Correio da Cidadania


A Amazônia sob Bolsonaro

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A situação da floresta Amazônica é dramática. Falo, Rodolfo Salm, daqui de dentro, de Altamira, que é hoje uma das principais áreas de desmatamento da região, vértice Norte do chamado “triangulo do fogo”, delimitado também por Novo Progresso, na BR-163 a Oeste, e São Felix do Xingu, município que abriga o maior rebanho bovino do Brasil, a Leste. Pode-se sentir a gravidade da situação no ar, no cheiro de fumaça e no aspecto do céu carregado de fumaça ao amanhecer e pesadamente vermelho ao anoitecer.

A dimensão clara desse processo está disponível em imagens em tempo real para quem quiser ver, continuamente fornecidas pela internet. Sugiro que o façam. Eu uso aplicativo Windy, gratuito, de fácil manipulação e compatível com celular, que em sua camada qualidade do ar/concentração de monóxido de carbono mostra, no momento, além das queimadas generalizadas em todo o sul da Amazônia, os incêndios no Pantanal e na Califórnia (EUA), na tundra e florestas da Sibéria (Rússia) e a intensa e incessante atividade industrial do nordeste da China.

Apesar de todos esses eventos dramáticos estarem ligados a um único processo, o aquecimento global (a poluição chinesa e os fogos dos desmatamentos na Amazônia mais como causas, e os incêndios no Pantanal, na Califórnia e na Rússia como consequência), os incêndios da Amazônia são especialmente dramáticos, pois estamos queimando uma quantidade fabulosa de informação biológica valiosíssima. Estamos deliberadamente destruindo um dos ecossistemas mais ricos em biodiversidade de todo o planeta com consequências desastrosas para todo o futuro da humanidade e a história da vida na Terra.

O desastre da devastação que se desenrola na Amazônia precede em muito o governo Bolsonaro, mas é evidente que foi dramaticamente acelerado com a sua chegada ao poder. Não se trata apenas da devastação da Amazônia. Seu governo funciona como um rolo compressor que busca destruir absolutamente tudo o que prezamos como civilizado em nosso país: os direitos trabalhistas, a educação, a arte, a cultura, a luta por justiça e igualdade social, o combate ao racismo, as nossas relações internacionais, o sonho de industrialização e, finalmente, toda proteção ao meio ambiente. É natural, portanto, que as diferentes pessoas, com interesses distintos, se preocupem com diferentes aspectos dessa tragédia generalizada representada pela chegada de tal homem ao poder.

Mas é fundamental que se entenda a dimensão da tragédia da devastação da floresta amazônica para a humanidade como um todo e para nosso futuro neste planeta e sua proporção em relação aos outros processos em curso. Basicamente, restabelecido um governo decente, seja através de impeachment ou novas eleições presidenciais, com muito esforço da sociedade, as perdas legais, institucionais e sociais desse período em que vivemos hoje podem ser totalmente revertidas até mesmo no espaço de uma geração. Por outro lado, cada hectare de florestas desmatado é perdido para sempre. Uma castanheira dessas de um metro e meio de diâmetro que se vê na mata, por exemplo, tem cerca de 300 ou 400 anos de idade. E para que ela cresça nesses séculos, é necessário que exista uma outra castanheira próxima, que lance uma semente até o local. A maior parte das espécies da floresta madura é assim.

Portanto, nas grandes áreas desmatadas, seriam necessários milênios para que a floresta hiperdiversa voltasse. Isso sem falar das milhares de espécies extintas para sempre e dos efeitos permanentes do desmatamento sobre o clima do país através da diminuição do regime de chuvas e o aquecimento global exacerbado pela enorme quantidade de carbono estocada na maior floresta tropical do mundo.

O ódio de Bolsonaro pelos ambientalistas e pelos índios vivendo seu modo de vida tradicional em seu território preservado é uma das características mais fundamentais do presidente da República, rivalizando apenas, possivelmente, com seu comportamento misógino. Todo o resto é roupagem de conveniência, a filosofia de extrema-direita, o apego à religião, o militarismo e anticomunismo, porque ele descobriu esse filão para crescer politicamente, e se as circunstâncias fossem outras, não duvido que assumisse outro discurso.

