Correio da Cidadania

Uma rebelião popular progressiva e a democracia das ruas

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Há um levante nacional, com eixo na juventude, com adesão de milhares de trabalhadores e trabalhadoras jovens e dos setores médios contra todo tipo de governo e por reivindicações, no geral, justas: contra o aumento das tarifas, contra gastos da Copa, fora Feliciano, saúde, educação, corrupção e os temas relativos a isso. Em geral, o signo é muito positivo e claramente colocou elementos de crise institucional, dada a fúria contra os poderes, seja quem for o governo – contra governos e prefeituras do PT (como São Paulo e várias outras capitais), contra o PSDB (governos dos estados de São Paulo e Minas Gerais), contra ACM Neto em Salvador, contra uma prefeitura do PSB apoiada pelo Aécio (Campinas), e por aí vai. Foram mais de um milhão de pessoas se manifestando em pelo menos 400 cidades do país. E agora com características de mobilizações diárias e pautas variadas.

 

Isto é uma ascensão de lutas, que está mudando a relação de forças e questionando tudo, inclusive a institucionalidade, tal como instalada. Por suas características massivas, já superam o Fora Collor e podem começar a entrar no bojo das comparações com as Diretas Já. É uma revolta contra tudo, uma “revolução da indignação em andamento”.

 

Dito isto, não significa que é um passeio, uma via de mão única para a esquerda ou em direção a um processo revolucionário linear. Nada disso, é uma situação, deste ponto de vista, muito diferente das Diretas Já e do próprio Fora Collor. Não há uma direção do processo. A esquerda reformista tradicional está destroçada nesta massa (PT e PCdoB) – e isso é o que está por trás do antipartido que a direita está capitalizando em algumas capitais. E a esquerda alternativa e socialista – seja ela a partidária ou autonomista – é pequena para aparecer claramente como a direção do processo, em que pese a importante liderança do Movimento Passe Livre na luta pela redução da tarifa.

 

Ou seja, a direita está sim disputando o processo, num vazio de referência e direção, inclusive em alguns locais com espaço para grupos fascistas que já existiam. Não nos esqueçamos que já existia um movimento meio de direita contra a corrupção e antipartido, que fez atos expressivos em 2011, como em Brasília, além do fascismo das milícias no Rio de Janeiro e dos grupos de extermínio de São Paulo. Claro que isso pode aparecer em uma situação de maior enfrentamento. Mas isso não é o tom do processo, o tom é a revolta juvenil e popular progressiva.

 

Isso reforça o componente de enfrentamento com as polícias. No dia 20, o eixo sequer foi São Paulo. Onde tem os jogos da Copa das Confederações as características de enfrentamento tendem a ser muito mais fortes e com justas reivindicações do movimento em relação à Copa. O Maracanã cantou o hino, mas cantou “o povo unido jamais será vencido” e isto não tem a ver com eixo de direita, embora fascistas estivessem agindo no Rio.

 

Outro tema: é um erro igualar hino nacional e bandeira nacional com direitismo. Outra coisa é que a direita pode se valer disso, mas o sentimento da massa é honesto, de resgate da nação contra quem ela considera que está usurpando e roubando o país. Isto é, e sempre, foi a simbologia da massa em relação à bandeira e ao hino. Nos anos 80, com um grande peso da esquerda, era muito comum os atos das Diretas Já e mesmo assembléias operárias de massa no ABC serem encerrados com o Hino Nacional. Nós temos que disputar essa consciência da massa para a esquerda, mas entendendo o valor do sentimento nacionalista antirregime, ou anti-corrupção no caso atual. No caso da minha geração, era uma nacionalismo anti-ditadura, do tipo dizer “o hino e a bandeira são nossos e não da ditadura”. Hoje tem isso de fundo, “a bandeira, o hino, a nação são nossos, e não dos corruptos”. Esquerda que não entender isso vai virar pó no movimento.

 

Temos que partir do princípio de que o movimento conseguiu uma enorme vitória, no caso, a redução das tarifas. Uma enorme e inédita vitória no estado de São Paulo. Não é um movimento que larga com derrota e acuado; larga com uma grande vitória, impulsionando o crescimento da mobilização, pois já teve VITÓRIA.

 

A conjuntura não é de golpe de Estado

 

Não há perigo de golpe de Estado ou golpe fascista, não é essa a linha da grande burguesia e dos seus partidos, e quando falo partido, falo Globo, o principal partido da direita. Sua linha é de manifestações pacíficas, rechaço contra qualquer tipo de violência e moralização e preservação do regime, claro que nesse marco desgastando o PT. Isso porque já está rodando carta dos movimentos sociais governistas, pedindo governabilidade de Dilma. Daqui a pouco vão agitar o fantasma de golpes e fascismo.

 

Atenção, o governo Dilma é um governo da classe dominante, de direita, inimigo nosso e o povo em movimento está furioso com as mazelas oriundas deste modelo que o PT aplica. É o que explica essa coisa difusa na consciência média da massa, sem uma direção clara. Mas não vamos igualar tal massa com a direita organizada. E não vamos cair na lorota do petismo sobre golpe, fascismo; eles que se explodam com a massa.

