Correio da Cidadania

Belo Monte em 2012: lama no rio e o início do fim dos peixes-zebra

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Há poucos dias, enquanto eu, passando pela orla do cais de Altamira, buscava inspiração para tentar resumir para o Correio o que aconteceu com a região do Xingu em 2012, uma pessoa me chamou.

 

-Viu? O rio está uma lamaceira lá pra baixo. Na Volta Grande, subindo pra Altamira, eu vi um jacaré coberto de lama, uma tracajá, coitada, que era só lama, com a cabeça para fora tentando respirar e, chegando mais perto das obras da barragem, um acari [peixe de fundo típico do Xingu, e geralmente muito dependente de alta oxigenação da água] morto, boiando.

 

Eu não conhecia o sujeito, que se apresentou: era um ribeirinho de uma localidade rio-abaixo. Ele falou comigo porque certamente me reconheceu de alguma manifestação contra Belo Monte, ou de algum dos vários encontros que fizemos nos últimos anos para discutir os problemas da barragem. O fato, totalmente ignorado pela grande imprensa, é que a Volta Grande do Xingu, que até o ano passado correspondia a uma centena de quilômetros de praias de areia branca e cachoeiras paradisíacas para o turismo e pesca ecológicos, já está contaminada com a lama das obras da hidrelétrica de Belo Monte. Pesquisadores da Faculdade de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Pará em Altamira já constataram, sob frestas de rochas na Volta Grande, acaris das espécies mais sensíveis mortos, cobertos de lama.

 

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O acari-zebra (foto) começou em 2012 sua jornada final rumo à extinção. É complicado provar isso categoricamente sob o ponto de vista das normas científicas, que exigem que uma espécie não seja vista por muitos anos antes de ser oficialmente declarada extinta. Mas o fato é que a Volta Grande do Xingu já está em acelerado processo de degradação ecológica graças à construção da hidrelétrica. E, até onde se sabe, esta região é o único lugar do mundo onde vive esta espécie de peixe ornamental, descoberta apenas em 1989, deixando o mundo dos aquariófilos em polvorosa. Tais peixes atingiram imediatamente preços estratosféricos.

 

Considerando que, para peixes de água doce, a taxa extinções de fundo (que é aquela típica do planeta Terra antes de os seres humanos começarem a bagunçar com tudo) é de apenas uma espécie a cada três milhões de anos, só por este fato, 2012 poderia ter sido definitivamente marcado como pelo início da perda do acari-zebra. Apenas 23 anos após a sua descoberta pela ciência! Este é apenas um entre muitos exemplos. Vivemos em um tempo tão louco que temos centenas de milhares, senão milhões, de outras espécies indo pelo mesmo caminho. Quantas não existirão apenas na Volta Grande do Xingu, neste momento sendo devastada por Belo Monte? Algumas nem mesmo catalogadas pela ciência?

 

Isso me lembra um comentário do Danilo Di Giorgi, colega desta coluna do Correio, ao me recomendar um artigo publicado no site da RedeEnergia (Quando as hidrelétricas são fato consumado): “Se vivêssemos um momento um pouco menos insano da história humana, a questão de Belo Monte sozinha seria suficiente pra derrubar o governo, tamanha a quantidade de ilegalidades a ela relacionada”. Mas, em meio a outros escândalos políticos de Brasília, as inúmeras ilegalidades e ações pendentes sobre irregularidades e condicionantes na obra de Belo Monte e outras mega-hidreléticas em construção na Amazônia não tiveram espaço na grande mídia.

 

O comentário do Danilo me leva a outro ponto a que pretendo chegar nesse texto. Em abril de 2010, ainda antes do início das obras, recebemos aqui na UFPa 18 alunos dos cursos de Administração de Empresas, Administração Pública, Direito e Economia da Fundação Getúlio Vargas, de São Paulo, cursando a disciplina Formação Integrada para a Sustentabilidade (FIS). Segundo reportagem do Estadão sobre esta viagem (“Disciplina da FGV muda a vida de estudantes”), pretendia-se com ela “testar novas formas de conciliar as exigências do crescimento econômico com o mínimo de interferência nas comunidades e nos ecossistemas em volta”. De tudo o que falei para aqueles estudantes sobre as desgraças da obra, o que mais chamou a atenção deles foi que as ilegalidades de Belo Monte eram tantas e tão grandes, com tantas ramificações, que uma das mais graves consequências da concretização deste projeto (originalmente da ditadura miliar brasileira) seria pôr em risco nossa própria democracia. Chamou a atenção, mas acho que não me levaram muito a sério.