O impacto negativo de Bolsonaro sobre a Amazônia precedeu a sua posse, por criar um clima favorável aos desmatamentos. Bolsonaro teve uma vitória esmagadora aqui em Altamira, por pessoas ávidas por desmatar. Mesmo depois que ele sair do poder, o que esperamos para logo, vai ser difícil convencer as pessoas de que devem seguir a lei, e que desmatar e queimar a floresta é uma estupidez, um crime contra a humanidade.

É difícil listar todas as ações de Bolsonaro que colaboraram para o estado trágico das coisas na região Amazônica. Ele fez de tudo para desmontar os sistemas de vigilância e fiscalização existentes quando assumiu a presidência. Possivelmente a ação mais grave tenha sido sinalizar, ou manifestar claramente, que seria tolerante com os garimpos, desmatamentos e grilagem, deixando que seus apoiadores cuidassem da devastação.

Para começar, escolheu Ricardo Salles, um bandido condenado por crimes ambientais, para comandar o ministério do meio ambiente. Alguém que teve a coragem de manifestar em uma reunião de ministros sua intenção de aproveitar a pandemia do novo coronavírus para “passar a boiada” da desregulamentação ambiental. E um ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que nega o efeito das atividades humanas sobre as mudanças climáticas. Ou seja, nega o papel do Brasil junto ao mundo de zelar pela Amazônia em nome do clima global.

Salles não demorou a entrar em ação, desmontando todos os órgãos de fiscalização, demitindo seus responsáveis e substituindo-os por militares ou policiais. Fez de tudo para abrir as terras indígenas para a exploração mineral e só não conseguiu ainda fazê-lo devido à resistência de Rodrigo Maia.

Proibiu a destruição de equipamentos de madeireiros e garimpeiros flagrados em operações ilegais em terras indígenas e unidades de conservação, contrariando o que manda a lei. Cortou a verba para a fiscalização e combate de incêndios florestais, bem como das ações de combate às mudanças climáticas. Passou a alertar os infratores sobre operações de fiscalização, inviabilizando as prisões em flagrante. Anunciou planos para reduzir terras indígenas e unidades de conservação, o que por si só já incentiva invasões.

Ricardo Salles reúne-se sem o menor pudor com garimpeiros e madeireiros ilegais e desmatadores de toda ordem, aparelhou o IBAMA com pessoal tolerante ou favorável à degradação ambiental, puniu servidores que insistiam em cumprir suas obrigações realizando operações de fiscalização.

Inevitavelmente as taxas de desmatamento e a quantidade de queimadas aumentaram logo no primeiro ano de governo, mesmo com a economia estagnada. Quando isso aconteceu, Bolsonaro questionou os dados, demitiu o respeitadíssimo diretor do INPE, Ricardo Galvão. À medida que as evidências da aceleração da devastação não podiam ser ocultadas, mentiu descaradamente, culpando as ONGs pelos incêndios e até os índios, que são os principais responsáveis para preservação florestal na região!

Em 2020, com a economia provavelmente em recessão devido à pandemia, as taxas de desmatamento e o número de alertas de queimadas voltaram a crescer sensivelmente em relação ao ano anterior, que já havia sido muito ruim. O presidente criou o Conselho da Amazônia, passando para os militares parte das atribuições de fiscalização, o que foi desastroso, pois os militares mostraram-se ineficientes na fiscalização.

Recentemente, veio a público um vídeo constrangedor do presidente propondo a Al Gore uma parceria para a exploração da Amazônia junto com os EUA. Mal sabia que estava falando com um ambientalista. Mas o vídeo mostra como ele estava lá para vender a Amazônia para qualquer um que pudesse se interessar. Como se pode ver, é difícil listar todas as ações prejudiciais à floresta.

