Correio da Cidadania


A volta de Lula ao Planalto e o futuro da região amazônica

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Foto: José Cruz/ Agência Brasil

A verdade é que eu enjoei de escrever como o governo Bolsonaro é bandido, destruidor e tem feito de tudo para acabar com a floresta amazônica. Muita gente tem escrito sobre isso melhor do que eu e de forma mais detalhada. Posso até estar sendo precipitado, mas me arrisco a dizer que esse governo acabou, que a eleição de Lula é certa, que ele tomará posse e será o futuro presidente. Se eu errar alguma dessas previsões, me perdoem, mas é desse ponto que começo minha reflexão.

Quando Lula tomar posse, o país estará economicamente arruinado e o povo cheio de esperanças no presidente que uma vez (quase) acabou com a fome e o desemprego. Mas ele pouco poderá fazer no curto prazo. No entanto, a extrema direita não desaparecerá e fará de tudo para desestabilizar o novo governo. Isso posto, estará ele disposto a travar uma verdadeira guerra contra centenas de milhares de garimpeiros, grileiros e toda a elite econômica de uma área equivalente a mais da metade do território nacional?

Uma guerra necessária para pôr um freio na destruição acelerada da floresta que ora apavora o mundo, porque esse povo não vai aceitar recuar pacificamente. Acredito que nem Lula saberia responder a tal questão. E caso estivesse disposto a enfrentar essa gente, eu mesmo também acharia prudente não o dizer antes do tempo, para não pôr em risco a eleição que estou dando como certa.

Porém, algumas declarações recentes sobre a região amazônica me deixaram especialmente preocupado. Estão todas em uma entrevista que ele deu à rádio Band News de Manaus. Em 80% da entrevista, falou coisas certíssimas e que não vêm ao caso comentar agora porque já declarei meu voto nele no primeiro turno e estou escrevendo para outros que também certamente já tomaram a mesma opção.

Vamos aos problemas:

Lula defendeu a reabertura e pavimentação da BR-319, que ligaria Manaus a Porto Velho, em Rondônia. Empresários teriam dito que essa obra é fundamental para o desenvolvimento da Zona Franca. Disse que, se feita com todo cuidado, incluindo até pontos de travessia de animais, teria um impacto ecológico desprezível. Ecologistas têm pânico da ideia de pavimentação da estrada, pois ela corta uma das áreas mais preservadas da Amazônia, com florestas prístinas e povos isolados, e ao mesmo tempo próxima de uma potente frente de colonização, que se estende por toda a região sul da floresta.

Ao defender que a obra seria viável, se feita "com todo cuidado", Lula incorre no mesmo erro que cometeu lá atrás, em seu primeiro governo, quando avançou com a pavimentação da BR-163 enquanto criou inúmeras unidades de conservação no seu entorno, momentaneamente contendo os desmatamentos. O erro foi ignorar o fato de que os ventos políticos sempre mudam e a governança que uma hora é forte sempre pode ser enfraquecida. Não precisou nem o PT sair do governo e, sob Dilma, os desmatamentos se alastraram ao longo da BR-163.

Mais tarde, com Bolsonaro, a região se tornou o principal foco de desmatamento na Amazônia. O estado atual de calamidade, evidentemente, é responsabilidade do atual governo, mas precisamos admitir que também é, em boa parte, culpa de quem investiu na pavimentação daquela estrada em primeiro lugar. Se Lula, em seu provável próximo governo, persistir com a ideia de recuperar a BR-319, cedo ou tarde a mesma coisa acontecerá.

Resta perguntar àqueles empresários: se a estrada pavimentada é tão importante para a Zona Franca, como ela já chegou tão longe sem este acesso? Assim, em nome da preservação da floresta que está sendo devastada rapidamente neste momento, não poderia seguir sem o acesso ecologicamente perigoso?

Outro ponto extremamente problemático da entrevista foi sua defesa das hidrelétricas do Rio Madeira e de Belo Monte, no Rio Xingu. Só não arranquei os adesivos da campanha de Lula do carro porque são muitos e um amigo que entende das sutilezas da política me alertou de que Lula não poderia fazer diferente neste momento mesmo que estivesse arrependido ou não estivesse disposto a construir novas grandes hidrelétricas na Amazônia. “A campanha é hora de defender suas administrações anteriores e ponto final”.

