido prejudicado quando Collor colocou o seu grupo no centro de todos os esquemas de favorecimento governamental: da distribuição das verbas de publicidade do governo aos velhos esquemas de propinas tomadas das empreiteiras.
Em ambos esses casos, as elites obtiveram vitórias parciais (um pouco menos parciais no caso das Diretas). Mas eu ouso dizer (não sem um bocado de indisfarçado orgulho) que a vitória do movimento pela derrubada de Collor impediu que o Brasil se tornasse uma Argentina. FHC governou em condições piores do que as que Collor tinha, no início dos 90 (um movimento sindical destroçado e um movimento estudantil inexistente). Os anos 90 foram muito ruins. Mas, se olharmos para todos os nossos vizinhos continentais, veremos que poderiam ter sido MUITO piores.
Mais uma vez, não há razão para pânico por conta da ação da mídia (ou, ao menos, APENAS por causa dela).
3) E esses movimentos sempre foram, também, muito heterogêneos, em sua composição e nas razões que levavam as pessoas a participar. Digo, sem muito medo de errar, que o mesmo deve valer para a Passeata dos Cem Mil, em 68, e valerá sempre para os grandes movimentos de massas. A vida é assim, mesmo. Fazer o quê? Entrar em pânico, com certeza, não. Pelo contrário. É bom que as pessoas estejam se mobilizando por se encontrarem indignadas com variados aspectos da nossa vida social (e, especialmente, com a forma como se tem organizado o espaço urbano). Razões pra ficar indignados, definitivamente, não faltam.
As novidades desse movimento são, em geral, preocupantes (ainda que nem todas):
4) A ausência de uma direção claramente de esquerda, no plano nacional (em SP, o MPL dirigiu o movimento e é claramente de esquerda). Isso é novo. Os grandes movimentos nacionais anteriores tiveram (todos) direção. E uma direção de esquerda (ou, vá lá, de centro-esquerda, no caso das Diretas). Esse, não tem. E não tem por uma razão principal: aquele que se constituiu, nos anos 80, como o principal partido de esquerda do país e as entidades que, de uma maneira geral, gravitaram, ao longo dos últimos trinta anos, em torno da política proposta por esse partido encontram-se no campo de sustentação do governo federal e encontram-se fortemente descolados de qualquer dinâmica real de mobilização. O PT, a UNE, a CUT e os sindicatos em geral foram tomados completamente de surpresa pelas mobilizações. Isso é totalmente novo.
E há um fator seriamente agravante: a orientação adotada pelos governos petistas, de fazer gigantescas concessões ao capital financeiro e apostar em políticas hiper-graduais de mudança social, contribui para que o governo federal se encontre, diante desse movimento, numa situação defensiva (noves-fora a evidente cooptação da maior parcela dos quadros dirigentes petistas para uma política de redução da capacidade questionadora dos movimentos sociais). Por outro lado, aqueles que optaram por romper com o PT e com o governo (ou que a eles já se opunham, desde antes da posse de Lula, em 2003) não possuem enraizamento nem de longe suficiente para se apresentarem como dirigentes dos movimentos sociais. Então, de um lado, no início do movimento, tínhamos um campo governista que falava em “golpismo” e em “baderna”; de outro, uma oposição de esquerda que tentava desesperadamente ver no movimento a confirmação das suas próprias orientações políticas. E o movimento não estava nem aí pra nenhum dos dois. Nenhum dos dois tinha (ou tem) condições de dirigi-lo;
Não foi o facebook que levou a um movimento sem direção. Foi a incapacidade dos dirigentes tradicionais de cumprir um papel dirigente nos movimentos sociais. Os governistas porque desistiram de fazê-lo e porque, em muitos lugares (como SP) eram os sujeitos das políticas que o movimento combatia (no DF, pra completar, o governador petista foi o responsável pela repressão). A oposição de esquerda porque não tem musculatura. Mas há males que podem vir para bem. E, quem sabe, os sustos que a esquerda (toda!) tem tomado, nos últimos dias, não possam servir para um enfraquecimento do governismo chapa-branca e do oposicionismo sectário?
5) A presença significativa de forças de direita atuando no movimento também é relativamente nova; e, para mim, ainda não está completamente dimensionada. Pode estar havendo um exagero na leitura do que está se passando nessa área. Mas também pode ser que a coisa seja pior do que parece. Sei lá. De qualquer forma, não acho que seja dos carecas ou neonazis em geral que venham as maiores ameaças. O pior, até aqui, tem sido o povo que abraça as ideias ao estilo do Anonymous (ou talvez de anônimos que se apropriam dos símbolos usados pelo grupo de hackers). O vídeo com as cinco bandeiras “unânimes” (todas elas centradas no tema da corrupção; nenhuma voltada para a distribuição da riqueza ou a promoção da igualdade) circulou um bocado, nesses últimos dias. E, se circulou pelo meu facebook, fortemente hegemonizado pela presença de comunistas (como o dono do perfil), imagino o que não esteja acontecendo em outras timelines menos vermelhas. E são bandeiras conservadoras e de forte apelo de massas. Cheiro de Collor e FHC, que os deuses nos livrem. De qualquer forma, tudo isso é mais preocupante pela ausência de direção do que pela força da direita, propriamente dita. E o partido da mídia está potencializando justamente esses caras. No jogo da seleção brasileira contra o México, Galvão Bueno fez propaganda das mesmas bandeiras do “Anonymous”, de forma evidente pra quem está há anos na luta política, mas sub-reptícia para o grande público. Há perigo real na combinação da ausência de centro dirigente nacional com a ação da mídia (nota: esse texto foi escrito antes das manifestações de quinta-feira, dia 21; o perigo da combinação da ausência de direção com a ação da mídia e a presença de elementos de direita no movimento encontra-se, hoje, confirmado num nível muito além do que eu imaginava).
