Correio da Cidadania

Floresta amazônica é atacada no Jornal Nacional

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Acho que já falamos aqui nesta coluna quase tudo o que poderia ser dito contra a lei de concessões para a exploração de florestas públicas. Ademais, independentemente do que for dito, Tasso Azevedo, o diretor do Programa Nacional de Florestas do Ministério do Meio Ambiente, e seu grupo, além da própria ministra Marina Silva, com o apoio da grande imprensa, continuarão convictos nesta aventura irresponsável. Mas é impossível não se revoltar com a manchete do Jornal Nacional da noite de 21 de setembro, na voz de Willian Bonner, estudadamente otimista: “Área da Floresta Amazônica será protegida pela iniciativa privada”. Mesmo os mais ferrenhos defensores da idéia dizem que as áreas serão “exploradas pela iniciativa privada”. A “proteção”, bastante duvidosa de resto, seria uma conseqüência da “exploração” de acordo com a filosofia do “use it, or lose it” (use-a [a floresta] ou perca-a).

 

***

 

Na reportagem, Fátima Bernardes repete o artifício de falar em “proteção” quando deveria dizer “exploração”:

 

A ministra do Meio Ambiente anunciou hoje a primeira área da Floresta Amazônica que será protegida pela iniciativa privada [Corta para uma tomada aérea de helicóptero, com a voz de uma outra narradora]. Mata fechada no meio da Amazônia. Uma região onde a exploração ilegal não pára de crescer. A Floresta Nacional do Jamari, em Rondônia, tem 220 mil hectares, 90 mil vão ser entregues à iniciativa privada. Para tentar controlar o desmatamento, o governo decidiu passar para as mãos de empresários parte das florestas federais. As empresas vão ser escolhidas por licitação e poderão explorar, por até 40 anos, produtos madeireiros [leia-se madeira], frutas, óleos ou até mesmo o turismo ecológico [Os demais itens da lista são recorrentemente usados para disfarçar o que realmente interessa, que é mesmo a madeira. Como se todos fôssemos criancinhas ingênuas e pudéssemos acreditar que alguma empresa da iniciativa privada vai interessar-se por uma área apenas para oleozinhos e frutinhas, ou que o turismo possa ser uma atividade econômica de grande escala em áreas inóspitas, e de difícil acesso].

 

Em contrapartida, elas terão de investir no desenvolvimento social e ambiental da região e respeitar regras [Não diga?! Terão que respeitar regras! Mas que ótimo!]. A empresa só poderá derrubar cinco árvores a cada mil existentes na floresta e, onde o crescimento das árvores demorar 30 anos, por exemplo, a área terá de ser dividida em 30 partes. A cada ano, só uma parte poderá ser explorada [Essas últimas informações, isoladas, são indecifráveis para o público que não conhece a realidade da floresta e podem dar a falsa impressão de que a exploração seria de apenas 0,5% da mata. Não será, e a realidade é muito pior que isto. Como a principal armadilha da argumentação montada está nesta distorção, irei interromper a transcrição da reportagem e tecer observações mais pormenorizadas sobre este ponto. Os números lançados ao público pelo Jornal Nacional na verdade derivam da definição de “Manejo Florestal Sustentável”, que acompanha o Projeto de Lei que regulamenta as concessões florestais. Segundo a definição, este manejo consistiria na exploração, a cada trinta anos, de 5 a 6 árvores por hectare em “uma área de manejo florestal típica” com cerca de 1.000 árvores, entre adultas e jovens (as jovens são a grande maioria). Então, pode ser verdade que serão cortadas cerca de 5 árvores por 1000, sem contar aquelas mortas pelos danos colaterais do corte, e pela abertura de ramais e sub-ramais associados à exploração, mas serão cortadas árvores grandes das espécies de maior valor econômico. Devemos lembrar que a maioria das árvores é pequena, podendo levar centenas de anos para se desenvolver. Pior: nas florestas tropicais, a maior parte das espécies é extremamente rara e ocorre em baixas densidades. Assim, ao cabo de 30 anos estas espécies não terão se recuperado, sendo então enganoso chamar esta exploração de “sustentável”].

 

[Continua a reportagem...] Pela concessão, o governo vai receber uma taxa anual [Aí que entra o “aluguel” das florestas. Se o governo vai “receber” e não “pagar”, é porque falamos, na verdade, de “exploração” e não de um serviço de segurança privada de proteção, como a manchete do Jornal Nacional sugere]. Parte do dinheiro será repassada aos municípios que terão de aplicar na conservação das florestas [sei...] e a outra parte vai para a fiscalização [o governo abre mão de zelar pelo nosso patrimônio natural e o entrega diretamente ao ladrão].