Não podemos esquecer do PL da Grilagem, projeto que pretende regularizar a posse de terras públicas invadidas, incentivando a ocorrência de novas invasões. Também há planos de construção de hidrelétricas e estradas por toda a bacia, abrindo áreas muitíssimo preservadas à devastação.

A mentira é uma das estratégias fundamentais de Jair Bolsonaro. Aparentemente, ele aprendeu a técnica com seu modelo norte-americano, Donald Trump. Exagere, minta descaradamente, repita a mentira e muita gente vai seguir acreditando em você. Parece que está funcionando. Uma pesquisa divulgada recentemente pelo Jornal Valor Econômico mostra que cerca de 30% da população culpa as ONGs e os índios pela devastação da Amazônia.

Recentemente, na durante a 2ª Cúpula Presidencial do Pacto de Letícia pela Amazônia, por videoconferência, o presidente declarou que “não há nenhum foco de incêndio, nem um quarto de hectare desmatado” na floresta amazônica: “É uma mentira essa história de que a Amazônia arde em fogo”. Isso enquanto a floresta é destruída e queima diante dos nossos olhos. Mais de 9,2 mil quilômetros quadrados de florestas foram destruídos nos últimos 12 meses (o equivalente a 12 vezes o município de São Paulo). Foram registrados 6.803 focos de calor na Amazônia em julho, segundo dados do Programa Queimadas, do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

É como falar que não há nenhum morador de rua nas nossas cidades, ou nenhuma criança em escola ou hospital desequipado e sem condições de funcionamento. E muita gente ainda acredita nele! Isso tudo constitui um crime sem tamanho, e certamente seria motivo para um impeachment.

Infelizmente, se por um lado o governo Bolsonaro é de uma incompetência criminosa na gestão do território amazônico, por outro a oposição não parece ter a real dimensão da importância e do drama da devastação amazônica. Para dar apenas um exemplo, já vi os dois principais candidatos de esquerda das últimas eleições presidenciais, Fernando Haddad e Ciro Gomes, defendendo a construção da hidrelétrica de Belo Monte. Não ouvi de nenhum, dos dois qualquer crítica ao projeto, que foi um dos maiores desastres da história da Região Amazônica, ampla e exaustivamente discutido por inúmeros ambientalistas ao longo dos anos. Eles, evidentemente, não estão à altura da responsabilidade de reorientar o país na tarefa de cuidar da floresta.

Marina Silva, que se apoia muito na bandeira ecológica, também está longe de ser a escolha ideal. Quando ministra do Meio Ambiente, Marina aprovou a pavimentação da BR-163 e a construção das hidrelétricas do Madeira. É fato que impôs uma série de condicionantes para a construção das barragens, mas elas não evitaram o desastre ecológico decorrente dessas obras, como ocorreu em todas as grandes hidrelétricas da Região Amazônica.

No caso da pavimentação da BR 163, é verdade que ela criou uma série de Unidades de Conservação ao longo da rodovia. O que não impediu que ela, hoje, tenha se tornado hoje um dos principais vetores de desmatamentos e queimadas da Amazônia. Com o Ministério do Meio Ambiente sob seu comando, o governo conseguiu reduzir substancialmente as taxas de desmatamento na Amazônia, mas Marina tinha a obrigação de saber que outros governos de outras tendências políticas inevitavelmente viriam, como de fato aconteceu, e que a obra que ela aprovou, uma vez sob um sistema de vigilância menos rígido, causaria imensos desmatamentos.

Assim, atribuo a ela parte da responsabilidade sobre caos de garimpos, incêndios e desmatamentos que observamos hoje na região. Além do mais, Marina tem uma visão neoliberal da conservação ambiental. Essencialmente, acredita que, se quisermos que a Floresta Amazônica sobreviva, precisamos fazer com que seja financeiramente rentável. Segundo esta visão, é necessário que a “floresta em pé” dê mais lucro para seu proprietário do que sua conversão em pastagens.

