Cadê a árvore que estava aqui?
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- Rodolfo Salm
- 19/02/2021
Você provavelmente já se revoltou ao se deparar uma árvore imponente, uma árvore importante para você, perto da sua casa, do trabalho, ou presente em seu trajeto diário, cortada (ou "suprimida") ou sujeita à poda radical, como dizem como um eufemismo para "mutilada". Provavelmente também já notou como as árvores têm se tornado mais e mais raras, especialmente se você ainda vive no mesmo bairro onde passou a infância. Possivelmente você também se pergunta por que não são plantadas mais mudas, e até gostaria de participar de um mutirão de arborização de uma praça. Mas é provável que nem saiba como nem onde fazê-lo, apesar de já ter ouvido falar de um ou outro projeto interessante.
Refiro-me acima especificamente aos prováveis leitores deste artigo, publicado em um site que tem a esquerda intelectualizada como público-alvo. Não me refiro aos brasileiros de modo geral, porque há uma infinidade de pessoas capazes de imaginar os mais variados motivos, todos eles muito justificáveis dentro da sua visão de mundo, para se matar uma árvore: ameaça os fios, a calçada, o asfalto, os encanamentos, pode cair sobre uma casa, sobre um carro, sobre uma pessoa, derruba folhas, atrai insetos, acoberta criminosos.
Tente você mesmo plantar uma árvore em algum espaço público. Logo aparecerá um agrônomo ou engenheiro florestal dizendo que a espécie escolhida por você “não é adequada". Recorrerão a uma "análise técnica" (esta é a expressão-chave) para que a sua árvore não seja plantada, e para que outras tantas sejam derrubadas. É difícil entender a cabeça dessa gente, às vezes tenho a impressão de que eles temem que as árvores ganhem movimentos próprios, como aconteceu com a floresta das Ents, na Terra Média dos Senhor dos Anéis, e intencionalmente vandalizem a infraestrutura das cidades. Mas não é necessariamente assim. Tem muita gente plantando árvores nas praças do país afora e várias delas estão crescendo, florindo, frutificando e tornando nossa vida melhor.
Quando eu era criança, no início dos anos 1980, a figueira (Ficus benjamina) tornou-se a planta da moda de apartamentos das grandes capitais. Anos depois, provavelmente ficaram grandes demais para os vasos e ganharam as ruas das cidades. Ainda hoje são vistas em bairros nobres, como nos Jardins, em São Paulo. Acontece que, em boa parte do país, estas figueiras foram demonizadas como ameaças terríveis à infraestrutura, pois suas raízes buscam avidamente a água e podem eventualmente obstruir ou romper encanamentos. Também pode acontecer que as raízes dessas árvores levantem parte da calçada ou do asfalto das ruas. Só isso, para muita gente, parece ser motivo para que sejam eliminadas até o último indivíduo. O que não impede que sejam extremamente abundantes nas calçadas da rua Prudente de Morais, em Ipanema, Rio de Janeiro, um dos endereços mais caros do Brasil.
Nossas cidades estão perdendo suas árvores rapidamente, mas até nisso somos um país desigual. Os bairros mais nobres do Rio e de São Paulo seguem maravilhosamente arborizados, alguns cada vez mais, frequentemente com árvores das mesmas espécies que foram cortadas na frente da sua casa ou do seu trabalho por serem supostamente inadequadas, para não causarem danos a essa deusa, a infraestrutura.
As castanholas, também conhecidas como sete-copas, são outra espécie extremamente abundante no Rio, mas demonizada em outras paragens menos urbanizadas, como aqui em Altamira, interior do Pará, de onde escrevo esse artigo. "A raiz dela cresce demais", "vai quebrar a calçada". Árvores com raízes robustas e que crescem por grandes distâncias são acusadas de destruir a pavimentação. Por outro lado, aquelas de raízes reduzidas caem com facilidade.