 

Não temos que compartilhar da ideologia do anti-partido; sempre defendemos a importância dos partidos políticos. Mas temos que entender a fundo o que está ocorrendo, porque em relação a PT e PCdoB nós não temos que brigar com ninguém; venderam o povo para governar com as empreiteiras, os negócios da Copa e o agronegócio. Brigar por eles, sim, seria empurrar a massa para os braços da direita. Não vamos ceder à pressão petista. Como não ser furioso contra o PT em Brasília, que colocou a Tropa de Choque para esculachar o povo e os movimentos? Ou seja, a fúria contra o PT é legítima porque o PT governa e frustrou. Dilma atacou direitos, fez todas as concessões imagináveis para os grandes capitalistas por conta da Copa. O governo Dilma é uma inflexão à direita em relação ao segundo mandato de Lula, que fez mais concessões à classe. Com Dilma, vieram cortes nos gastos, arrocho no setor público, bandalheira grande nas obras da Copa, aliança a fundo com o agronegócio, ataques aos direitos dos povos indígenas. Em resumo, é uma revolta contra o sistema político e uma revolta legítima também contra o PT.

 

Este tipo de revolta e os fenômenos que a geram estão inseridos em um quadro internacional. Por acaso, vi um documentário muito interessante sobre a situação atual na Turquia. Parecia que estavam falando do Brasil; 80% dos jovens nas ruas não têm partido e não gostam de partidos, a esquerda é fragmentada em muitos grupos com pouca inserção social e a direita lá são os islâmicos fundamentalistas anti-laicos. Na Grécia, mesmo com inúmeras greves gerais, uma esquerda quase ganhando eleições tem também uma extrema-direita fortíssima e organizada. Ou seja, ascensão e polarização social geram luta de classes, polarizada entre os extremos. Temos também a contrarrevolução ganhando espaço. Mas não é o que dá o tom no Brasil. A essência do movimento é progressiva, mas será disputada à esquerda e à direita.

 

O problema é como disputar. Há uma crise institucional se gestando, uma multiplicidade de reivindicações, nos conduzindo para a questão política do poder, a questão da corrupção, a questão de que democracia precisamos, o que fazer com os desmandos etc. Não podemos centrar só na pauta socioeconômica (digamos assim) das reivindicações e deixar na mão da direita a pauta do regime, da política, das questões democráticas e da corrupção, porque tem grande chance der isso tudo ganhar peso (Fora Renan, contra a PEC 37, que a PF investigue as obras da Copa). Isto terá apelo de massas e temos que entrar no debate, até porque é um escândalo se a PEC 37 passar – é acabar com o poder de investigação do Ministério Público (o que o petismo corrupto adoraria). Portanto, não podemos deixar uma reivindicação, anti-bonapartista do ponto de vista da democracia, como é o caso da PEC 37, nas mãos da direita.

 

A pauta é a das reivindicações populares e democráticas

 

Então temos que combinar a manutenção da pauta das reivindicações populares: tarifa zero, moradia, educação, contra privatização, com a pauta democrático-política.

 

É preciso politizar o tema da corrupção e do regime. Rápido. A essência da nossa pauta política é a democratização do poder, reforma política com controle e participação popular. Isto tem que se traduzir em medidas como desmilitarização da PM (à qual devemos dar muito peso), quebra de sigilo de todos os parlamentares e dos grupos que os financiaram, revogação de mandatos, salário de parlamentar igualado ao de professores.

 

Enfim, vai por aí. Sem se chocar com as medidas anticorrupção que estão sendo pautadas, porque elas são progressivas. A pior coisa agora é ficarmos com preconceito com a pauta que se desdobra do repúdio à corrupção. E outro tema político-democrático em que temos de entrar é a democratização dos meios de comunicação e o controle social da mídia.

 

O programa para essa etapa vai na direção de combinar a pauta das reivindicações populares (eixo nos direitos e serviços públicos), desmilitarização da PM, democratização do poder (as bandeiras da reforma política popular) e democratização da grande mídia.

 

É muito importante buscar construir uma proposta de um fórum e uma reunião nacional dos movimentos da esquerda combativa, com os setores que estão na linha de frente, como o MPL, para esse tipo de política, a fim de articular um programa e uma pauta do movimento. Temos que colocar na agenda a construção de um espaço amplo da esquerda (sem o PT e sem o PCdoB). Nada de bloco com PT e PCdoB. São inimigos e não aliados. Como disse o companheiro André Ferrari em sua análise que circulou nas redes sociais: “que o PT pague pela sua traição histórica”.

 

A rua é nossa!

 

Não vamos sair das ruas, nem rebaixar nossas reivindicações, o que temos é de estar melhor organizados e mais unidos com os setores de esquerda combativos, disputando os rumos da atual ascensão, ao lado da juventude e dos movimentos populares, nas mobilizações nos centros, na frente dos palácios dos governos, na frente dos estádios da Copa da Confederações, na periferias das grandes capitais e regiões metropolitanas – onde para serem ouvidos nas suas reivindicações bloqueiam as estradas.

 

É nesta autêntica democracia das ruas, auto-organizada e com muitas espontâneas manifestações, que o povo, os trabalhadores e a juventude vão construir outro país.

 

Este é o lugar de uma nova esquerda combativa, que quer reconstruir os laços com o povo para um projeto de transformação social e deixar para trás de vez a herança maldita das traições do PT e do PCdoB.

 

Fernando Silva é jornalista e membro do Diretório Nacional do PSOL.


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