Correio da Cidadania

Felizes com a crise

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Imagine se, como no livro Revolução dos Bichos, de George Orwell, os animais do planeta tivessem senso crítico e opinião, ou, como em Senhor dos Anéis, obra de J. R. R. Tolkien, as árvores fossem capazes de fazer reuniões para decidir o que é melhor para sua floresta. Teríamos hoje a maior parte dos seres vivos do planeta a comemorar as possíveis conseqüências ambientais positivas da crise.

 

Num cenário recessivo, seriam grandes as chances de redução nas emissões de carbono, no consumo de madeira nativa e na demanda por novas áreas de floresta para criação de gado e plantio de soja. Cairia também o crescimento do consumo de energia elétrica e, assim, arrefeceria a pressão para a construção de novas hidrelétricas em áreas de floresta virgem; até mesmo as linhas de financiamento para obras de grande porte escasseariam. A pesca industrial também seria reduzida, o que daria um respiro para as espécies de peixes marinhos ameaçados de extinção. Com a queda da produção e do consumo, seria menor a quantidade de mercadorias transportadas entre as cidades e países, com menos caminhões queimando o óleo diesel de quinta qualidade que polui as estradas e cidades brasileiras com seus índices indecentes de emissão de enxofre. Uma recessão faria diminuir o número de celulares (e suas baterias venenosas) sendo jogados no lixo a cada minuto. Com a queda nas vendas de automóveis e demais produtos industrializados que utilizam minério de ferro e outros minerais em sua produção, as reservas desses recursos naturais (que são finitas, não custa relembrar) e a natureza ao redor delas seriam poupadas. Com retração da economia, as pessoas consumiriam menos e cairia a produção de lixo, tornando menos urgente encontrar soluções para a superlotação dos aterros sanitários e dos famigerados lixões.

 

Enquanto arrancamos os cabelos preocupados o crescimento do desemprego, nossos bichos e árvores falantes celebrariam as notícias deste outubro de 2008, segundo as quais a Petrobras reduziu a previsão de investimentos e ampliou os prazos para a exploração do petróleo na área do pré-sal. Mais: o governo Lula prevê cortes nos investimentos em infra-estrutura e nas obras do PAC, algumas delas verdadeiros desastres ambientais programados.

 

Há ambientalistas que argumentam que a crise pode de alguma forma ser prejudicial, ao inibir investimentos e decisões governamentais ambientalmente positivas. Os debates travados na reunião de cúpula da União Européia, realizada este mês, reforçam a tese: nove integrantes do bloco, liderados pela Itália de Berlusconi, usaram a crise econômica como razão para colocarem-se contra um plano já acordado meses atrás, que prevê redução em 20% da emissão de gases que provocam o efeito estufa até 2020. Para Berlusconi, "as empresas italianas não estão em condições de arcar com as despesas para atingir essas metas".

 

Mas o histórico recente de desrespeito a acordos de emissão de gases mostra que esse caminho não merece ser levado a sério por quem realmente se preocupa com a questão ambiental. O famoso Protocolo de Kyoto, por exemplo, assinado em 1997, morreu de desgosto por ter sido sistematicamente desrespeitado pelos governos signatários – e isso apesar de que suas metas de redução eram consideradas insuficientes para conter os efeitos das emissões.

 

A provável redução no direcionamento de recursos para conservação é outra preocupação válida. Mas arrisco afirmar que os benefícios da retração na degradação ambiental em caso de recessão superariam em muito eventuais problemas com corte de verbas para projetos de proteção e conservação.

 

Seja nos próximos meses ou daqui a cinco, 15 ou 100 anos, a derrocada desse sistema econômico é inevitável, uma vez que se baseia em premissas insanas e insustentáveis, como a de que os recursos naturais que o alimentam têm suprimento infinito e que o crescimento econômico constante e ilimitado é possível. Em algum momento, a escassez de recursos em geral, em especial os minerais (muitos com data marcada para acabar, como destacado neste espaço no artigo O preço do índio), será um dos fatores que vão inviabilizar a perpetuação do sistema linear de extração-produção-consumo no qual estamos mergulhados e nos afundando. Mas tenho esperança de que não precisaremos secar as fontes para interromper essa espiral de insanidade.