 

O produto final da disciplina seria um relatório “com recomendações para investidores, a respeito do investimento em Belo Monte”, mas, segundo o Estado de São Paulo, o maior ganho foi “mudar a vida dos estudantes”: “Acredito que esse foi o grande desafio durante o campo, manter-se aberto ao novo, sem se deixar influenciar por pressupostos e preconceitos. Para isso, é preciso manter mente, vontade e coração abertos”— teria dito ao jornal a estudante de Administração Pública Graziela Azevedo, de 24 anos.

 

Nunca ouvi falar de nenhum relatório de estudantes da FGV desaconselhando a Hidrelétrica de Belo Monte a investidores. Provavelmente, boa parte dos alunos, e certamente os professores que os acompanhavam, mantiveram a “mente, vontade e coração abertos” e consideraram a minha opinião um “pressuposto preconceituoso”. Apesar de escrever para o Correio denunciando os impactos de Belo Monte como biólogo da Universidade Federal local da região onde esta tragédia ecológica acontece, essa não é a minha especialidade. Estudo a ecologia de palmeiras e não a construção de barragens. Muitas vezes tenho ideias erradas sobre a distribuição das palmeiras. Mas, com a coleta de dados de campo e réplicas adequadas, consigo testá-las, refutá-las e aperfeiçoá-las. Porém, essa é provavelmente a única mega-obra com mega-impactos ambientais que testemunharei tão de perto na vida. Sou convicto quanto à previsão das suas consequências ecológicas desastrosas, mas, pelo desenrolar dos fatos em 2012, vejo que pouco consigo antever de seus aspectos técnicos e políticos mais imediatos.

 

Digo isso porque, em artigos anteriores, arrisquei a previsão de que Belo Monte descambaria prontamente para uma luta armada pela preservação do rio, com forte engajamento de ecologistas, índios e ribeirinhos e grande desgaste político para o governo brasileiro junto à opinião pública internacional. Ainda mais em tempos de Copa do Mundo e Olimpíadas em nosso país. Aparentemente, isso é o que em ciências chamamos de “wishful thinking”— expressão que significa tomar os desejos por realidades, produto da minha necessidade de me manter otimista e acreditar que não testemunharia a destruição do rio que aprendi a amar.

 

Mas o fato é que, apesar de alguns contratempos, pode-se dizer que o ano que se encerra foi ótimo para os barrageiros, construtores da hidrelétrica , e consequentemente trágico para o rio Xingu, seus peixes, seus povos indígenas e as florestas. Os contratempos foram algumas ligeiras interrupções nas obras causadas por greves de operários, decisões da justiça suspendendo momentaneamente a licença de construção e paralisações de parte das atividades causadas pela obstrução dos trabalhos por índios ou pescadores nos canteiros de obras. Fatos pontuais, comemorados pelos oponentes desta obra faraônica e trágica para a Amazônia, mas que de certa forma já estavam previstos no cronograma dos construtores da usina. Infelizmente, de modo geral, pode-se dizer que a obra vai muito bem. As máquinas levadas pelo rio, os alojamentos queimados, as mortes de operários, já contabilizadas, estavam todas no programa. Sobre as mortes de operários, são tão previsíveis, ainda mais na próxima etapa em que é erguido o paredão, que chegou faz algum tempo ao canteiro de obras, segundo me contaram, um caminhão carregado de caixões, preparado para elas. Estranho encomendar um caixão para quem ainda está vivo e bem, trabalhando, não? Porém, as fatalidades são matematicamente previsíveis e um engenheiro prevenido vale por dois.

 

Voltando à retrospectiva propriamente dita, além do começo efetivo das obras, com a construção da ensecadeira que iniciou a alteração do curso do rio, em meados de janeiro deste ano, enchendo a água de lama e já causando sérios prejuízos a índios, ribeirinhos e várias espécies como o acima citado acari-zebra, o que se pode dizer sobre a região e Belo Monte, especificamente, este ano? Bem, para começar, as chuvas do “inverno” 2011/2012 demoraram excepcionalmente para começar a cair, o que só ocorreu em meados de janeiro. Altamira rompeu o ano de 2012 sob forte seca, o que surpreendeu mesmo os moradores da cidade que testemunharam a forte redução da pluviosidade na região desde que a transamazônica foi aberta por aqui na década de 1970. Na época, para se ter uma ideia da diferença na extensão do período seco para os dias de hoje, quem não queimasse sua roça até meados de setembro não queimava mais porque as chuvaradas não permitiam – me contaram vários dos antigos moradores.

