Brasil: um novo ciclo de lutas populares?
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- Atilio A. Boron
- 27/06/2013
Os grandes protestos e manifestações no Brasil demoliram, na prática, uma premissa cultivada pela direita e assumida também por diversas formações de esquerda – começando pelo PT e seguido por seus aliados. Com a garantia do “pão e circo”, o povo – desorganizado, despolitizado, decepcionado por dez anos de governo petista – humildemente aceitaria que a aliança entre as velhas e as novas oligarquias continuassem governando sem maiores sobressaltos. A continuidade e eficácia do programa "Bolsa Família" assegurou o pão, e a Copa do Mundo (e seu prelúdio, a Copa das Confederações, em seguida, os Jogos Olímpicos) traria o circo necessário para consolidar a passividade política dos brasileiros. Este ponto de vista não só equivocado, mas profundamente reacionário (e quase sempre racista), foi destruído nos dias de hoje, revelando a curta memória histórica e o perigoso autismo da classe dominante e seus representantes políticos, que se esqueceram de que o povo brasileiro costumava ser o protagonista de grandes dias de luta. E os seus períodos de quietude e passividade se alternam com episódios de mobilização repentina que ultrapassam o estreito quadro oligárquico de um Estado superficialmente democrático. Basta lembrar as grandes manifestações populares que impuseram eleição presidencial direta em meados dos anos 80, que precipitaram a renúncia de Fernando Collor de Mello, em 1992, e a crescente onda de lutas populares que possibilitaram a vitória de Lula em 2002.
A passividade subsequente, incentivada por um governo que escolheu governar para os ricos e poderosos, criou a errônea impressão de que a expansão do consumo de uma ampla camada do universo popular era o suficiente para garantir indefinidamente o consenso social. Uma péssima sociologia se combinou com a traidora arrogância de uma tecnocracia estatal que, ao entorpecer a memória, fez com que os acontecimentos fossem tão surpreendentes como um raio em um dia de céu azul. A surpresa emudeceu uma casta política de discurso fácil e efetivista, que não podia compreender – e muito menos conter – o tsunami político que irrompeu nada menos que dos fãs da Copa das Confederações. Foi notável a lentidão da resposta do governo, desde os municipais até os governos estaduais, chegando ao próprio governo federal.
Especialistas e analistas associados ao governo agora insistem em colocar sob a lupa estas manifestações, assinalando sua natureza caótica, a sua falta de liderança e a ausência de um projeto político de mudança. Seria melhor que, em vez de exaltar as virtudes de um fantasioso "pós-neoliberalismo" de Brasília e pensar que os ocorridos estão relacionados com a falta de políticas públicas governamentais para um novo agente social, a juventude, dirigissem seu olhar para os déficits da gestão do PT e seus aliados, em uma ampla gama de temas cruciais para o bem-estar dos cidadãos. Pensar que os protestos foram causados pelo aumento de 20 centavos nas tarifas do transporte público em São Paulo é o mesmo que, em termos relativos, dizer que a Revolução Francesa ocorreu porque, como você sabe, algumas padarias na região da Bastilha tinham aumentado em alguns centavos o preço do pão. Esses propagandistas confundem o gatilho que desencadeou a revolta popular com as causas profundas que a provocaram, que estão relacionadas com a enorme dívida social da democracia brasileira, apenas atenuada nos últimos anos do governo Lula. O gatilho, o aumento no preço do bilhete de transporte urbano, teve eficácia porque, de acordo com alguns cálculos, para um trabalhador ganhando apenas o salário mínimo em São Paulo, o custo diário de transporte para ir e vir do trabalho equivale a pouco mais de um quarto da sua renda.
Mas isso só poderia desencadear a onda de protestos porque foi combinado com o estado deplorável dos serviços públicos de saúde, o viés classista e racista do acesso à educação, a corrupção do governo (um indicador: a presidente Dilma Rousseff demitiu vários ministros por este motivo), a ferocidade repressiva imprópria de um Estado que se reivindica como democrático e a arrogância tecnocrática dos governantes, em todos os níveis, diante das demandas populares que são despercebidas sistematicamente; caso da reforma da previdência social, ou da paralisada Reforma Agrária, ou das reclamações dos povos originários diante da construção das grandes barragens na Amazônia. Com esses assuntos pendentes, falar de “pós-neoliberalismo” revela, na maioria dos casos, indolência de espírito crítico; e pior, uma deplorável e incondicional submissão ao discurso oficial.
A combinação explosiva mencionada acima se soma ao crescente abismo que separa a comunidade da cidadania e da “partidocracia” governante, incessante tecedora de toda sorte de inescrupulosas alianças e transformismos que burlam a vontade do eleitorado, sacrificando identidades partidárias e destacamentos ideológicos. Não por casualidade todas as manifestações expressavam seu repúdio aos partidos políticos. Um indicador do custo fenomenal desta “partidocracia” – que consome recursos do erário público que poderiam destinar-se ao investimento social – é dado pelo que no Brasil é chamado de Fundo Partidário, que financia a manutenção de uma máquina puramente eleitoral e que não tem nada a ver com esse "príncipe coletivo", sintetizador da vontade nacional-popular, como disse Antonio Gramsci. Um único dado é suficiente: apesar de a população exigir maiores orçamentos para melhorar os serviços básicos que determinam a qualidade da democracia, o referido fundo passou de distribuir 729 mil reais, em 1994, para 350 milhões de reais em 2012, e está prestes a ser reforçado no decorrer deste ano. Esse número enorme fala eloquentemente do hiato que separa representantes de representados: nem os salários reais e nem o investimento social em saúde, educação, habitação e transporte tiveram essa progressão prodigiosa, experimentada por uma classe política completamente distante de seu povo e que não vive para a política, mas vive, e muito bem, da política, às custas do seu próprio povo.