As espécies de crescimento rápido são as que mais assustam os "responsáveis técnicos" pela arborização exageradamente tementes à infraestrutura. Por outro lado, as outras demoram uma eternidade para crescer, a vida passa ligeiro e queremos ver nossa tão sonhada arborização avançada. Não podem ficar muito altas, especificam os técnicos, nem derrubar muitas folhas. Se derrubarem frutos grandes, como mangas por exemplo, nem pensar! Podem amassar a lataria de um carro! Tem também as flores e pequenos frutos que podem manchar a pintura! Tem também aquelas árvores que atraem morcegos. Melhor não! Espinhos estão fora de questão. E se alguém se machuca? Na autobiografia de Woody Allen, ele diz uma coisa interessante: mais do que os outros, o inferno é o gosto dos outros.
A humanidade testemunha hoje uma crise sem precedentes em sua história, de perda de biodiversidade. As mudanças climáticas globais causadas pelo acúmulo de gases ricos em carbono na atmosfera, alterando o clima do planeta, são o aspecto mais preocupante deste processo. Menos atenção tem sido destinada às mudanças ambientais ocorridas no interior das cidades, onde a maioria das pessoas passa a maior parte das suas vidas. A perda de cobertura arbórea é um elemento extremamente preocupante, uma vez que as árvores possuem inúmeros efeitos positivos, como o melhoramento do microclima e da estética do meio urbano, contribuindo assim em vários aspectos da vida das pessoas na cidade.
A expectativa é de que, nas próximas poucas décadas, a temperatura das nossas cidades vá subir consideravelmente devido às mudanças climáticas globais. Nesse contexto, qualquer sombra que venha a reduzir a temperatura do asfalto, da calçada ou de uma parede é muito bem-vinda. O canto dos pássaros e dos insetos e o colorido das flores também têm um importante papel sobre a qualidade de vida dos cidadãos, comprovadamente reduzindo o estresse e o risco de depressão. Estes são outros benefícios da arborização que geralmente não são incluídos sob o termo "técnico", mas que devem ser melhor pesados na equação dos riscos e (enormes) benefícios da arborização.
Aqui em Altamira, acho graça quando eu planto uma muda de mangueira e alguém se preocupa com impacto dela sobre a calçada dentro de décadas! Esse é o tempo necessário para que ela possa ter mais de 80 cm de diâmetro e possa, talvez, eventualmente, causar algum dano ao meio-fio. Como estará o clima da Amazônia neste momento futuro? Já vivemos um aumento substancial da temperatura e da intensidade das secas de ano para ano e, quando essa mangueira crescer (se isso lhe for permitido), ela certamente já será muitíssimo mais importante para os usuários daquele espaço que uma calçada velha, que pode ser facilmente refeita ou consertada. Mangueiras, jambeiros e coqueiros, nas universidades públicas do país afora, fornecem alimento e bebida saudável para alunos, professores e funcionários. Mas poderiam fornecer muito mais, se as áreas disponíveis fossem amplamente arborizadas com espécies frutíferas.
Exóticas, como essas já citadas acima, e nativas, como a pitangueira, a jabuticabeira, o ingazeiro, o cajueiro, o cacaueiro e a goiabeira. Mas, inacreditavelmente, há quem seja contra. "Você tá morrendo de fome?", já ouvi me perguntarem. Certamente o dono da cantina prefere ver os alunos comprando coxinha e misto-quente do que pegando frutas de graça no pomar...
Quanto às recomendações dos comitês técnicos, aos manuais de arborização com suas distâncias recomendadas das novas mudas para os diferentes elementos da infraestrutura e sua lista de espécies aprovadas que não põe em risco a civilização, recomendo que se lembre que eles não estão escritos na rocha. O mundo está mudando rapidamente, e não é para melhor. Precisaremos cada vez mais de mais e maiores árvores, de preferência que nos alimentem e sejam acolhedoras para a biodiversidade. Se você conseguir uma parceria produtiva com os órgãos competentes, ótimo. Se não, plante assim mesmo. "Desobediência civil" é a palavra de ordem. Muita gente pelo mundo têm adotado técnicas de guerrilha, espalhando pelas cidades árvores banidas da lista das espécies aceitáveis, especialmente porque “crescem demais”.
Espalhe mudas por onde passar, enterre um caroço de fruta no canteiro de sua preferência. Se cortarem, plante de novo, uma coisa ou outra vai terminar sobrevivendo. E sempre vai valer a pena.
Rodolfo Salm
PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará.