Os Beagles do Instituto Royal e os da Daisy Hill Puppy Farm
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- Rodolfo Salm
- 29/10/2013
Causou grande polêmica o recente resgate, ou roubo, ou libertação, dos 178 cães da raça Beagle usados como cobaias no Instituto Royal, em São Roque, a 66 km de São Paulo. O ponto central da polêmica é justamente esse: trata-se de um resgate ou roubo? Aqueles cães podem ser tratados como propriedade particular, material de pesquisa, como no Instituto Royal? Ou têm direito a alguma “humanidade”, mais como na fazenda de cachorrinhos Daisy Hill Puppy Farm, onde nasceu o cachorrinho Snoopy da história em quadrinhos "Peanuts" (criado por Charles Schulz).
Na verdade, trata-se de uma questão filosófica e pessoal, especialmente importante para nós biólogos. Isso porque, por um lado, lidamos continuamente com o fato da evolução biológica e assim vemos uma continuidade entre nossa espécie e todas as outras do planeta, que evoluíram a partir de um ancestral comum. Por outro lado, nossa rotina implica em utilizarmos os mais variados animais e plantas em experiências e aulas práticas, bem como os sacrificarmos para arquivá-los em coleções.
Então, eu geralmente ficaria dividido quanto a uma questão como essa. Mas tive certa simpatia pela brincadeira que circulou na Internet, em que Snoopy sugere de modo vulgar, mas apropriado, dada sua humanidade, a esses pesquisadores que testem os tais remédios em suas partes íntimas. Curti e compartilhei. Vou defender o meu ponto.
Antes de tudo, é preciso dar um crédito aos que argumentam pela experimentação com animais. Realmente não existe técnica que substitua perfeitamente os testes com mamíferos de médio porte e vida longa para entender os efeitos do uso prolongado de novas drogas ou cosméticos. A questão é se precisamos tanto de tantas novas drogas e cosméticos (particularmente estes), se estamos dispostos a pagar por este avanço proporcionando sofrimento e dor ao nosso semelhante. Se os testes fossem feitos com grandes primatas como chimpanzés poderiam ser ainda mais eficientes. O que não dizer de testar diretamente em pessoas, como em filmes de ficção científica?
A ideia não é nova: os nazistas fizeram isso. Mas, felizmente, hoje a maior parte das pessoas considera inaceitável. Mesmo que tais pessoas fossem criadas especialmente em laboratório para estes fins, como se argumenta em favor dos testes com aqueles beagles do Instituto Royal, que já nasceram com a sina de se tornarem cobaias.
Países como Inglaterra, Holanda, Nova Zelândia, Suécia, Alemanha e Áustria baniram ou impuseram restrições severas ao uso de grandes primatas em pesquisas desse tipo, uma vez que entenderam que eles são cognitivamente tão semelhantes aos humanos que usá-los como sujeitos de testes seria antiético. Mas, e os cachorros? Alguém duvida que sejam essencialmente idênticos a nós em muitas de suas emoções mais básicas?
Alguns críticos dos manifestantes que invadiram o Instituto Royal lembraram que matamos e escravizamos animais para comer e para nos vestir e chegaram a dizer que se alguém está tão preocupado com os beagles deveria também parar de andar de carro para não esmagar insetos sobre o para-brisa. Contudo, este é um patético caso do que Aristóteles chamava reductio ad absurdum, (redução ao absurdo), a falácia lógica de se estender o argumento de alguém até um extremo ridículo e daí criticar os resultados. A figura ao lado, por exemplo, amplamente curtida e compartilhada por pesquisadores, numa brincadeira ridiculariza os manifestantes contra o Instituto Royal, lembrando que ninguém salvaria as cobras do Butantan e falando nas “torturas psicológicas” que as cobras sofreriam no instituto. Como se a “psicologia” de uma cobra e de um cão fossem igualmente semelhantes à nossa. É natural que tenhamos mais empatia pelas espécies que têm mais semelhança evolutiva conosco, assim como temos mais ainda, naturalmente, pelas pessoas que são nossos parentes mais próximos. Os defensores do Instituto Royal também argumentaram que lá os animais eram tratados de acordo com as normas técnicas exigidas em lei.
Tenho certeza de que eles tinham cuidados médicos e alimentação bem melhores que a maioria dos cães domésticos por aí, mas eram levados a passear? Tinham espaço para poder manifestar toda a sua gama de comportamento? Recebiam carinho ou tinham oportunidades para se socializar entre si? É evidente que não.
Também disseram que aqueles que criticam os testes com animais deveriam parar de usar todos os remédios e medicamentos que já foram desenvolvidos com base em testes em animais. Eu não vejo sentido nisso. O fato de repudiarmos tal sofrimento infringido aos animais não significa que devamos jogar fora tudo o que se conseguiu até agora às suas custas. Queremos parar o sofrimento presente e evitar o futuro. Mas o que foi feito está feito. Pisar em um tapete de couro ou sentar em uma mesa antiga não é o mesmo que esfolar um animal ou derrubar uma árvore. Parece aquela história de que os críticos das hidrelétricas deveríamos deixar de usar qualquer forma de eletricidade, como se isso fosse possível em uma sociedade moderna.
Outra crítica, essa pertinente – mas que não invalida a ação dos manifestantes – é de que houve muita comoção em torno dos beagles, mas pouca gente olha para os milhões de cachorros que nascem e morrem todos os anos abandonados nas cidades de todo o país. O que é verdade, mas é outra falácia lógica, de desviar o foco de um problema alertando para outro. Aqui em Altamira, no interior do Pará, como na maior parte do país, quase não há assistência do estado às pessoas, que dirá com a cachorrada, gataria e demais bichos. Para completar, pessoalmente eu também gostaria de ver tanto envolvimento contra outras ações como a construção de grandes hidrelétricas e a devastação das nossas florestas tropicais como um todo, onde literalmente bilhões de aves e mamíferos selvagens são mortos todos os anos.
Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da UFPA (Universidade Federal do Pará) em Altamira, e faz parte do Painel de Especialistas para a Avaliação Independente dos Estudos de Impacto Ambiental de Belo Monte.
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