6) Há novidades legais, também. Foi a primeira vez que vi um movimento se irradiar de forma tão rápida em torno do tema da violência policial. E isso, convenhamos, é sensacional. Coisa bonita à beça de se ver. A galera entrando no cacete, em São Paulo, e uma legião de jovens dispostos a ir imediatamente para as ruas, em solidariedade. É claro que tem muito mais coisa que explica a disposição para a mobilização desse pessoal todo. E isso a gente ainda vai fazer seminário e mesa-redonda na academia por um bocado de tempo, pra debater. Mas é inegável que o galvanizador foi a violência da PM paulista. O Alckmin criou um monstro. Um monstro do bem, tipo aqueles do “Monstros S.A.”.
7) O facebook é uma novidade, evidentemente; e explica a facilidade com que um movimento sem direção se espalhou tão rapidamente; mas não acredito nem um pouco que o movimento possa sobreviver, no médio prazo e para além do ciclo de manifestações que estamos vivendo, com base apenas nas redes sociais. Ele precisará ganhar mais vida presencial, para além da que já existe em SP (reuniões, assembleias e a inevitável eleição de formas variadas de representação e direção). O resto é perfumaria e baboseira castellsiana (o novo autor predileto do Merval).
Sobre a “situação tática”:
8) Em primeiro lugar, é uma bela oportunidade para o governo federal guinar à esquerda. Não houve, até as manifestações, sinais de que planejasse fazê-lo. Pelo contrário: as mudanças sinalizadas na política fiscal e nos juros cheiram a acovardamento diante da inflação. Até a eclosão do movimento, Dilma vinha mostrando disposição de se afastar do rumo “anti-cíclico” que começara a esboçar, de um ano pra cá.
Por outro lado, a oposição à esquerda não parece ter força para dirigir um movimento que derrote o governo pela esquerda. Se esse grande movimento se tornar, em alguma medida, um instrumento da derrota política de Dilma, isso dificilmente se dará pela esquerda. Mas, no momento em que as bandeiras dos partidos de esquerda são quebradas, nas passeatas, interessa a todas a forças desse campo (governistas ou não) se unir em torno de alguns princípios comuns, que permitam ao campo exercer uma influência positiva sobre o movimento. A defesa da democracia interna ao próprio movimento; a denúncia da violência policial (venha de onde vier, inclusive de governos petistas); o apoio às bandeiras fundamentais que levaram o movimento a se organizar, num primeiro momento (mesmo que defender essas bandeiras implique em criticar o(s) governo(s) petistas).
Por outro lado, é do interesse de pelo menos parte da oposição de esquerda a Dilma somar esforços com os petistas que estiverem dispostos a fazê-lo. Porque, para o PSOL (ou, sejamos mais precisos, para PARTES do PSOL), a derrota do governo não é algo que se pretenda obter a qualquer preço e a possibilidade de que os rumos do movimento passem a ser pautados pela mídia, tendo como agentes os pequenos segmentos conservadores do próprio movimento, também representa um perigo sério. No mínimo, trata-se da possibilidade de perder toda uma geração de lutadores sociais. No máximo, trata-se da configuração de um quadro muito favorável à ação mais ousada da direita no cenário político.
Tudo isso seria preocupante, mas parece haver sinais de que as forças da boa e velha esquerda começam a se mover, para construir uma unidade política com a boa e novíssima esquerda. E é unidade das melhores: aquela que se constrói na luta. As plenárias de organização do movimento, no Rio, por exemplo, sinalizam nessa direção. Da mesma forma, a carta assinada por parlamentares do PSOL e de partidos da ala esquerda da base governista, no Rio, em apoio ao movimento, também é um excelente sinal.
O grande desafio da última década, a meu ver, foi tensionar os governos petistas por uma política reformista de esquerda (reformista de fato, como no início dos anos 60, com as “reformas de base” e na época da construção do “programa democrático e popular”, no final dos 80, em forte continuidade com o ideário do período pré-golpe). Houve, na verdade, muito pouca tensão: os segmentos da esquerda que permanecerão no PT renunciaram a fazê-la; e os que saíram, também; os que ficaram aderiam ao governo “tal como ele é”; e os que saíram dedicam-se, exclusivamente, a derrotá-lo. Houve pouca tensão e pouco resultado. Os governos petistas foram extremamente moderados em implementar políticas de mudança. E reforma, de fato, não houve nenhuma.
O futuro do tal “gigante que acordou” (imagem ruim e extremamente auto-centrada) ainda é incerto. Mas, a depender dos seus desdobramentos, pode forçar Dilma a rever alguns dos seus conceitos. Para melhor. Eu acho que as coisas tendem a arrefecer, como sempre, e o governo tende a voltar modorrentamente ao rumo desalentador que vem seguindo. O pronunciamento de Dilma, na noite sexta-feira, dia 22, sinalizou alguma disposição de ir à esquerda (embora a presidente tenha se posicionado muito mal em relação ao tema violência policial). Há que verificar o que, do que ela disse, se confirmará na prática.
Esperemos que alguma mudança de orientação venha dessa nova conjuntura. Até porque a derrota de Dilma não implicará, de forma alguma, numa ascensão da esquerda. Não há força social e política na esquerda capaz de derrotar o governo petista. E não haverá por algum tempo, ainda. Mas, na direita, essa força existe. E o melhor remédio para que Dilma não venha a ser derrotada pela direita é sentir os pés queimando pela esquerda.
Darlan Montenegro é professor adjunto na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.