Infelizmente, a floresta não “pensa” assim. Ela é diversa demais, com árvores que crescem devagar demais para a exploração madeireira seja sustentável quando adotada nos moldes em que se desenvolve nas florestas temperadas. Mas foi pensando assim que Marina Silva apoiou a criação do Serviço Florestal Brasileiro, responsável pela concessão de extensas áreas de florestas públicas para a inciativa privada, que teria o direito de explorá-las através de atividades madeireiras por várias décadas. Hoje, o tal Serviço Florestal Brasileiro foi entregue ao Ministério da Agronomia da Ministra – a Rainha do Veneno. Imaginem vocês o estrago.

Indo mais à esquerda no espectro político dentre os candidatos das eleições presidenciais passadas, e usando ainda Belo Monte como parâmetro para avaliação dos candidatos, pesquisei para ver o que Guilherme Boulos já falou sobre o tema. Encontrei uma entrevista de Glenn Greenwald, em que ele pergunta a Boulos se ele, eleito presidente, teria aprovado a obra. Ao que Boulos respondeu: “Da forma como foi feito, não faria em hipótese alguma. O caso de Belo Monte foi feito sem discussão suficiente com os povos da localidade”. À primeira vista pode parecer um ponto de vista sensato, mas está errado! Dizer que não faria da forma que foi feito até José Serra já disse.

Para falar a verdade, até que houve bastante diálogo com os povos da localidade. O ponto não é esse. Nós sempre soubemos que não seria possível construir Belo Monte sem que resultasse em uma tragédia socioambiental. Por isso não queríamos Belo Monte de forma alguma! A resposta correta de Boulos, se estivesse ciente do ponto de vista dos índios, ribeirinhos e dos pesquisadores que se debruçaram sobre o tema dos impactos ecológicos e sociais de Belo Monte, bem como sobre sua inviabilidade energética e econômica, seria: “Não!”, “não aprovaria essa obra”.

Manuela D´Ávila, ainda pior que Boulos, em uma entrevista à BBC, defendeu a “integração asfáltica” Amazônia. Deveria saber dos impactos fortíssimos das estradas, especialmente das estradas asfaltadas, sobre a integridade da floresta. Como bem definiu Eliane Brum, a visão de Manuela D'Ávila mostra que “parte da esquerda brasileira continua cimentada com o século 20 (...) para ela, povos indígenas e ribeirinhos são apenas pobres (...) herdando o legado de Lula e de Dilma Rousseff” (...) “Suas ideias sobre a floresta e os povos da floresta expressam um projeto colonizador bem antigo. Uma prova de que não basta ser jovem para compreender seu tempo”, completou a jornalista.

A essa altura, o leitor já deve estar se perguntando como é possível ter alguma esperança para a região se, apesar de definir Bolsonaro como o pior que poderia acontecer à Amazônia, critico todo o espectro político? Na verdade, não são todos os candidatos de 2018 que estão equivocados. Enquanto escrevo, estou assistindo a live de Sonia Guajajara com Greta Thunberg, divulgada pela Mídia Ninja. Sonia, em sua fala, apela pela “reconexão com a mãe terra”, pela garantia dos modos de vida, da biodiversidade, da mudança no modelo econômico e dos padrões de consumo, e fala explicitamente na luta “contra o agronegócio, contra as grandes mineradoras, contra as grandes hidrelétricas, o garimpo ilegal, o desmatamento, as queimadas na Amazônia, no Cerrado e na Mata Atlântica”.

Para mim, é aí que está a esperança. Em lideranças como Sonia Guajajara ou Raoni. Ou seja, não há dúvidas de que precisamos da esquerda, mas não qualquer esquerda, da esquerda ecológica, conectada com a sabedoria indígena ancestral. Como diz a música de Caetano Veloso: “Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante (...) E aquilo que nesse momento se revelará aos povos, surpreenderá a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto, quando terá sido o óbvio”.

Danilo Di Giorgi é jornalista e tradutor.

Rodolfo Salm e Danilo Di Giorgi

PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará.

Rodolfo Salm
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