A quem interessa o crime?
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- Wladimir Pomar
- 24/06/2013
As manifestações de rua, que já duram cerca de duas semanas, trouxeram centenas de milhares às ruas, apresentando uma diversidade social, etária e de gênero nem sempre reconhecida pelos analistas de plantão. Boa parte deles sugere que as manifestações eram compostas principalmente por jovens da antiga e da nova classe média, não progressista, cujas principais referências seriam os símbolos de consumo. Esses analistas parecem não levar em conta a contradição de uma classe média levantando como principal bandeira a revogação de um aumento de 20 centavos nos transportes urbanos. E de que foi essa bandeira que, apesar, ou por causa, da brutalidade policial das primeiras manifestações, mobilizou não dezenas, como erroneamente supus apressadamente, mas centenas de milhares de descontentes, que jamais haviam ido às ruas para protestar.
Quando os governos e a polícia tiveram que recuar, diante dessa mobilização massiva em quase todas as capitais e em várias grandes e médias cidades, as manifestações ganharam um caráter pacífico. Ao mesmo tempo, surgiram novas bandeiras, relacionadas com um leque de insatisfações que boas pesquisas de opinião pública poderiam ter captado a tempo de levar tais governos a mudarem suas políticas e prioridades, e alertar os partidos de esquerda para agirem e participarem organizada e massivamente nas manifestações. Estas, paralelamente a seu crescimento, deram lugar, no processo de sua finalização e dispersão, a grupos armados de rojões, paus, pedras e até coquetéis molotov, que realizaram depredações, saques e outros atos de vandalismo. Foram as imagens de tais atos, não das manifestações massivas, que conquistaram os espaços da mídia e se espalharam pelo Brasil e pelo mundo, dando a impressão de um país à beira do caos.
Em crimes desse tipo, da mesma forma que em crimes de qualquer outro tipo, a pergunta mais banal e comum dos investigadores consiste em saber a quem interessa. A quem interessa transformar as manifestações pacíficas em cenas de vandalismo? A quem interessa provocar a intervenção e o choque com a polícia? A quem interessa demonstrar que o governo federal e o PT são ineptos para impedir que demonstrações democráticas se desdobrem em torvelinhos de violência? A quem interessa criar uma situação de desordem pública que pode levar, inclusive, à intervenção das forças armadas?
Começando pelo lado oposto, interessa aos agrupamentos da direita civil e militar, que acusam o governo federal de estar preparando um golpe comunista com o objetivo de eliminar a propriedade privada, as religiões, as famílias e as liberdades públicas. Essa direita reacionária é muito ativa nas chamadas redes sociais e, por incrível que pareça, prega abertamente a tomada do poder para limpar a casa, da mesma forma que fez em 1964 e, segundo ela, não conseguiu completar a limpeza. Agrupamentos dessa direita parecem estar por trás dos boatos que anunciaram o fim do bolsa família. Parecem ser a origem dos boatos de que a importação de médicos estrangeiros seria um disfarce para a entrada de 6 mil agentes cubanos agirem no que chamam de golpe de Estado do PT. E parecem ser os principais apoiadores da enxurrada de leis conservadoras que, no Congresso, pretendem transformar o Estado laico num Estado fundamentalista religioso, e entregar a investigação policial exclusivamente à polícia. Esses agrupamentos advogam abertamente um golpe preventivo contra os comunistas, derrubando Dilma como corrupta.
Mas não é só à extrema-direita que interessa gerar aquelas situações de descalabro. Interessa também a grupos sociais conservadores, proprietários de indústrias, redes comerciais e de serviços, bancos, instituições financeiras e meios de comunicação. Eles estão descontentes com várias das políticas do governo, principalmente as que procuram aumentar a participação democrática nesses setores. Têm representantes no próprio governo federal e forte influência sobre vários governos estaduais e municipais. E enxergaram nas ações de vandalismo uma oportunidade de enfraquecer o governo Dilma e fazê-la recuar. Não é por acaso que, mesmo sabendo a tática dos grupos vândalos de só realizar o quebra-quebra após a dispersão das manifestações, várias polícias estaduais deixaram de agir preventivamente, só aparecendo no meio ou no final das destruições. E que o foco da mídia tenha sido não as manifestações de dezenas e centenas de milhares, mas o vandalismo de grupos que, às vezes, não contavam com mais de 15 a 20 participantes.
Alguns dos pequenos agrupamentos da extrema-esquerda anarquista também pareceram inicialmente interessados nos confrontos, na falsa suposição de que estava sendo criada uma situação revolucionária que teria como desdobramento uma revolução social. Apesar de toda a experiência histórica a respeito, ainda existem correntes desse tipo, cuja base social é o lumpesinato, tanto burguês, quanto proletário. Esses dois tipos de lumpesinato foram, na realidade, a tropa de choque das arruaças, seja por conta de alguns dos agrupamentos sociais acima, seja por sua própria conta e sua natureza destrutiva.
O interessante é que nada disso é novidade. A história, desde os tempos antigos, está cheia de exemplos de manifestações populares espontâneas, tendo como motivação insatisfações reprimidas, que se tornaram incontroláveis por alguma gota d’água aparentemente insignificante. Em geral, tais manifestações se transformam em campos de disputa de diferentes correntes sociais e políticas que, a partir da revolução francesa de 1789, passaram a ser classificadas, genericamente, de esquerda, centro e direita, com divisões e nuances variadas. Só ingênuos poderiam achar que, no caso das atuais manifestações espontâneas no Brasil, a direita reacionária, o centro conservador, e setores de ultraesquerda não iriam entrar nessa disputa, com objetivos e formas próprias de ação.
A novidade brasileira, para ser franco, foi a total incompetência dos partidos de esquerda, inclusive daqueles que participaram desde as manifestações iniciais, em perceber a existência de insatisfações que vão da negação às organizações partidárias, do descontentamento com sindicatos e movimentos sociais organizados, da falta de disposição dos governos em dialogar diretamente com a população, às prioridades dos investimentos públicos. Por mais que se possa explicar que as obras esportivas não representam custos sem retorno para os cofres públicos, o fato é que a elas foi dada uma atenção e uma prioridade que, por exemplo, os desalojados pelas calamidades naturais da serra fluminense até hoje não tiveram, anos depois.
Assim, além de desconhecerem a profundidade de tais insatisfações, as organizações políticas de esquerda, ao invés de disputarem as palavras de ordem do mar de cartazes, com cartazes e palavras de ordem que elevassem a compreensão política dos manifestantes e os unificassem, acharam que bastaria levar suas bandeiras. Embora a discriminação contra elas, seja pela direita, seja por manifestantes desinformados, antidemocrática, não desfaz o fato de que essa foi uma forma espontânea e errada de participar e disputar politicamente os rumos das manifestações.
Em outras palavras, em política, não basta descobrir a quem interessa o crime, e quem participa dele. É preciso saber combatê-lo com as armas certas.
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Wladimir Pomar é escritor e analista político.