Círculos e retas
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- Rogério Grassetto Teixeira da Cunha
- 19/06/2008
Tem circulado na internet um excelente vídeo denominado "A história das coisas", divertido, muito esclarecedor e acentuadamente crítico com relação ao nosso sistema de produção e consumo. Mostra, entre outros aspectos, que é absolutamente impossível rodarmos indefinidamente um sistema linear (como o do nosso modelo atual) em um planeta finito. Analisemos isto um pouco mais a fundo.
Primeiro, devemos lembrar que o planeta Terra interage o tempo todo com o seu entorno (recebemos continuamente energia do Sol e a reenviamos na forma de calor e luz refletida). É, portanto, um sistema aberto. De maneira simplificada, podemos dizer que há dois tipos gerais de fluxos de elementos nos sistemas abertos: circular e linear. Segundo o vídeo, o problema ecológico fundamental ocorre porque tratamos como se fosse linear um fluxo que só pode funcionar de maneira circular.
Nos fluxos lineares, elementos entram e saem do sistema (não necessariamente os mesmos) exatamente na mesma quantidade. É o que ocorre, por exemplo, com a energia no nosso planeta. Praticamente toda a energia que existe por aqui chega de fora, do Sol. Após sua entrada, ela flui pelo sistema terrestre, modifica-se e sai (na forma de calor irradiado pelo planeta e da luz refletida) exatamente na mesma quantidade que entra.
Não fosse assim, o planeta esquentaria indefinidamente ou teria que haver algum "depósito" constante da energia. Em última análise, praticamente tudo o que acontece por aqui – chuva, ventos, vida – tem origem no fluxo constante de energia solar. Em escala planetária, este é o único fluxo linear que existe. Porém, para um fluxo linear manter-se em um sistema aberto, precisa de uma fonte externa constante alimentando-o; se ela "secar", o fluxo obviamente cessa. Com isso, cessa também tudo que era movido ou que dependia deste fluxo. Em escalas menores, temos outros fluxos lineares.
Por exemplo, seres vivos podem ser considerados sistemas abertos mantidos por fluxos lineares de energia e materiais. Alimentos entram e subprodutos saem (ou são depositados em algum órgão). Mas vale a mesma regra básica. Se o ingresso das fontes (alimento e água, por exemplo) cessa, o fluxo cessa e o ser morre.
No outro tipo de fluxo, o circular, podemos encaixar praticamente todos os outros fluxos existentes em escala planetária. Neles, os componentes estão em perpétuo movimento (entendido não só como deslocamento, mas também de transformações químicas e de estados físicos), mas sua quantidade total permanece fixa. Não há nem entrada e nem saída. O exemplo mais claro disto é o ciclo da água. Simplificando ao extremo, a água evapora (dos seres vivos, do solo e de rios, lagos, oceanos e outros corpos d’água), condensa-se na forma de nuvens e cai sobre os oceanos e a terra. A água que cai na terra vai parar nos corpos d’água, nos seres vivos ou evapora. A que vai parar nos rios, lagos ou depósitos subterrâneos irá, de uma forma ou de outra, parar nos oceanos ou evaporar também. E o ciclo prossegue, indefinidamente, impulsionado pela energia do sol, responsável pela evaporação e pelos ventos.
Mas o que acontece se transformarmos um fluxo inerentemente circular em linear? A resposta é simples: colapso. Tomemos o exemplo acima. Suponhamos que, de repente, por alguma razão qualquer, deixasse de haver evaporação. Toda a água que estivesse nas nuvens iria acabar se precipitando de uma forma ou de outra e não haveria mais a formação de nuvens. Então, os rios iriam aos poucos secar e lançar toda a água nos oceanos. E a água dos lagos e depósitos subterrâneos iria também aos poucos parar nos oceanos sem ter reposta. E no fim teríamos apenas os mares. O fluxo circular foi transformado em linear e deixou de existir assim que a "fonte secou". Suponhamos outra situação. De repente a temperatura se eleva constantemente acima dos 100ºC. O sistema colapsa também, pois toda a água evaporaria, mas não poderia mais circular pelo sistema. Teríamos apenas um monte de nuvens ou a desintegração das moléculas de água (exatamente como ocorreu com o planeta Vênus).
Então, parece óbvio, ou deveria parecer, que, em sistemas finitos como o planeta Terra, só há uma opção de fluxo que seja duradoura (excetuando-se o caso da energia, que vem de fora): o circular. Se um determinado fluxo circular repentinamente torna-se linear, ele irá durar até que a ponta da fonte seque, pois ela é sempre finita.
Pois bem, e o que nós estamos fazendo com os recursos naturais da Terra? Ao criarmos a sociedade de consumo e com ela a necessidade de consumirmos cada vez mais e mais, nos intrometemos nos fluxos circulares do planeta e criamos artificialmente, para a nossa sociedade, um fluxo linear. Tiramos elementos de uma ponta (pela extração de recursos naturais não renováveis, como minérios e petróleo), os transformamos em produtos e invariavelmente os depositamos em outra ponta (lixo). Por outro lado, ao usarmos os recursos renováveis (basicamente seres vivos) a uma taxa muito maior do que a sua capacidade de reposição, também estamos linearizando seus ciclos reprodutivos. Tudo parece funcionar muito bem na aparência, mas estes fluxos duram enquanto as fontes dos recursos durarem. Depois, fatalmente virá o seu colapso.
O colapso do sistema global devido a este fluxo linear não virá de uma hora para outra, mas irá anunciar-se aos poucos. E isto já está acontecendo. Várias espécies animais e vegetais superexploradas já foram extintas ou são muito raras e estão próximas da extinção. Diversos elementos utilizados na fabricação de componentes eletro-eletrônicos têm estoques que acabarão em pouco tempo. Alguns em muito pouco tempo.
O térbio, utilizado em algumas lâmpadas fluorescentes, por exemplo, pode sumir já em 2012. O tântalo, necessário para a fabricação dos celulares (um dos maiores ícones da sociedade de consumo) e de lentes de câmeras fotográficas, pode sumir dentro de 20 anos. Já o háfnio (usado em chips) e a prata podem durar um pouco mais: 10 anos; chumbo, 8. antimônio (empregado em medicamentos), 13; estanho, 17; urânio, 19 (Informações extraídas do artigo "Earth's natural wealth: an audit", do volume 2605 da revista New Scientist).
Quanto ao deus dos recursos não-renováveis, o petróleo, por maior que seja a quantidade de novos campos descobertos, cedo ou tarde teremos que nos deparar com o seu esgotamento. Será que só quando estes elementos realmente terminarem que iremos dar-nos conta da insanidade em que estamos metidos? Temo que sim, a julgar pelo desprezo que demonstramos ter pelos vários recursos renováveis que já esgotamos, como as centenas de espécies já extintas por nós.
Rogério Grassetto Teixeira da Cunha é biólogo e doutor em Comportamento Animal pela Universidade de Saint Andrews.
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