Foi aí que Lula disse que os ambientalistas o criticavam por essas obras pois eram contra hidrelétricas de modo geral. Portanto, seriam contra todas as hidrelétricas em qualquer lugar e em qualquer situação, comparando a divergência àquela entre torcidas de times de futebol rivais. Nem preciso argumentar que cada obra deve ser avaliada em seu contexto específico. Lula gosta de contar uma história para ridicularizar as preocupações dos ambientalistas. Diz que na época da construção de Itaipu, os ecologistas alertavam que as barragens mudariam o eixo da Terra e o clima da região. O fato é que foram construídas tantas barragens em altas latitudes, especialmente no hemisfério norte, que mudamos levemente a distribuição de massa do planeta, acelerando em uma fração de segundo o movimento de rotação da Terra. Não que haja um problema em dias minusculamente mais curtos, mas o fato ilustra a magnitude das transformações que estamos produzindo. Lula entendeu tudo errado e segue repetindo a história como se os ecologistas fôssemos todos estúpidos.

Sobre o clima na região Sul, quem acompanha as secas recorrentes na região pode dizer com segurança que estavam errados ao dizer que Itaipu traria mudanças climáticas? A construção da hidrelétrica certamente foi a causadora de grandes desmatamentos no Paraná que foram, sim, responsáveis por mudanças climáticas. Itaipu certamente teve seu papel no desenvolvimento do país, e ainda tem. Mas podemos falar o mesmo das grandes hidrelétricas na Amazônia construídas sobre o seu governo? Ainda mais agora que novas tecnologias de geração de energia surgem e ficam mais baratas a cada dia?

Sobre a construção das hidrelétricas do Madeira, Lula disse que chamou o maior especialista em sedimentos do mundo, vindo da Índia, que lhe garantiu que as hidrelétricas poderiam ser feitas sem problema nenhum. Mas para quê chamar alguém da Índia se temos gente altamente qualificada nas nossas universidades? Muitas das quais ampliadas ou criadas pelo próprio Lula, preciso destacar. Talvez porque os nossos pesquisadores já condenavam a construção das hidrelétricas do Madeira àquela época.

Eu não sou especialista em sedimentos de rio, mas testemunhei como o lago de Belo Monte se tornou lamacento em pouquíssimo tempo, sendo que o Xingu é um rio de águas claras com pouco sedimento, o que faz com que o processo lá seja bem mais lento do que no Madeira.

Imagine tal processo multiplicado várias vezes nos rios de água branca (que tem esse nome justamente pela abundância de sedimentos) ... A prova das consequências negativas dessa construção sobre a dinâmica de seguimentos do rio está nas enchentes observadas nos últimos anos na cidade de Porto Velho. O rio, cheio de sedimentos, não dá mais conta de sua vazão máxima e transborda abundantemente sobre a cidade ribeirinha.

A energia hidrelétrica pode parecer barata, mas quem paga o preço são as populações mais vulneráveis nas cidades diretamente atingidas pela construção das barragens.

Lula ainda diminuiu a preocupação com os grandes bagres que tiveram suas rotas migratórias interrompidas pela construção das barragens. Disse que os peixes poderiam ser criados em cativeiro pelos antigos pescadores, uma das grandes mentiras divulgadas por barrageiros. Para começar, ribeirinho não é criador de peixe. Depois, experimente criar uma pirarara ou um surubim em cativeiro. É a coisa mais difícil do mundo. Impossível em escala comercial. Então não vamos falar bobagem. Se Lula não está preocupado com os bagres, que pelo menos diga claramente.

O mais doído para mim foi acompanhar o trecho da entrevista em que o ex-presidente falou sobre Belo Monte, pois acompanhei de perto a luta contra a barragem e seu processo de construção. Vivo hoje as consequências nefastas da obra, pois moro literalmente na beira do lago de Belo Monte. Em primeiro lugar, Lula disse que conversou e fechou acordo com todos, com ribeirinhos, com o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e “até com o bispo” antes de decidir dar início à obra de Belo Monte.