 

Apesar de saber que toda a humanidade, incluindo eu, minha família e amigos, sofrerão na pele as duras conseqüências de um mergulho recessivo da economia, tendo a ficar do lado dos bichos e vegetais encantados e torcer para que o remédio amargo seja tomado logo desta vez, e o quanto antes. Porque, dada a velocidade que a destruição assumiu nas últimas décadas, apesar de ainda termos hoje grandes pedaços de floresta relativamente intactos, muitos peixes no mar e alguns rios limpos e livres de represas, corremos o risco de perder tudo isso em poucos anos.

 

As conseqüências das barbeiragens protagonizadas por homens elegantes que usam gravatas de milhares de dólares mostram que talvez não seja necessário esperar que as geleiras derretam, o sertão vire mar nem a Amazônia transforme-se num deserto para que o caos se instale entre nós. Melhor que ele venha logo enquanto ainda temos grande parte da biodiversidade do mundo intacta. E tomara que aprendamos alguma coisa de útil com sua chegada.

 

Danilo Pretti Di Giorgi é jornalista.

 

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Comentários   

0 #3 Pedro Aquino 31-10-2008 13:42
Recebo muito bem cada artigo que você tem escrito, inclusive costumo repassar a amigos que se interessam pelos temas, já que muitas vezes para além do olhar sobre as contrariedades mundanas, transparece sua fundamentaçäo em pesquisa e estudo aprofundado do assunto.

Sobre este, tento ainda acrescentar mais alguma coisa...
A natureza, de fato, sobrevive sozinha. Se ninguém mexer ela se prolifera ao infinito e em profunda harmonia.
Já os homens... mesmo com todas as suas leis ainda estäo muito longe de qualquer equilíbrio.
Uma crise econômica deste porte pode levar o homem a descobrir a quanto tempo se distanciou de sua verdadeira natureza em troca de poder, prestígio e posses materiais.
A devastaçäo do planeta é apenas a expressäo deste descuido e afastamento, que näo apenas tira a beleza de nossas vidas e o alimento do futuro, mas faz todo mundo sofrer. Näo há consumo em excesso, ou luxo, no mundo que possa suprir a falta de amor e de vitalidade, que säo a verdadeira natureza do homem.

Parabéns!
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0 #2 Cenário GlobalJosé Renato Noronha 29-10-2008 09:29
Olá Caríssimo Danilo Di Giorgi,
há tempos leio com interesse a discussão sobre as questões ambientais propostas em seus artigos e textos. Este em especial está muito crítico e quebra de maneira razoável um paradigma trágico por trás de um olhar mal acostumado. Ou seja, vemos esta crise como tragédia quando ela pode ser vista como comédia. Imagino estes senhores especuladores e capitalistas hereditários se atropelando para sanar suas confusões e se reestruturar dentro de um novo sistema sendo obrigados a um novo olhar. Realmente acho que esta crise tem aspectos muito positivos e concordo que a recessão possa ser uma possibilidade. Meu medo é que neste cenário recessivo a insanidade aumente para sobre os recursos que podem ser explorados e são recursos básicos para subsistência e daqui a pouco a gente tenha que pagar para respirar assim como pagamos para beber água.Pois alguém deste sistema deve estar pensando nisto para ganhar dinheiro agora que tudo está de pernas para o ar. Por outro lado, como é grande a exploração a grande maioria se verá em condições de reagir e tentar alternativas de vida mais saudável.
Bem, a este respeito gostaria de convidar os leitores a assistirem no Arsenal da Esperança - Px ao Metro Bresser - Homem Cavalo e Sociedade Anonima da Cia Estável acontece aos sábados às 19horas, o ingresso é um quilo de alimento não perecível para os 1500 albergados que lá vivem e que são o resultado deste sistema explorador. Bem, num cenário de crise a boa crítica teatral reage muito bem.Brecht nasceu assim...o pós-brecht está aí para assistirmos e vermos o que os homens viram e como se libertam. Realmente sofreremos se não mudarmos.Vamos ver o que aprendemos.
Abraços e até o próximo artigo.
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0 #1 Carlos Fernandes 27-10-2008 15:58
Caro Danilo, a reflexão exposta neste artigo é muito pertinente. Que bom seria se a crise atual iluminasse a cabeça dos líderes mundiais para repensarem suas atitudes em relação ao meio ambiente. Mas infelizmente não dá para acreditar em mudança de postura. Inclusive no próprio artigo você cita a declaração do primeiro ministro da Itália, que diz que o país não está disposto a arcar com as consequências econômicas para diminuir o efeito estufa. O que serve de consolo é que temos pessoas como vc, preocupado com destino da humanidade e colaborando. Esse importante artigo é prova disso. Força companheiro.
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