Correio da Cidadania


A divisão do bolo hidrelétrico

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Delfim Netto, em artigo publicado na edição de 1º de agosto do jornal Folha de S. Paulo, definiu a poluição das termoelétricas e seu prejuízo para o meio ambiente como exemplo de conseqüência não-intencional da ação bem-intencionada dos ambientalistas em sua “luta ingente” que atrasa projetos hidrelétricos. Observou que há uma relação muito estreita entre o crescimento do PIB e o consumo de energia e que o crescimento econômico é, em última instância, o “aumento da produtividade do trabalho que resulta da energia externa utilizada no trabalho dos equipamentos que a ajudam na produção”.

“Tudo é energia”, completou, citando até a força de trabalho do ser humano, que seria “a conversão da energia dos alimentos que o cidadão consome”. Argumentou que a quantidade de energia de que dispomos na natureza é constante, não podendo ser “criada nem destruída”, e que esta é uma fatalidade termodinâmica que “não pode ser alterada por nenhuma pajelança, por mais politicamente correta que seja”. Concluiu, por fim, que depende de decisão nossa escolher a melhor forma de organizar a energia dispersa na natureza para pô-la “à nossa disposição” pelo “bem-estar da sociedade”.

Falávamos aqui do clima atual de raiva contida contra as demandas ambientalistas nos grandes veículos de mídia, quase sempre marcada por críticas indiretas ao movimento. O artigo de Delfim é o exemplo perfeito disto, com um texto recheado com promessas de “crescimento” e “desenvolvimento” que se esquiva de esculhambar escancaradamente quem luta pela preservação da Natureza, para fazê-lo por via indireta, maliciosamente valendo-se de verniz social. Isto não por causa do argumento termodinâmico ou da concepção de desenvolvimento e sua relação com a demanda energética, ambos verdadeiros e que poderiam levar a conclusões diferentes das que ele tira. Mas o professor se faz de sonso quando escreve “nossa disposição” e “bem-estar da sociedade”, como se, em se tratando de história econômica, tanto o “nós” quanto a “sociedade” fossem blocos monolíticos homogêneos. O discurso do guru do novo-petismo remete-nos à sua máxima histórica, dos anos 1970, como ministro da ditadura, de que deveríamos esperar o “bolo” do desenvolvimento econômico primeiro crescer, para só então pensar em dividi-lo. Ambos, na verdade, artigo e frase, refletem a sua despreocupação com a “distribuição” (aparentemente ele tem o hábito de comer todos os bolos, sozinho). Já se passaram cerca de 30 anos de sua fatídica frase, o bolo cresceu, continua crescendo e a divisão está cada vez mais precária.

A verdade escamoteada é que, dada a magnitude das transformações ambientais causadas pelos grandes projetos hidrelétricos, em cidades inteiras por vezes todos os habitantes, do boa-vida vagabundo ao capitalista dono de supermercado, acabam perdendo. Isto é evidente na cidade de Porto Nacional, no Tocantins, à beira do rio de mesmo nome, hoje inundado pelo lago da represa da Usina Hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães, situada cerca de 100 km rio-abaixo, na cidade de Lajeado.

A região, predominantemente de cerrados abertos, com arbustos de baixa estatura, é marcada nesta época do ano, que corresponde ao “verão” local, por temperaturas bastante elevadas e pela secura e insolação inclementes. O calor é infernal das dez da manhã às seis da tarde, período durante o qual o bom-senso faz o visitante refugiar-se no seu quarto de hotel, com o ventilador ligado no máximo. Deslocando-se coisa de quatrocentos quilômetros, para qualquer latitude, o clima melhora. Isto porque, para o sul, aproximamo-nos da região de Goiás, que ainda é algo afetada pela entrada de frentes-frias e, para o norte, da zona que já recebe a umidade da floresta amazônica.

Naquele contexto, um rio magnífico do porte do Tocantins, com cânions, corredeiras e praias de areia branca, tem uma importância fundamental, pelo seu poder de atração para o homem. Bem, na verdade esta importância vem diminuindo. Diz a lenda que a cidade (que se chamava Porto Real até a proclamação da república) foi criada por ex-garimpeiros sobreviventes de massacres promovidos por índios que passaram a estabelecer atividades comerciais com Belém através do rio. Com a construção da rodovia BR-153, nos anos 1970, o fluxo de pessoas e mercadorias passou para a via terrestre e a cidade perdeu seu papel de destaque como entreposto comercial hidroviário. Mas ainda tinha o rio, cujas praias atraíam visitantes das redondezas, e até de localidades distantes, na seca, movimentando a economia local até 1998-2001, com a construção da barragem, que representou o segundo grande golpe na economia local. Com o enchimento do lago, os turistas desapareceram. O fluxo de embarcações foi bloqueado e, pasmem, apesar da importância histórica e estratégica do rio Tocantins, as obras da eclusa de Lajeado, que permitiriam a retomada deste fluxo, estão paradas e sequer são contempladas pelo PAC.

Delfim está certo quando diz que “tudo é energia” e que ela não pode ser criada ou destruída. A conclusão óbvia que se tiraria daí é que este modelo de crescimento infinito é, em si, inviável. E, para piorar, o crescimento nem é feito de forma que todos lucrem igualmente com seus efeitos.

A potência instalada de 902 mega-watts da Usina Hidrelétrica Luis Eduardo Magalhães é a energia que foi tirada do rio, da cidade e da economia da cidade de Porto Nacional. Energia que refazia as praias a cada estação e que renovava a água continuamente. Energia que hoje falta nas águas das praias artificiais criadas à margem do lago. Assim, sua areia acumula detritos. Latas e sacolas plásticas bóiam na água parada, dando-lhes um aspecto pouco convidativo. São poucas as pessoas, mesmo dentre os habitantes locais, que se arriscam a sentar na areia ou entrar na água. Energia que foi subtraída da vida local sem lhe oferecer nada em retorno.

Então, só lhes resta declamar nostálgicos: “Praia Porto Real...te amarei até debaixo d´água....e para sempre...sei que nunca voltarás... mas estarás guardada nas lembranças de quem a visitou, curtiu e viveu os amores e aventuras da ilha” (de Menino Piaba do Tocantins). De noite, com a sua iluminação pública de forma geral deficiente e suas residências humildes, a cidade ainda é, essencial e ironicamente, escura. Triste metáfora de parte da realidade do “desenvolvimento” impulsionado pelas hidrelétricas.

 

 

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi.

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