Correio da Cidadania


A Terra Indígena Manchineri do Guanabara no “Governo da Floresta”

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Família Manchineri

 

Já se vão quase quatro anos desde que escrevi, na edição retrospectiva do Correio da Cidadania “2003: o ano que não começou” (http://www2.correiocidadania.com.br/ed377/), sobre minha passagem “da esperança à desilusão”, compartilhada por outros tantos milhões de brasileiros naquele primeiro ano do governo do PT. A esperança de quem cresceu achando que a devastação da floresta amazônica era obra da ditadura e que acreditava que a eleição de Lula pudesse representar uma mudança substancial neste cenário hoje se sabe bem como acabou. Lembro-me que redigi aquele artigo ainda em novembro, semanas antes do que habitualmente fazemos todos os anos para esta edição especial, diretamente da FUNAI de Rio Branco. Isso porque, ao longo do mês seguinte, participaria de uma expedição, como ambientalista membro de um Grupo de Trabalho (GT) contratado pelo Órgão Indigenista, à cabeceira do rio Yaco, para “identificação e delimitação da Terra Indígena Manchineri do Seringal Guanabara”.

 

Semanas depois, já de volta à cidade grande, comentei em outro texto (http://www2.correiocidadania.com.br/ed386/geral.htm) como a propaganda do “Governo da Floresta”, do engenheiro florestal e então governador do Acre, Jorge Viana (PT), enchia os olhos do visitante recém-chegado. Mas para mim esta impressão logo se dissipou ao trafegar nas estradas que cortam as áreas devastadas do interior do estado e no rio Yaco, onde testemunhei, ao longo de vários dias de viagem em direção às suas cabeceiras, o real estado de abandono das inúmeras pequenas comunidades que visitamos.

 

Entregue o relatório ambiental à FUNAI, nunca mais recebi notícias daquele processo de demarcação, apesar de me interessar muito pelo destino daquelas matas e da extensa família do cacique Raimundo (ver foto no topo da página).

 

Trago este assunto de volta agora, pois, há poucos dias, andando pelas ruas de Belém, encontrei com um outro membro daquele GT, que me colocou a par do desenrolar dos fatos: o processo de regularização daquela terra indígena no Acre ainda estava parado, por causa de um conflito de interesses com uma terra “de um amigo do governador”, localizada na área proposta para a terra indígena.

 

Escândalos do porte da decisão do ministro da Justiça Márcio Tomás Bastos, em 2003, de suspender o processo de homologação da Reserva Baú, dos índios Kayapó, com seus limites originais há muito definidos e cobiçados, cedendo à pressão de bandos armados de fazendeiros e madeireiros na Cuiabá-Santarém; ou ainda do acordo, naquele mesmo ano, que resultou no adiamento da homologação da reserva indígena Raposa do Sol em troca da entrada para o PT de Flamarion Portela, governador de Roraima, mal chegam ao conhecimento geral. Dessa forma, questões mais pontuais como esta, dos entraves políticos à demarcação da Terra Indígena Manchineri do Guanabara, passam quase que totalmente despercebidas.

 

Digo “quase que totalmente”, porque, decidido a trazer esta denúncia aos leitores desta coluna (e precisando de uma fonte mais concreta que uma conversa rápida na rua), fiz uma busca no Google, que me levou à coluna “Papo de índio”, dos antropólogos Marcelo Piedrafita Iglesias e Terri Valle de Aquino, publicada no Página 20 – “o primeiro jornal acreano na internet”, com comentários intrigantes sobre aquele processo demarcatório.