É verdade que conversou com muita gente, mas não fechou acordo com ninguém desses citados. Ouviu muitas críticas e no final decidiu que ia fazer a barragem e pronto. Lula conversou com o bispo Dom Erwin Kautler só para dizer que a hidrelétrica não nos seria “enfiada goela abaixo”, como nos relatou o bispo. Só para depois fazer exatamente isso. Quando mostramos essa declaração recente de Lula aos nossos companheiros de luta, os ribeirinhos se revoltaram: “Eu não fiz acordo nenhum com ele”. A mesma coisa disse o pessoal do MAB. Cá para nós, quando quer, Lula pode ser bastante mentiroso (não tanto quanto Bolsonaro, caso algum minion queira tirar essa frase de contexto). E vai ter que mudar isso aí se quiser reverter o estado de bandidagem em que se encontra a região amazônica hoje em dia.

Lula lembrou que Belo Monte foi construída com um lago a fio d'água, que a área alagada não é muito maior do que aquela já alagada anualmente pela cheia natural do rio. É verdade. Mas não disse que a interrupção do ciclo de subida e descida das águas teria efeitos profundos sobre a ecologia de mais de uma centena de quilômetros de rio. Para começar, aquelas árvores que passavam parte do ano debaixo da água e outra parte no seco, morreram, apodreceram e tornaram a qualidade da água péssima.

Já falei sobre o acúmulo de sedimentos que transformou o fundo do rio em um imenso lamaçal. A Volta Grande do Xingu hoje em dia sofre com a falta d'água, prejudicando a navegabilidade e os processos naturais necessários à sobrevivência dos peixes e tracajás. Isso para não falar dos impactos sociais, que foram terríveis, principalmente sobre os mais vulneráveis, como crianças entregues à prostituição, por exemplo. Hoje em dia Altamira tem uma das maiores taxas de criminalidade do país. A cidade foi invadida por gangues como o Comando Vermelho na época de Belo Monte, que seguem firmes por aqui. Altamira tem um dos maiores índices de suicídio de jovens do país. Lula disse na entrevista que não sabe de nada disso porque desde que deixou a presidência parou de acompanhar o caso. Mas os problemas de Altamira volta e meia aparecem nos principais jornais impressos e na televisão. Se Lula parou de acompanhar notícias desde que deixou o Planalto, como pode se habilitar como candidato à presidência? Claro que não é verdade. Soltou mais essa para não precisar falar dos problemas que sabe ter criado.

Altamira era uma cidade feliz diante de um rio vivo e limpo. Hoje, a cidade é triste, morta e sem perspectiva. O mais irônico é que aqueles que criticavam a barragem na época de sua construção são os mesmos que estão defendendo a eleição de Lula nesse momento. Todos os que defendiam e foram beneficiados por Belo Monte, estão com Bolsonaro. Lula sempre foi um desenvolvimentista, enquanto Bolsonaro é um bandido da pior espécie. Por isso estamos com o primeiro. Agora, será ele capaz de controlar a bandidagem alucinada que tomou conta da Amazônia? Ele vai fazer a reforma agrária de que tanto precisamos? Ou vai permitir a construção do Ferrogrão, cujas terríveis consequências já foram bem descritas por Telma Monteiro? Vai acabar com os garimpos, zerar os desmatamentos e pôr um controle rígido sobre a mineração? Ou vai se unir novamente às elites locais, nos deixando mais uma vez uma ou outra sobra?

Seria muito fácil para ele ser muito melhor que o governo atual “em comparação” sem, no entanto, fazer as mudanças profundas necessárias a uma verdadeira transformação. Ele vai se conformar com essa opção politicamente mais simples? Difícil responder. Só o tempo dirá. Até o dia da posse seguirei torcendo para que dê tudo certo. Depois, colocando pressão para que ele, em sua última chance na vida, cumpra o seu destino de nos ajudar a realmente mudar esse país para melhor. Se quiser, de fato, fazer isso, terá de desafiar grandes forças econômicas e terá de travar uma verdadeira guerra na Amazônia. As elites locais serão, sem dúvida, uma força potente pela devastação, mas a comunidade internacional também pode se unir a ele em uma espiral ecológica virtuosa. Espero que tenha vontade e coragem para tal.


Rodolfo Salm é PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará.

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Rodolfo Salm

PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará.

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