Guerra mundial no Xingu?
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- Rodolfo Salm
- 13/06/2008
Apesar de Altamira estar a "apenas" 450 quilômetros em linha reta de Belém, são necessárias quase 24 horas de viagem de ônibus da capital paraense até lá. E as companhias aéreas locais cobram pelo trecho o mesmo preço de passagens para o Rio ou São Paulo, a mais de 2 mil quilômetros dali. Então, a despeito da grande vontade que tive de comparecer à manifestação dos povos indígenas do Xingu contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, resolvi ficar em Belém e acompanhar o seu desenrolar de casa, pela mídia e pelas notícias trazidas pelos amigos que lá estiveram. No artigo que publiquei no dia 21 de maio, após o incidente envolvendo os índios armados de facões e o engenheiro da Eletrobrás, defendi que o corte em seu braço direito foi provavelmente acidental. Escrevi que ele obviamente não foi "atacado a golpes de facão" como noticiou em peso a grande imprensa, pois, se o fosse, teria inevitavelmente morrido, e que o corte foi uma ameaça simbólica, ou uma conseqüência não intencional.
De uma forma ou de outra, o episódio foi providencial para que a manifestação contra a hidrelétrica ganhasse o espaço que ganhou, por alguns poucos dias, na imprensa nacional (que ignora a problemática sócio-ambiental da usina) e internacional. Defender hidrelétricas abertamente não é problema para a grande mídia, mas as notícias têm seu espaço regulado também pelo grau com que podem ser bombásticas. A Eletrobrás também imediatamente minimizou o ocorrido. Após a fase de condenação aos índios, o assunto rapidamente morreu, como parece ser do interesse dos defensores do represamento.
Na imprensa, uma das declarações não totalmente certas, dada por defensores dos índios, foi a de que os Kayapó teriam ficado "muito tristes e arrependidos" com o ocorrido. É certo que alguns índios realmente reprovaram a agressão, mas soube também que vários dançaram em seguida, levando como troféus os trapos da camisa rasgada do representante da Eletrobrás e seguiram dançando festivamente noite adentro.
A imprensa explorou o episódio de forma rasteira. Quando parte dos Kayapó que estiveram no encontro da aldeia Gorotire chegaram à sede da FUNAI da cidade de Redenção (a cidade mais próxima de sua aldeia no Sudeste do Pará), uma equipe do Fantástico já os aguardava para uma entrevista-surpresa. O cacique Ireô disse então, em uma entrevista algo confusa (certamente pelo choque de culturas), que ali estavam "índios de verdade, não de mentirinha". Em algum ponto, o cacique disse ainda que o governo estava provocando ali uma "guerra mundial".
A expressão "guerra mundial", fisgada do meio da entrevista, foi usada por um editorial do jornal Estado de S. Paulo para compará-lo, ironicamente, a "um indignado chefe de Estado mandando recado a um colega persona adversa". A partir daí, o redator do texto muda de assunto e ataca a questão da luta pela demarcação contínua de Raposa Serra do Sol, em Roraima, que não tem nada a ver com a questão dos Kayapó no Pará, passando então às invasões da Funasa por outros índios, em Cuiabá. E defende o general Augusto Heleno, quanto à ameaça, real ou imaginária, à soberania nacional representada pelas Terras Indígenas. Para concluir, o editorial pergunta: "não estaria essa idéia (da formação de nações independentes dentro do território brasileiro) bem ilustrada na advertência de guerra mundial do cacique Kayapó?".
A resposta é fácil para quem conhece minimamente os Kayapó: não. Isso é o que dá botar uma repórter, despreparada, que não conhece nada sobre aqueles índios, para falar de surpresa com o cacique, honestamente empenhado em passar o seu recado, mas ingênuo quanto ao jogo maior de poder e interesses. Explico: os Kayapó possuem algumas gírias bastante particulares em português, usadas para conversar com os brancos. "Guerra mundial", por exemplo, significa somente uma grande confusão. Um índio pode muito bem dizer assim: "vai ter guerra mundial se minha mulher me ver com aquela menina!". E é justamente esse o sentido da expressão no recado do cacique: que, se o governo insistir na construção das hidrelétricas haverá muita briga, confusão, resistência. E não que os Kayapó pretendem proclamar a independência de sua "nação" bem no meio do território brasileiro, como na troca de bolas do Estadão com o objetivo de confundir o leitor, desviando-o da questão central, que são os impactos ecológicos e sociais da construção das hidrelétricas no Xingu.
Outro problema do editorial foi dizer que a reação dos índios aconteceu quando o engenheiro "lhes dava informações sobre o projeto de construção da Usina de Belo Monte, mostrando o quanto se tentava reduzir o inevitável impacto ambiental da obra".
Ora, o impacto só é inevitável se a obra for inevitável. Imagine o leitor que alguém de repente chegue e lhe diga: "Olha, acostume-se com a idéia de que vamos ocupar todo o seu jardim com uma obra permanente, mas que trará menos malefícios do que aquele projeto anterior que iria destruir parte da sua casa também". Você gostaria? Eu não. Os índios não querem informações. Não querem a obra e ponto final. Basicamente, o engenheiro disse a eles que é bom que se acostumem com a idéia, porque a obra vai acontecer de uma forma ou de outra. E foi essa afirmação que enfureceu os índios.
Nunca estive na cidade de Altamira, mas pretendo conhecê-la em breve. Sei que está localizada no centro no Pará e na beira do rio Xinguzão, que é muito interessante e relativamente pequena, com cerca de 50 mil habitantes. E dizem que vive ali muita gente legal e engajada na questão da preservação do meio ambiente. A cidade teve sua origem nas missões dos jesuítas, na primeira metade do século XVIII. Quando a Rodovia Transamazônica (BR-230) foi aberta, na década de 1970, fez um significativo e estratégico desvio no trecho entre Marabá (a leste) e Itaituba (a oeste), para interceptá-la mais ao norte, ambas as cidades vizinhas estando a centenas de quilômetros de lá.
Altamira ainda não dispõe de acessos pavimentados e a única rodovia utilizada para chegar lá é a Transamazônica, ainda não asfaltada naquele trecho.
O mapa do município de Altamira é um imenso retângulo de orientação norte-sul, acompanhando, rio acima, todo o curso do rio Xingu a partir da cidade propriamente dita até o limite com o estado do Mato Grosso, ao sul. Dali para frente é território indígena, e hoje também de muitos ribeirinhos e de alguns poucos fazendeiros que avançam rapidamente por estradas clandestinas mata-adentro. Segundo a Wikipédia, "Altamira possui uma área de 161.445,9 km², o que a torna o maior município do Brasil e do mundo em extensão territorial", maior que o estado do Acre ou do Ceará, que a Grécia ou o Nepal. Esta disparidade na extensão territorial explica-se pela particularidade de que os povos indígenas que vivem ao longo do Xingu não vivem em cidades.
Além de garantir o "aproveitamento energético" do Xingu, a seqüência de hidrelétricas planejada ao longo deste rio também pretende estabelecer um eixo de colonização ao longo do município no sentido norte-sul, quebrando este imenso bloco de territórios indígenas. Daí o grito de guerra dos índios.
Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi.
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