'Cantos da Sereia' se insinuam para responder ao clamor popular
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- Valéria Nader, da Redação
- 27/06/2013
Após mais de duas semanas de manifestações e protestos, com o povo na rua como há muito não se via no país, começam a aparecer alguns dos resultados da insurgência da população contra o descaso com que vem sendo tratada.
Primeiramente, os “vândalos” viraram manifestantes, para governo e mídia, ante uma movimentação que não arrefeceu como se previa ou apostava. Posteriormente, prefeitos e governadores que só tinham planilhas de custo na cabeça estão agora fazendo concessões, seja revogando, seja protelando novos aumentos de tarifas. E, finalmente, foi a vez de o Executivo lançar o seu pacote de medidas – requentando propostas já existentes para as áreas de saúde e educação (a exemplo da aplicação de 100% dos Royalties do petróleo na educação, o que não vai nem mesmo arranhar o objetivo de organizações do setor, no sentido da aplicação de 10% do PIB na educação pública), retomando a discussão do endurecimento de penas para a corrupção e até mesmo propondo uma nova Constituinte para a Reforma Política – ideia já abandonada em meio à intensa onda de contestações que sofreu no meio jurídico.
Para cada uma dessas medidas anunciadas seria possível uma longa exposição analítica, mais elaborada, obviamente, do que aquela da qual se valeu o governo para anunciar sua nova linha de ação, e menos superficial que as notícias reverberadas na mídia corporativa. Editorial deste Correio, sob o título Dilma, o povo não está para brincadeiras, já fez uma primeira aproximação geral nesse aspecto, especialmente em sua ênfase quanto ao fato de que, sem mexer na dívida da União com estados e municípios e na Lei de Responsabilidade Fiscal, a intenção de aumentar gastos com educação, saúde e transporte não passa de mera ficção. Importa, no entanto, neste momento chamar a atenção para a orientação geral da nova linha de ação do governo, associado ao Legislativo e ao Judiciário. E, não menos importante, para a repercussão que vem sendo impressa para tal orientação, tanto à direita como à esquerda do espectro político midiático.
Neste sentido, nos grandes meios de comunicação, as manchetes dos jornais de quinta-feira, 27 de junho, falam em alto e bom som sobre o que está ocorrendo e o que pode vir pela frente. ‘STF manda prender deputado, e Senado endurece pena de corrupto’, diz a Folha de S. Paulo; ‘Congresso reage; Senado define corrupção como crime hediondo’, diz o Estadão. No jornal O Globo, aparece estampada a frase ‘PF procura Natan Donadon em Brasília’.
A conduta e postura conservadora da mídia comercial e corporativa é já perceptível até mesmo para aqueles que não se colocam em um campo nitidamente progressista. Quando não mais podiam taxar manifestantes de vândalos, passaram a exaltar o ‘caráter pacífico’ das manifestações, a partir de imagens que davam, inicialmente, o tom grandiloquente e harmônico das passeatas, mas que, ao final, e em rota de colisão com as chamadas enaltecedoras do ‘pacifismo’, se fixavam por horas em cenas isoladas de depredação. ‘Grupelhos de esquerda’, ‘avessos ao jogo democrático’, ‘superados pelo tempo’ se tornaram uma massa supostamente difusa, antipartidária e contrária ao surgimento de discursos e lideranças.
Quanto às palavras de ordem, corrupção, tomada a partir de uma referência moralista, foi o termo preferido e repetido à exaustão em uma imprensa que, mediante uma oposição descarrilhada e amorfa, se reafirma como o quarto poder a serviço da burguesia.
E é em torno a essa corrupção que estão agora se unindo, de modo cabal e notável, todos os poderes constituídos, associados à mídia comercial. É ela que, transformada em crime hediondo, ao lado da perseguição dos políticos corruptos, está se insinuando como o tom predominante das ações que serão tomadas para dar uma satisfação ao clamor popular.
Não é possível negar que a corrupção é uma realidade a ser de fato enfrentada no país. Afinal, é por aí que vai pelo ralo boa parte dos recursos que poderiam ser aplicados para aumentar o bem estar da população. O que se começa a perceber, no entanto, é a perseguição da batida trilha rumo à personificação do mal, mediante a falta evidente de vontade política para uma reflexão, debate e ações de amplitude, que inevitavelmente incidiriam em privilégios secularmente instalados em prol dos poderosos. Nada de mexer nos privilégios constituídos, em favor de direitos coletivos. Debater as intrincadas relações público-privadas, o berço da tão citada corrupção na política, e da consequente lesão ao patrimônio público, nem pensar. Promove-se uma caçada a um deputado do baixíssimo clero, condenado desde 2010 por formação de quadrilha e desvio de dinheiro, enviando-o para trás das grades, e fica tudo certo – aplaca-se a ânsia do povo por justiça!
Parece ter se aberto uma conjuntura em que não é mais absolutamente possível acreditar que o povo seja tão estúpido. Quer dizer que as instituições políticas, que até ontem não funcionavam, agora se erigem como exemplos de eficácia, conduta cívica, pautadas pela legalidade democrática? É crível tamanha virada na conjuntura política?
Está sendo armando cenário de falsa e oportunista sustentação institucional, acima do olhar para os legítimos clamores do povo por direitos. Que as mídias, movimentos e partidos que atuam ao lado da população, e que se colocam no campo de um debate verdadeiramente democrático e progressista, não caiam no canto do ‘engana que eu gosto’. Aquele que ecoa do governo, que passa a construir a autoimagem de quem saltou em sua aproximação da população e caminha para a ação efetiva; do Congresso, que adiou o recesso parlamentar e pôs em votação medidas há anos engavetadas; e do Judiciário, que insinua agilizar sua atuação em prol da justiça.
Ouvidos moucos à voz, não mais rouca, mas estridente, da rua é sinal de burrice, má fé e impostura política.
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Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.
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