Isso é tudo? Não, há outra coisa que causou a fúria dos cidadãos. O custo exorbitante no qual Brasília incorreu por conta da absurda "política de prestígio", que visa transformar o Brasil em um "jogador global" na política internacional. A Copa do Mundo da FIFA e os Jogos Olímpicos exigem enormes gastos, que poderiam ter sido utilizados de forma mais proveitosa para resolver os problemas que afetam as massas. Seria bom lembrar que o México não só organizou uma, mas duas Copas do Mundo, em 1970 e 1986, além dos Jogos Olímpicos em 1968. Nenhum destes fatos converteu o México em um jogador global da política mundial. Mais ainda, serviram para esconder os verdadeiros problemas, que irromperam duramente os anos 90 e perduram até os dias de hoje naquele país. De acordo com a lei aprovada pelo Congresso brasileiro, a Copa do Mundo tem um orçamento inicial de 13,6 bilhões de dólares, o que certamente irá aumentar à medida que se aproxima a abertura do evento, e estima-se que os Jogos Olímpicos exigirão um número ainda maior. Convém lembrar aqui uma frase de Adam Smith, quando ele disse que "aquele que é imprudente e insensato em lidar com as finanças familiares não pode ser responsável e sensato na gestão das finanças do reino". Quem em sua casa não dispõe de renda suficiente para garantir a saúde, educação e moradia adequada para a sua família não pode ser elogiado quando gasta o que não tem em uma festa caríssima.
A dimensão deste despropósito é representada graficamente, como observa com perspicácia o sociólogo e economista brasileiro Carlos Eduardo Martins, quando compara o custo do programa “Bolsa Família”, 20 bilhões de reais por ano, com os que devoram os juros da dívida pública: 240 bilhões de reais também anuais. Isso significa que, em um ano, os tubarões financeiros do Brasil e do exterior, crianças mimadas do governo, recebem como compensação por seus empréstimos fraudulentos doze planos equivalentes ao "Bolsa Família". De acordo com um estudo realizado pela Auditoria Cidadã da Dívida, em 2012, as despesas com juros e amortizações da dívida consumiram 47,19% do orçamento nacional; em contraposição, foram dedicados à saúde pública apenas 3,98%; à educação, 3,18%; e ao transporte,1,21%. Isso não é diminuir a importância do "Bolsa Família", mas ressaltar a gravidade chocante da sangria causada por uma dívida pública ilegítima desde a sua raiz, o que fez com que os banqueiros e especuladores financeiros sejam os principais beneficiários da democracia brasileira ou, mais precisamente, da plutocracia reinante no Brasil.
Assim, Martins tem razão quando observa que a dimensão da crise requer mais do que reuniões de gabinete e conversas com alguns líderes de movimentos sociais organizados. Ele propõe, ao invés disso, um plebiscito para a reforma constitucional para reduzir os poderes da “partidocracia” e realmente fortalecer a cidadania, ou para revogar a lei de auto-anistia para a ditadura, ou para realizar uma auditoria integral sobre a escandalosa gênese obscura da dívida pública (como fez Rafael Correa no Equador).
Também acrescenta que não basta dizer que 100% dos royalties decorrentes da exploração do enorme campo de petróleo do pré-sal serão dedicados, como Dilma Rousseff afirmou, à educação, na medida em que não diz qual será a proporção que o Estado captará das empresas petroleiras. Na Venezuela e no Equador, o Estado mantém a título de royalties entre 80% e 85% do que é produzido na boca do poço. E no Brasil, quem fixará essa porcentagem? O mercado? Por que não estabelecê-la através de uma democrática consulta popular?
Como pode ser inferido acima, é impossível reduzir a causa da manifestação popular no Brasil a uma eclosão juvenil. É prematuro prever o futuro dessas manifestações, mas uma coisa é certa: o "que se vayan todos!" da Argentina, em 2001-2002, não conseguiu estabelecer-se como uma alternativa de poder, mas pelo menos mostrou os limites que nenhum governo poderia ultrapassar, sob o risco de ser derrubado por uma nova revolta popular. Além disso, as grandes manifestações na Bolívia e no Equador mostraram que suas fraquezas e sua ignorância, tais como aquelas no Brasil de hoje, não impediram a derrubada dos governantes que apenas fizeram para os ricos. As massas que tomaram as ruas em mais de cem cidades no Brasil talvez não saibam para onde vão, mas na sua marcha podem acabar com um governo que claramente escolheu colocar-se a serviço do capital.
Brasília deveria olhar para o que aconteceu nos países vizinhos e tomar nota desta lição, que anuncia um aumento dos níveis de ingovernabilidade se persistir em sua aliança com a direita, com os monopólios, o agronegócio, o capital financeiro e com os especuladores que sangram o orçamento público do Brasil. A única maneira de sair desta é pela esquerda, potencializando não o discurso, mas feitos concretos, o protagonismo popular, e adotando políticas consistentes e coerentes com o novo sistema de alianças. Não seria exagero prever que um novo ciclo de lutas populares estaria começando no gigante sul-americano. Se assim for, o mais provável seria uma reorientação da política brasileira, o que seria uma notícia muito boa para a causa da emancipação do Brasil e de toda a nossa América.
Atilio A. Boron é sociólogo argentino.
Traduzido por Daniela Mouro, Correio da Cidadania.