 

Apesar de parecer um detalhe, esse é um fato fundamental, pois a grande consequência da devastação da floresta da nossa região, que Belo Monte veio acelerar, é a transformação no clima, que vai se tornando progressivamente mais seco. Assim, a paisagem, que hoje ainda é dominada por florestas, tende a se tornar um deserto, com graves consequências para todo o Brasil e a humanidade. Não me arrisco a prever quando acontecerá. Mas qualquer um com “a mente e o coração abertos”, pensando nas profundas mudanças já ocorridas nas últimas décadas, verá que não é para longe. A previsão de desertificação da Amazônia pode parecer à primeira vista um exagero, mas basta lembrar que boa parte dos grandes desertos mundo afora já foram frondosas florestas de cedro, devastadas por seres humanos em tempos pré-bíblicos.

 

Já se sabia que Belo Monte não foi pensado para “gerar energia para o povo”, mas, com o dinheiro do povo, para gerar energia barata para as mineradoras e outras indústrias eletro-intensivas, de pouco retorno em termos de número de empregos. O que não dava para imaginar era que as mineradoras chegariam tão rapidamente a Altamira. A mais falada delas no momento é a Belo Sun, empresa canadense que pretende retirar 50 toneladas de ouro da Volta Grande do Xingu nos próximos 12 anos, logo abaixo ao barramento de Belo Monte. A avidez com que se instalaram no trecho de vazão reduzida do Xingu (que terá bem menos água que o usual, pois essa será desviada por canais que cortam a Volta Grande) nos faz pensar no porquê do desenho dessa barragem que exporá boa parte do leito desse rio de grande potencial aurífero. Agora imaginem o poder de contaminação ambiental de uma indústria como essa. Os carros da Belo Sun já são uma visão comum nas ruas da cidade de Altamira. E falando em carros com logos de empresas destrutivas se instalando, recentemente comecei a ver por aí o logo da Cikel, uma madeireira de grande porte com tentáculos por toda a Amazônia. Belo Monte é uma devastação que não vem sozinha. Fala-se até que a Vale do Rio Doce pretende abrir uma linha de trem para a nossa região para escoar minérios da bacia do Xingu! É o fim das nossas florestas ainda preservadas.

 

E enquanto o desmatamento corre solto na nossa região e o rio à nossa frente sofre um acelerado processo de devastação, reciclagem foi o tema escolhido para tratar do meio ambiente no desfile das escolas públicas de Altamira, durante as comemorações do Dia da Independência. Nenhuma palavra sobre os desmatamentos ou, evidentemente, a degradação causada pelo barramento do rio. Aliás, esse ano, a prefeitura, em parceria com a Norte Energia, construtora de Belo Monte, espalhou pela cidade várias lixeiras de cores variadas para a reciclagem. Já estão todas ou quebradas ou abarrotadas de lixo misturado. Aqui, não adianta separar porque o caminhão de lixo mistura tudo mesmo. Todo mundo sabe disso. Mas, para eles, assim como para quase toda a sociedade, o que vale é o marketing do “ambientalmente correto”, mesmo que não haja qualquer substância por trás. Podendo fingir preocupação ambiental sem tocar nos problemas de fundo, cujo combate afetaria os negócios dos poderosos da cidade, o tema da reciclagem, mesmo que baseado em uma mentira, é o ideal.

 

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Falando em marketing e enganação ambiental, um último comentário sobre 2012: a Rio +20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada em junho visando “contribuir para definir a agenda do desenvolvimento sustentável para as próximas décadas”, que seria uma boa oportunidade para denunciar ao mundo os problemas de Belo Monte, foi dominada pela propaganda governamental e do agronegócio. O contra-ataque antiambientalista, que chegou a questionar as próprias evidências do aquecimento global, e a blindagem de Belo Monte foram tão eficientes que se pode dizer que o resultado final do encontro foi negativo para a Amazônia. Esse clima de marketing mentiroso foi sintetizado pela deplorável propaganda em que Pelé, ao lado da senadora Kátia Abreu, grande defensora dos desmatamentos, louva o Brasil, “Campeão na produção e na preservação”.

 

O ano de 2012, sem sombra de dúvidas, foi péssimo, não apenas para acaris-zebra, ribeirinhos e indígenas no Xingu, mas para a Amazônia e as espécies viventes do planeta Terra de modo geral. Incluindo aí nessa lista toda a espécie humana. Ainda que grande parte dos representantes dessa categoria não tenha – ainda – se dado conta disso, que no Brasil as taxas de aprovação do atual governo estejam nas alturas e que continuem instalando belas lixeiras coloridas para a reciclagem e misturando tudo de novo na hora de recolher o lixo.

 

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da UFPA (Universidade Federal do Pará) em Altamira, e faz parte do Painel de Especialistas para a Avaliação Independente dos Estudos de Impacto Ambiental de Belo Monte.

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