O valor das mariposas
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- Rogério Grassetto Teixeira da Cunha
- 12/09/2008
Mês passado, retornei depois de muito tempo à pequena e simpática Saint Andrews, na costa leste da Escócia, cidade onde fiz meu doutorado. Fiquei hospedado na casa de meu ex-orientador, Richard Byrne. Estive lá para participar de um congresso, mas aproveitei a ocasião para matar as saudades de um local que me marcou muito. Parecia que tinha saído ontem da cidadezinha. Estava tudo lá, as ruínas medievais, as casas antigas, as lojas onde costumava fazer minhas compras e a bela paisagem costeira.
Eu já sabia que o Dr. Byrne tinha como hobby a observação de aves, algo comum entre europeus e norte-americanos e que aos poucos começa a difundir-se por aqui – infelizmente em um ritmo bem menor do que aquele com o qual essas criaturas são dizimadas. Eu apenas achava pitoresca a sua extrema dedicação ao assunto.
Pois bem, durante esta visita ele contou-me que adquirira um novo passatempo, ainda mais exótico, e sem abandonar o antigo: a observação de mariposas. Descobri ainda que este hobby, à primeira vista pouco usual, é razoavelmente difundido no Reino Unido, com grupos de aficionados, listas de discussão na internet, palestras e excursões ao campo. O professor mostrou-me, entusiasmado, um livro com ilustrações de todas as espécies conhecidas das ilhas britânicas, acompanhadas das respectivas descrições, destacando aqui e ali alguma mais notável por seu colorido. Os observadores de mariposas geralmente posicionam uma armadilha luminosa durante a noite e de manhã analisam as que foram pegas, soltando-as em seguida.
E ele estava levando muito a sério o assunto. Numa das noites em que estive lá, instalou a armadilha e de manhã mostrou-me algumas de suas capturas. Já tinha também diversas fotografias das que considerava mais interessantes. Em princípio, tudo me pareceu um tanto quanto bizarro. Quando lhe perguntei sobre o porquê de escolher mariposas, respondeu: "porque fazem parte da biodiversidade britânica".
À primeira vista, a partir dos nossos preconceitos, esta seria uma atividade excêntrica de britânico caricato. Será mesmo? Na verdade não. Refletindo depois sobre o assunto, percebi que era eu quem estava errado, que na verdade aquele era um hobby interessante e que o equívoco era mais imperdoável ainda sendo eu um biólogo ambientalista. Por que o preconceito? Por que não observar não apenas mariposas, mas também morcegos, cogumelos, joaninhas, pulgas, caranguejos ou o que quer que seja?
A resposta dele e meu estranhamento inicial espelham de certa forma as nossas diferenças culturais. Eu já havia notado que hoje em dia os britânicos (e imagino que os europeus em geral) valorizam bastante o pouco de biodiversidade que têm. Há pouco de natureza conservada em estado original. Aliás, mesmo o original não era nem de perto tão diverso quanto o Brasil ainda hoje. A enorme maioria dos seus ambientes naturais já foi bastante alterada por milênios de ação humana. Mesmo assim, nos fins de semana, milhares de pessoas lançam-se avidamente em caminhadas a pé pelos campos e (poucas) florestas. E isto com o tempo que estiver – sol, chuva, neve, vento. As caminhadas são facilitadas por mapas, roteiros, trilhas pré-estabelecidas, informações.
O mesmo empenho e prazer se dão com seus hobbies de observadores. Há poucas espécies de aves por lá, em comparação com a diversidade que temos no Brasil. No campus universitário da USP, na zona oeste de São Paulo, por exemplo, são encontradas aproximadamente 60% do número de espécies de aves de toda Grã-Bretanha. São poucas, mas os europeus sabem muito sobre cada uma delas e as observam intensamente, com prazer. O mesmo acontece com as mariposas. Afinal, como bem disse meu professor, elas são "parte da biodiversidade" deles.
Já nós, por outro lado, damos pouco valor ao muito que temos. Temos uma enorme riqueza e diversidade de ambientes e, em alguns deles, uma quantidade razoável de áreas preservadas. Temos a maior biodiversidade do planeta! E, no entanto, ainda valorizamos pouco esta riqueza toda. Como nação, temos até agora trilhado um caminho de desenvolvimento que, a continuarmos neste rumo, fatalmente nos levará também a uma situação de algumas ilhas de locais (mais ou menos) preservados no meio de um mar de agricultura e alteração, além de um meio ambiente bastante empobrecido.
As razões para estas diferenças são muitas, históricas, culturais, educacionais e comportamentais. Tão complexas que não cabe aqui alongar-me sobre elas. No entanto, é bom não esquecer que a devastação ambiental como um todo tem a ver diretamente com o modelo que ainda hoje é defendido (consciente ou inconscientemente) pela grande maioria dos cidadãos daquilo que se chama civilização ocidental. Os europeus estão mais empenhados que nós em deter o ritmo da destruição porque têm pouco para destruir e, vá lá, porque aumentaram um pouco a consciência de querer manter sua casa mais em ordem. Prova disso obtive em rápida passagem que fiz na Alemanha, em meu retorno ao Brasil. Separação de lixo para reciclagem é algo amplamente difundido por lá. Vi ainda prédios sendo construídos com uma grande área de placas solares, além das famosas turbinas eólicas nos campos, agora parte comum da paisagem alemã.
Parece que viraram ecologistas, mas, em última análise, eles inconscientemente patrocinam a nossa destruição, porque ela deriva do modelo econômico vigente, que tem nos países desenvolvidos seus principais beneficiários. O fato de haver indivíduos europeus amantes das sutilezas da natureza e o fato de as sociedades por lá terem uma maior preocupação ambiental não exime a Europa, enquanto força econômica, de seu passivo ambiental, nem do passado nem do presente. Afinal, muitas das empresas internacionais que em última instância movem o motor da destruição são européias e o estilo de vida dos habitantes dos países ricos é o combustível inicial da destruição. Mais grave ainda é o fato de que este estilo de vida nocivo ao planeta é vendido como modelo para os países pobres, o que pode potencializar nossos males.
Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, é doutor em Comportamento Animal pela Universidade de Saint Andrews (Escócia).
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