 

Os autores publicaram um histórico do processo de regularização da terra indígena em uma revisão das quatro terras indígenas do Acre em identificação (etapa inicial de seus processos de regularização, e que eu supunha que já estivesse concluída com o nosso trabalho). O texto começa assim: “em novembro de 2003, a FUNAI constituiu um GT, sob a coordenação do técnico em indigenismo e ‘antropólogo’ Raimundo Tavares Leão” (assim mesmo, com “antropólogo” entre aspas, numa tentativa de desqualificar o professor Leão, que no ano anterior concluíra, na PUC de São Paulo, sua tese de mestrado em Ciências Sociais sobre a reconquista territorial dos Apurinã de Boca do Acre, e leciona na Faculdade da Amazônia Ocidental). E continuam: “em novembro de 2004, após vistoria técnica realizada na região, o IBAMA, o INCRA e o governo estadual se manifestaram contrários à proposta de limites contida no relatório, alegando que conflitos com os demais moradores poderiam surgir e que, a montante do rio Yaco, está regularizada a T.I. Mamoadate, a maior do Acre, destinada aos Manchineri e Jaminawa”. E concluem afirmando que “a formação de um novo GT, coordenado por um antropólogo devidamente qualificado deve ser a medida adotada para viabilizar a conclusão dos trabalhos de identificação dessa terra tradicionalmente ocupada pelos Manchineri, etapa que também incluirá o levantamento das benfeitorias de boa fé dos ocupantes não-índios que habitam na área proposta”.

 

Antes de tudo, se uma tese de mestrado na PUC sobre o processo de reconquista territorial dos índios do Acre não qualifica alguém a atuar como antropólogo nessa questão, não sei o que o faria. Também gostaria de saber daqueles “indigenistas” (devolvendo as aspas maldosamente empregadas contra o professor Leão) qual é o problema de a Terra Indígena Machineri do Guanabara, com 213.254 hectares, conforme área proposta por nós, estar adjacente à T.I. Mamoadade, de 313.647 hectares, se aquela terra é de fato “tradicionalmente ocupada” por aqueles índios e está provado que terras indígenas são eficientes na preservação ecológica?

 

A Terra Indígena Manchineri do Guanabara, conforme escrevi no meu relatório ambiental entregue à FUNAI no princípio de 2004, fecharia, com os limites propostos, boa parte de uma cunha de terras vulneráveis ao desenvolvimento predatório que, ao longo do rio Yaco, adentram e ameaçam aquele que é o maior bloco de áreas legalmente protegidas do Alto Purus, composto por duas Reservas Extrativistas (incluído a RESEX Chico Mendes), uma Floresta Nacional, três Terras Indígenas já homologadas, um Parque Estadual e uma Estação Ecológica, perfazendo o total de pouco mais de três milhões de hectares. Além disso, naquela expedição, nos já fizemos o tal “levantamento das benfeitorias de boa fé dos ocupantes não-índios que habitam na área proposta”, que, aliás, eram todos gente muito simples, que mantinha relações cordiais com os Manchineri, e que, recebendo suas indenizações e transferindo-se para outras terras próximas, aceitariam a criação da Terra Indígena, sem os tais “conflitos” aos quais os autores se referiam. Os conflitos aparentemente aconteceram, mas foram com os interesses de proprietários de terra moradores de Rio Branco, bem relacionados politicamente.

 

Naquele segundo artigo também citei o então recém-lançado livro de Zuenir Ventura, “Chico Mendes: crime e castigo” (Companhia das Letras), que a muito custo consegui em uma livraria de Rio Branco, concluindo que o escritor, lamentavelmente, não escapara das armadilhas retóricas do “desenvolvimento sustentável”. Na terceira e última parte do livro (“Quinze anos depois”), por exemplo, há um capítulo (“Nova forma de caminhar”) em que Zuenir celebra que “há quinze anos era impensável convidar para a mesma mesa dois fazendeiros e um admirador de Chico Mendes para discutirem o Acre” — prática esta que, segundo os entrevistados pelo colunista de “O Globo”, teria sido inaugurada por Jorge Viana.

 

Caro Zuenir, enquanto fazendeiros e conservacionistas sentam à mesa no Acre, para discutir o “pacto” daquele governo que nunca começou, os desmatamentos avançam como nunca naquele estado, bem no estilo da “velha forma de caminhar”. Se por impedimentos políticos, com a formação de um novo GT para a nova “identificação” da Terra Indígena Manchineri do Guanabara (o que é um enorme desperdício de dinheiro público), meu parecer ambiental (feito às custas de tanta ralação) será inutilizado, que pelo menos fique este alerta como produto do nosso trabalho.

 

 

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi.

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