 

[Entra a Marina com um tom de voz lúgubre] Esse processo é um avanço, porque viabiliza o uso sustentável das florestas, sustentável do ponto de vista social, econômico e ambiental. [Agora, mais animada] Elas continuarão sendo florestas e elas continuarão sendo públicas [Eu diria que elas serão quase-florestas e quase-privadas. Bom lembrar que no Brasil concessão de serviços públicos na verdade é cessão eterna mesmo].

 

***

 

Digo que a floresta amazônica foi atacada no telejornal pois é só assim que se pode definir a artimanha de substituir “exploração” por “proteção”, além de todos os outros pontos destacados na reportagem, de imensa audiência, neste momento crítico, quando estão sendo abertas as primeiras licitações para as concessões de florestas públicas. O momento é delicado para o governo (daí a importância da “mãozinha” da Rede Globo) porque até aqui o projeto de concessões vinha sendo discutido apenas em tese. No debate abstrato, o argumento de seus defensores é potencialmente muito mais escorregadio, além de mais inacessível à compreensão popular.

 

Agora não. Estamos falando especificamente da Floresta Nacional (Flona) do Jamari. E todos os olhos voltam-se para aquela área. Rondônia é um dos estados mais devastados da Amazônia. Observando-se as imagens de satélite da região, percebe-se que o desmatamento está concentrado principalmente ao longo da BR-364, que corta o estado em toda a sua extensão, do Mato Grosso ao Acre. Mas, apesar dos desmatamentos, grandes blocos de florestas persistem, como nas terras dos índios cintas-largas e na Flona do Jamari, no extremo nordeste do estado, ao longo da fronteira com o estado do Amazonas.

 

Por que entregar parte desta área para a exploração madeireira? Segundo um artigo conjunto de Rogério Vargas Motta (Associação Etno Ambiental Kanindé) e Paulo de Lima Nunes (Organização dos Seringueiros de Rondônia), publicado no site Amazônia, é gravíssima a ameaça à integridade da Flona. Contam que um servidor sério, que conseguiu restabelecer a ordem na unidade por algum tempo, sofreu ameaças de morte de garimpeiros e afastou-se. Recentemente, a área foi invadida por centenas de garimpeiros por um lado e por grileiros de terras por outro. Que a situação é lamentávelestamos de acordo. Que aquele funcionário do estado tenha abandonado a função que desempenhava bem, na preservação da floresta, pela pressão de garimpeiros, é uma vergonha para nosso país. Mas será que o governo brasileiro não tem condições de dar um mínimo de segurança a um guarda-parque? A conclusão desse fato lamentável é que devemos então entregar as árvores à própria sorte, para que encham os bolsos dos madeireiros e de certificadoras de madeira como o Imaflora, criada por Tasso Azevedo, e seus colegas engenheiros florestais da Esalq? E as florestas que paguem com sua carne pela sua própria segurança?

 

Percebam que a Flona do Jamari, à margem direita do rio Madeira, é uma das últimas grandes áreas preservadas de Rondônia ao longo daquele rio. E mais, há apenas cerca de 100 km rio-acima será construído o complexo hidrelétrico do Madeira, que trará malefícios ambientais em larga escala. Mas as usinas, segundo o governo, são estratégicas para evitar um “apagão” e permitir a continuidade do crescimento econômico nos próximos anos. Por mais que eu discorde, faz sentido dentro daquela lógica de desenvolvimento econômico.

 

Porém, pergunto: qual é a lógica, senhor Tasso Azevedo, deste mesmo país tão rico, que gastará R$ 40 bilhões com a construção das hidrelétricas no rio Madeira, alugar para empresas privadas, a Flona do Jamari, por uma fração ínfima daquele montante, por não ter condições de “protegê-la”? Segundo estimativas do MMA, de que 13 milhões de hectares da floresta amazônica renderiam, a cada ano, R$ 187 milhões em taxas pagas pelo seu aluguel; mantendo esta proporção, os 90 mil hectares da Flona do Jamari, renderiam nos primeiro ciclo de corte de árvores (de 30 anos), 0,1% (um milésimo) do que será gasto com a construção das hidrelétricas. Será que uma proteção da Flona (no sentido do dicionário, de proteção mesmo) não poderia fazer parte de medidas de compensação ambiental pelo desastre imenso que as usinas irão trazer?

 

Que sentido faz, então, o aluguel da Flona do Jamarari à luz daquela suposta “transversalidade” anunciada pela ministra, que interligaria a atuação dos vários ministérios? Só se seu objetivo comum for acabar de vez com o Madeira, e a Floresta Amazônica em geral.

 

 

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi.
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